Não Há Disposição
para a Paz

BENTO DOMINGUES, O.P. .........................................Público, Lisboa, 12.09.2004

1. A própria falha na recolha da cápsula da Génesis, de tão noticiada, ajudou a destacar a importância da investigação do sistema solar para o futuro da humanidade, ainda que o alcance desse género de pesquisa não deva ser avaliado pelos seus benefícios sociais e económicos imediatos. E também não são os seus gastos que roubam recursos aos cuidados com a qualidade de vida actual dos seres humanos.

A investigação científica e a sua divulgação fazem parte do desenvolvimento da nossa espécie. A imagem romântica de um futuro harmonioso entre nós e a verdade racional ainda não se apagaram. No entanto, George Steiner, no final do seu belo livro "Nostalgia do Absoluto", não esconde de forma argumentada o seu profundo cepticismo. Concede que a dignidade maior da nossa espécie é perseguir a verdade científica abnegadamente. E não há abnegação maior do que aquela que arrisca, e talvez mesmo sacrifica, a sobrevivência humana. Remata as suas interrogações com nostálgica ironia: "A verdade (científica), creio, tem um futuro; se o homem o terá, parece-me bem menos claro."

2. A mim espantam-me coisas mais imediatas. É possível percorrer distâncias fantásticas para recolher partículas de vento solar, mas não se consegue deter a fome de milhões de seres humanos que vivem tão perto de nós, embora - como observa Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia - não haja qualquer crise importante na produção de comida no mundo actual. A malária continua a ser um flagelo. Está descoberta a forma rápida e barata de a erradicar. Mas continua. Na Colômbia, em Israel, na Palestina, no Sudão, no Ruanda, no Afeganistão, na Tchetchénia, no Iraque, etc., existem caminhos mais belos para a paz do que os percursos das armas e da guerra. São preferidos os do sangue. Parece que somos um mamífero com vontade de dominação, razoavelmente cruel, que, para exibir o seu poder, tende a criar obstáculos às soluções mais óbvias. Prefere as escolas de guerra e de violência aos exercícios de uma cultura da paz. Consta que para homens altamente especializados, tecnologicamente equipados, é muito difícil tolerar longos períodos de paz. O terrorismo é uma espécie de guerra mundial, sem uma frente fixa, que não distingue entre combatentes e população civil, entre culpados e inocentes. As imagens insuportáveis do massacre na escola de Beslan mostram até onde pode chegar o horror. Alguns países vítimas de ataques terroristas recusam-se a pensar nas raízes do terrorismo, nas suas motivações e em soluções abrangentes para os conflitos. Aproveitam as situações extremas para dizer que não dialogam com terroristas. Mas o diálogo não é a escolha dos cobardes. Recusando o diálogo, acabam por adoptar métodos terroristas e por se enredar na mesma lógica. O diálogo é a via do realismo. As estratégias e as práticas de Bush, Sharon e Putin parece que não serviram, até agora, para tornar o mundo mais seguro. Contribuíram para aumentar os espectáculos de banalização do mal.

3. O pacifismo absoluto, aquele que, em certas circunstâncias, nega ao direito os meios adequados para se proteger, representa uma capitulação diante da injustiça e expõe o mundo ao ditame da violência. Mas para que o recurso à violência, em nome do direito, não engendre novas injustiças e arbitrariedades tem de estar sujeito a critérios estritos que possam ser por todos reconhecidos como tais. O livro da Sabedoria bíblica lembra-nos: seja a norma do direito a nossa força; amai a justiça, vós os que governais a terra. Se queremos a paz, preparemos a tempo a solução pacífica dos conflitos e perguntemos a todas as formas de poder - económico, político, militar, religioso -: que bases para a esperança ofereceis aos vossos contemporâneos? Para que a humanidade tenha uma probabilidade de sobrevivência no nosso planeta, precisamos de um mínimo de valores, de uma orientação ética fundamental na qual toda a humanidade se possa reconhecer (H. Küng). Nota: É no interior deste texto que desejo evocar a nova forma de presença de Mário Figueirinhas. Faleceu no dia 20 de Agosto. Foi por iniciativa da sua amizade - e à sua custa - que foram publicados quatro volumes destas minhas crónicas. O último - "As Religiões e a Cultura da Paz" (vol. II), prefaciado por Lídia Jorge - foi apresentado em Maio passado, no Porto, pelo prof. Manuel Pinto. Lançado no dia em que o Instituto D. António Ferreira Gomes - presidido pelo prof. Levy Guerra - e a Paróquia dominicana de Cristo Rei lhe prestaram uma fervorosa homenagem interpretada pelo prof. Joaquim Pinto Machado, pelo pároco de Cedofeita e pelo bispo da diocese. Homenagem ao cidadão exemplar, ao católico de uma libérrima, discreta e persistente militância cristã de várias frentes, ao editor de obras belas e fundamentais da e para a cultura portuguesa, assinadas umas por investigadores, outras por escritores como Sophia de Melo Breyner Andresen e Luiza da Costa, outras ainda por figuras que marcaram a Igreja portuguesa pela sua ousadia, como as de D. António Ferreira Gomes e de D. Manuel Vieira Pinto. Uma homenagem na presença do espantoso casal Mário e Margarida Figueirinhas rodeado pelos filhos e pelos netos. Continuamos a viver com estrelas que já não vemos.