Uma Pastoral
da Incredulidade (III)



BENTO DOMINGUES, O.P. ...........................................Público, Lisboa, 3.10.2004

 

1. Alguns leitores continuam a lembrar-me que ainda não comentei as escandalosas transcrições que fiz da entrevista ao pastor luterano Thorkild Grosboll. Foi essa entrevista que levou o seu bispo a retirá-lo da paróquia de Ramlöse, situada num porto piscatório, a norte de Copenhaga.

É verdade que o pastor dinamarquês se apresentou como um não crente: "Não acredito num criador e num salvador, na ressurreição ou na vida eterna. Nunca acreditei nisso, mesmo quando era criança."

Não é esta, certamente, a melhor recomendação para dirigir uma paróquia... Mas Th. Grosboll será, de facto, um não crente?

Apesar da proclamação transcrita, olhando com atenção para o conjunto da entrevista, parece-me que não. Ao apresentar-se com negações tão rotundas, quer mostrar que os cristãos moldados pelos progressos das ciências não podem aceitar as afirmações do Credo na sua materialidade literal. Na sua grande maioria, não querem ser cristãos pré-modernos .

As desconstruções deste pastor destinam-se, como expressamente declarou, a libertar o que existe de divino na história do carpinteiro crucificado, a mais bela história que pode existir. Nela reside a alma do cristianismo.

Também não me parece um ateu, embora algumas das suas expressões sejam bastante simplistas. Deus é, para este pastor, "A" pergunta, a interrogação mais fantástica presente no coração da vida.

2. A esse respeito, vale a pena trazer para aqui um texto de Fernando Pessoa: "Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe a crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe crença num Deus definido. É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim afirmamos, sem dizer nada. Os atributos de infinito, de eterno, de omnipotente, de sumamente justo ou bondoso, que por vezes lhe colamos, deslocam-se por si como todos os adjectivos desnecessários quando o substantivo basta. E Ele, a que por indefinido não podemos dar atributos, é, por isso mesmo, o substantivo absoluto."

Esta passagem de "O Livro do Desassossego" não anda muito longe de S. Tomás de Aquino um dos maiores clássicos da teologia católica: "A Deus conhece-o melhor quem confessa que tudo o que dele pensa e diz fica aquém daquilo que Ele realmente é. (...) De Deus sabemos sobretudo o que Ele não é. O que Ele é, permanece para nós totalmente desconhecido. Por isso, estamos unidos a Deus como a um desconhecido."

Para este místico, o caminho da negação é, em teologia, o melhor para não se cair na idolatria das nossas concepções do divino: (...) "Quando partimos para o conhecimento de Deus, pela via da negação, negamos dele, em primeiro lugar, as coisas corporais; depois, negamos também as realidades intelectuais, quanto ao modo como se encontram nas criaturas, por exemplo, a bondade e a sabedoria; nessa altura, na nossa inteligência fica apenas a afirmação de que Ele existe e ela mergulhada numa certa confusão; finalmente, é a própria existência, tal como se encontra realizada nas criaturas, que também é negada a Deus; nada mais resta então do que uma certa trova de ignorância; nessa trova de ignorância que estamos unidos a Deus; pelo menos no tempo presente da vida, é essa a melhor maneira de lhe estar unido" (1).

3. Neste cumprimento de onda teológica, as negações do pastor luterano nada têm de escandaloso. No entanto, a pastoral da incredulidade que ele propõe concentra-se numa espécie de debate irrestrito em torno das expressões da fé dos seus paroquianos, pelas quais não manifesta nenhum apreço, o que revela muita arrogância. Deseja transformar o púlpito numa cátedra, mas com a fé dentro dos limites da simples razão! O que já tem muito que se lhe diga.

Parece-me esquecer que a própria "religião nos limites da simples razão", de marca kantiana, procura responder a uma pergunta que envolve um horizonte que ultrapassa o reino da razão teórica: diante do mal radical, "que me é permitido esperar"?

As virtualidades da linguagem simbólica não pertencem ao universo de Th. Grosboll. A indigência da sua filosofia e da sua teologia é incapaz de questionar um mundo reduzido à pura imanência.

Existem, sem dúvida, ambiguidades no sagrado, na religião, no culto, na fé, no rito e no mito. Os chamados "mestres da suspeita" ( Nietzsche , Marx , Freud ) não as esqueceram, embora tivessem reduzido a religião ás suas perversões. Mas os apelos à razão pura e dura de Th. Grosboll escondem uma visão demasiado curta e estreita da razão humana. Esta não pode ser reduzida à razão científica e técnica que calcula e manipula.

A razão humana inclui a razão simbólica, estética, ética e religiosa. Para evitar a manipulação emocional de alguns movimentos religiosos, as Igrejas não podem reduzir as suas celebrações a debates culturais. O silêncio deve ritmar uma liturgia que fale à inteligência através da festa de todos os sentidos. Neles também vibra a união do corpo e da alma de uma comunidade celebrante.

 
(1). Cf. Jean-Pierre Torrel O.P., " Saint Thomas d'Aquin , Maître Spirituel"