Será o Natal
a festa da família?

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................... .....Público, Lisboa, 18.12.2005
Entoaram ao senhor este cântico de louvor: Porque Ele é bom e a Sua
misericórdia para com Israel é eterna!" E todo o povo soltou exclamações de
alegria para celebrar o senhor, por ocasião do lançamento
dos alicerces da Sua casa. Esdras 3, 11
 

A paixão de Jesus era e é tornar o mundo todo uma família ilimitada. É a partir deste horizonte que pode ser pensada uma profunda reforma da família actual: esta deve ser o espaço onde cada um descobre que a sua família não é só aquele agregado e suas ramificações.

 

1. A Conferência Episcopal Portuguesa - louvada seja! - não se deixou envolver na provocação tecida pela Direcção Regional de Educação do Norte em nome da sua ridícula laicidade. Revelando-se mais zelosa do que o Governo, achou inconveniente a presença de representações de um judeu inocente, chamado Jesus, crucificado há dois mil anos, em Jerusalém, por ordem da autoridade romana, e no qual os seus discípulos reconheceram - por razões que ficaram registadas no Novo Testamento - a melhor forma de o homem ser humano e de Deus ser divino.

Gosto de uma página paradoxal de Umberto Eco que encerra o seu diálogo com Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão. Volto a ela neste quarto Domingo do Advento. Desejo inscrevê-la na denúncia do Natal, circunscrito a uma festa de família, que oculta a significação revolucionária do mundo que Ele sonhou para todos, recapitulando e antecipando-o na sua própria pessoa e intervenção. O conhecido filósofo e romancista pede ao arcebispo para aceitar, por um instante, a hipótese de que Deus não existe e de que o homem aparece sobre a Terra por um erro de casualidade, entregue não só à sua condição de mortal, mas também a ter consciência de isso mesmo e a ser, portanto, imperfeitíssimo entre todos os animais. Este homem, para ter coragem de esperar a morte, tornar-se-ia, necessariamente, um animal religioso e aspiraria a elaborar narrativas capazes de lhe proporcionar uma justificação e um modelo, uma imagem exemplar.

Entre as muitas que é capaz de imaginar, umas brilhantes, outras terríveis, outras ainda pateticamente consoladoras - antecipando a plenitude dos tempos -, teve, em determinado momento, a força religiosa, moral e poética de conceber o modelo Cristo, do amor universal, do perdão dos inimigos e da vida oferecida em holocausto pela salvação dos outros.

Se eu fosse, diz Eco, um viajante vindo de longínquas galáxias e me aparecesse pela frente uma raça que tivesse sido capaz de propor este modelo, eu apreciaria, com humildade, tamanha energia teogónica e consideraria esta espécie miserável e infame, que cometeu tantos horrores, redimida só pelo facto de ter sido capaz de desejar e querer que tudo isso fora Verdade. Este romancista convida, depois, o arcebispo a pôr de parte esta hipótese e deixá-la para outros. Mas pede-lhe: "Admita porém que, embora Cristo não fosse mais do que o sujeito de uma grande narrativa, o facto de esta narrativa ter podido ser imaginada e querida por estes bípedes sem penas, que só sabem que nada sabem, seria tão milagroso (milagrosamente misterioso) como o facto de um Deus real ter encarnado verdadeiramente. Este mistério natural e terreno não deixaria de inquietar e enobrecer o coração de quem não crê."

2. Há um pequeno pormenor nessa bela página que importa realçar: não foi a espécie humana que inventou a sublime narrativa referenciada por Eco. Ele sabe que os textos do Novo Testamento, na sua grande diversidade, não estão construídos como uma fábula nem são tentativas de reconstituição histórica de uma personalidade célebre. São, acima de tudo, confissões da impotência humana para exprimir a significação universal de uma história singular, limitada, a de Jesus de Nazaré. Por mais inspirados que sejam aqueles textos, nunca conseguem disfarçar a sua impotência expressiva. Transpiram, na sua luta pela expressão, um excesso de realidade que mais ocultam do que revelam. Empenharam-se em multiplicar títulos que juntaram ao nome de Jesus e sempre com um sucesso limitadíssimo.

Conseguem, no entanto, mostrar-nos que a celebração do Natal como festa de família, se não levar uma grande volta, é a traição mais radical ao projecto de Jesus. Os próprios cristãos esquecem ou fingem ignorar que andam a colaborar no ocultamento de uma prodigiosa revolução.

3. A primeira preocupação de Jesus não era salvar a família que existia. Durante a sua intervenção pública, andou sempre numa polémica aberta com a família em que nasceu e cresceu - "A Sagrada Família!" - e com as famílias dos seus discípulos.

Para o Evangelho de S. Marcos, a família de Jesus tentou detê-lo porque o seu comportamento, em relação à vida familiar, era a de um louco (Mc 3, 20-21). O seguimento do texto mostra onde estava a loucura: ou invadia a casa com estranhos ou ia fazer família com quem não era da família (Mc 3, 31-35). De facto, o que ele andava a construir eram parábolas reais, vivas, extremas, do sonho de um mundo todo família. Como diz S. João, o seu grande desígnio não era nem familiar nem tribal nem nacionalista. Pretendia "reunir todos os filhos de Deus dispersos" (Jo 11, 52). E na construção dessas arrojadas parábolas, atrevia-se a dar um salto imenso: porque sois todos irmãos, a ninguém na terra chameis pai, pois um só é o vosso Pai, o celeste (Mt 23, 8).

O que mais interessa à curiosidade actual, a vida privada de Jesus, não interessa nada aos autores do Novo Testamento. Estes sabiam que a paixão de Jesus era e é tornar o mundo todo uma família ilimitada. É a partir deste horizonte que pode ser pensada uma profunda reforma da família actual: esta deve ser o espaço onde cada um descobre que a sua família não é só aquele agregado e suas ramificações. Mas, por vezes, nem ao mais elementar se chega nesta quadra do Natal. Nem parece que Jesus nasce para todos. Por outro lado, quando na Missa se reza o Pai-Nosso, os familiares estão todos juntinhos, regalados em privatizar o próprio Deus: quando se saúdam, fazem de conta que fora do sangue não há irmãos.

Dois mil anos de cristianismo foram assim tão perdidos? Não foram nem são. Há muitas pessoas e grupos cuja profissão é fazer família com quem não é da família. Mas há sobretudo Jesus Cristo: o homem para Deus e para os outros. Ele é o mundo às avessas.