O LABORATÓRIO

DE TAIZÉ

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .................................Público, Lisboa,9.10.2005

1. De Roma, boas notícias: Bento XVI encontrou-se com Bernard Fellay, superior da Sociedade de S. Pio X e sucessor de Marcel Lefebvre, o bispo cismático que desafiou a autoridade dos papas desde os anos 70. Encontrou-se, também, de forma inesperada, com Hans Kung. Este, embora tenha mantido plena comunhão com Roma, a Congregação para a Doutrina da Fé retirou-lhe, em 1979, a missão canónica de professor de Teologia. H. Kung e o Papa actual trabalharam juntos como teólogos no Vaticano II e foram ambos professores em Tubinga.

A situação era ridícula e tinha sido alimentada por Ratzinger como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Andava-se, por um lado, a construir pontes ecuménicas com as igrejas e comunidades cristãs. Por outro, criavam-se dificuldades, no interior da comunidade católica, que impediam o ideal de todo o ecumenismo que aponta para uma Igreja una e plural. Graças a Deus, Bento XVI acaba de afirmar, em Colónia, que não acredita, de modo nenhum, numa união das Igrejas que as obrigue a repudiar a sua própria história de fé. "[A união] não significa uniformidade em todas as expressões da teologia e da espiritualidade, nas formas litúrgicas e na disciplina. Unidade na multiplicidade e multiplicidade na unidade: como sublinhei na homilia para a solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo, no passado 29 de Junho, a plena unidade e a verdadeira catolicidade - no sentido mais original da palavra - vão a par."

Estas orientações não deviam depender da vontade de uma pessoa, fosse ela progressista ou conservadora. Quando o irmão Roger, prior da comunidade de Taizé, visitou o patriarca Atenágoras, ter-lhe-ia dito que João XXIII não podia fazer tudo o que queria porque aqueles que o rodeavam nem sempre estavam de acordo com ele. O patriarca observou: "O Papa não faz o que quer? Então ainda gosto mais dele."

2. A 16 de Agosto, na igreja da Reconciliação, este irmão Roger, filho de um pastor protestante da Suíça e fundador da Comunidade de Taizé, durante a oração da noite, rodeado de monges, crianças e jovens, foi assassinado aos 90 anos, por uma mulher romena de 36.

O Papa prestou, em Colónia, uma comovida homenagem a este grande pioneiro. Situou-o na corrente do ecumenismo espiritual de Paul Couturier. Este acreditava num mosteiro invisível que reúne, dentro dos seus muros, as almas apaixonadas por Cristo e pela sua Igreja. São precisos, no entanto, sinais desse mosteiro. Taizé tornou-se o seu símbolo. Fica muito perto da celebre e antiga abadia beneditina de Cluny, não muito longe da cidade de Lyon (França). Curiosamente, a 20 de Agosto de 1940, depois de uma visita a essa abadia e procurando onde iniciar urna experiência monástica ecuménica, o encontro com uma anciã católica indicou-Ihe o lugar do futuro: "Compre esta casa e fique, aqui; estamos tão sós, tão isolado." Era o dia da festa de S. Bernardo, o grande abade de Claraval, que, muito jovem ainda, entrara para a abadia de Cister. Começava, na humilde povoação de Taizé, o laboratório espiritual para o nosso tempo (1).

3. Se é o enorme movimento de jovens que faz olhar para Taizé com espanto, não se pode esquecer que, na raiz de tudo, vive uma comunidade ecuménica de monges: comunidade de vida , comunidade litúrgica, comunidade de acolhimento e serviço com horizontes universais. E, hoje, é uma comunidade numerosa que lhe permite ser, também, uma fraternidade em missão sem se destruir. Mas onde ela mais se manifesta é como experiência imediata de comunidade litúrgica, comunidade de oração. Oração que é um microcosmos ecuménico onde convergem, harmoniosamente, os antigos hinos luteranos, os tropários orientais, as antífonas gregorianas e as mais recentes composições de canto litúrgico em vernáculo. A palavra de Deus é solenemente proclamada em diversas línguas; há longos espaços de silencio que assinalam o ritmo vital da oração comunitária e pessoal. Às formulas e expressões permanentes juntam-se orações, em diversas línguas, que exprimem os problemas e necessidades mais urgentes do mundo actual. Taizé recuperou os sinais litúrgicos mais expressivos, a começar pelo hábito coral, pelos ícones orientais, pelas luzes e pelo incenso. É a oração de ontem e de hoje; as melhores expressões da oração oriental e ocidental de ontem com os contributos da criatividade e espontaneidade de hoje. Tudo isto faz de Taizé uma autêntica escola de oração, onde muitos descobriram o sentido da liturgia como festa e a urgência da oração pessoal como escuta no silêncio e na contemplação.

Em Portugal, já existem muitos jovens que foram a Taizé. Mas qual é a sua capacidade de influenciar as comunidades locais onde estão inseridos? Às vezes, tenho a sensação de que se esquece a monástica comunidade ecuménica onde nasce aquela escola de oração. E, no caso português, é fácil este esquecimento. A vida monástica foi, entre nós, muito mal tratada e, na restauração das ordens e congregações religiosas, quase esquecida. Só as formas de vida religiosa que pudessem ter actividades sociais e pastorais eram desejadas. E pagamos caro esse esquecimento. Talvez seja por isto que as nossas formas de rezar sejam tão miseráveis, tanto nas suas expressões musicais como simbólicas. Hoje, a combinação e o ritmo de silêncio, palavra, música e signos litúrgicos, quase nem é sentida como uma necessidade essencial. E, no entanto, sem esta combinação, alicerçada numa comunidade de vida, não há espaço litúrgico que nos acolha, nos provoque e nos reconstitua como filhos de Deus e como irmãos.

 
(1) A expressão "laboratório de Taizé" é retirada da obra de Danièle Hervieu-Léger "O Peregrino e o Convertido. A Religião em Movimento", Lisboa, 2005, Gradiva, que estuda, e forma muito original, a mobilidade religiosa contemporânea.