FILOSOFIA, RELIGIÃO
E CRISTIANISMO
BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, Maio de2005

Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino enalteceram a filosofia, dentro e fora do tecido das respectivas teologias. O último adoptou e divulgou uma fórmula que o precedeu: "A verdade, venha ela donde vier, provém sempre do Espírito Santo".

1.1. Jacques Lacan (1901-1981), célebre psiquiatra e psicanalista francês, afirmava, em 1975, que a filosofia "desde há muito tempo que não diz absolutamente nada de interessante para toda a gente. E quando dela sai algo, são coisas que só interessam a duas ou três pessoas". Ele próprio confessava que fugia da filosofia como da peste. Em contrapartida, estava persuadido de que a religião triunfaria não só da psicanálise como de muitos outros domínios: "Não se pode imaginar como a religião é poderosa." (1)

O jesuíta João J. Vila-Chã não fugiu da filosofia e tentou aproximá-la da religião. Imprimiu à Revista Portuguesa de Filosofia - que dirige desde o ano 2000 - uma orientação que tem privilegiado a publicação de monografias temáticas ou dedicadas a grandes autores. Interessam certamente a muitos estudiosos. O recurso a uma variada colaboração internacional de boa qualidade permite acompanhar as grandes tendências da reflexão filosófica, nas suas relações com as ciências e com a investigação sobre o fenómeno religioso em vários espaços culturais. Tem procurado acolher, em novos termos, uma tensão ancestral entre filosofia e religião e nomeadamente entre sabedoria humana e as bem-aventuranças do Crucificado, a mortal humilhação de Deus.

2. É sabido que Jesus Cristo foi tratado como um mestre que não passou por nenhuma das famosas escolas rabínicas do seu tempo. Por sinais indirectos, presume-se que tenha conhecido bem o mundo dos essénios. Frequentou a escola profética do austero João Baptista. Abandonou-a em nome de uma experiência filial de Deus, um Deus muito afectivo que não deprime o ser humano, antes o abre à infinita compaixão pelos excluídos.

Segundo o hino que abre o IV Evangelho, Jesus era o Verbo - o Logos - isto é, o filho da razão divina na fragilidade da condição humana. Era a luz no meio das trevas.

Paulo de Tarso frequentou uma grande escola rabínica de Jerusalém e perseguiu a igreja cristã. Caiu rendido diante da sabedoria manifestada na loucura do amor crucificado: "Os judeus pedem sinais, os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que, para os judeus, e escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo poder de Deus e sabedoria de Deus" (1Cor. 1-2).

A continuação dessa passagem é uma das peças mais brutais do Novo Testamento contra as religiões e as filosofias enfatuadas. Tertuliano (+ 222) incendiou a oposição entre a verdade da revelação testemunhada nas Escrituras e a razão filosófica: "Que tem a ver Jerusalém com Atenas?"

Entretanto, o filósofo Justino, O Mártir (+167), já tinha seguido por outro caminho. Depois de estudar todas as filosofias, reconheceu no cristianismo a "verdadeira filosofia". Mas, como cristão, não renegou, antes ampliou o horizonte do seu passado filosófico.

Depois dele, sem confusão nem separação, Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino enalteceram a filosofia, dentro e fora do tecido das respectivas teologias. O último adoptou e divulgou uma fórmula que o precedeu: "A verdade, venha ela donde vier, provém sempre do Espírito Santo."

3. Depois deste excurso, volto ao projecto de João Vila-Chã. Este jesuíta, depois de ter organizado, no ano 2002, um número da Revista Portuguesa de Filosofia sobre a problemática da encícilica de João Paulo II, Fé e Razão, surgiu, em 2004, com dois magníficos fascículos dedicados às relações entre filosofia e cristianismo. O primeiro aborda alguns aspectos dessa questão no séc. XX que excedeu o debate sobre a "filosofia cristã" dos anos trinta. No segundo, são apresentados os caminhos da grande indeterminação observada na pós-modernidade e as réplicas que suscita para uma nova compreensão da religião, da fé e do cristianismo. Estes dois números são contributos incontornáveis para muitos debates.

Entre ambos, apareceu outro, intitulado Sapientia Dei-Scientia Mundi, sobre Bernardo de Claraval e o seu tempo. Sem deixar de revisitar a posição de S. Bernardo em relação ao amor de Abelardo e Heloísa e as etapas da sua atribulada relação com a filosofia, este fascículo confronta-nos com essa figura extraordinária do séc. XII, um dos expoentes mais destacados no processo histórico da configuração cultural e espiritual da Europa.

4. Tem de ficar para nova oportunidade, uma homenagem ao singular itinerário filosófico de Paul Ricoeur (1913-2005), que deixou escrito com santo desapego: "Deus, na minha morte, faça de mim o que quiser. Não reclamo nada."

Foi um filósofo universitário da Igreja reformada de França (presbiteriana). Na linha de K. Barth, procurou sempre que o registo do filósofo não interferisse com o de "aprendiz de teólogo" e que a condição de ouvinte crente da Palavra não se infiltrasse de forma demasiado directa e imediata na sua reflexão filosófica. Apesar de toda a vigilância, e sem batota, a osmose entre o crente e o filósofo revelou-se inevitável. (2)

Seria importante estudar a originalidade desse intercâmbio, num fi1ósofo que viveu em diálogo com a filosofia francesa, alemã e americana. Sem nunca esquecer a tensão simbólica entre Atenas e Jerusalém.

 
(1) Jacques Lacan, Le Triomphe de la Religion, Précédé de Discours aux Catholiques, Seuil, Paris, 2005.
(2) Paul Ricoeur, A Crítica e a Convicção, Ed. 70, Lisboa, 1995.