Deus não fecha
ao sábado

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ............................Público, Lisboa, Abril de 2005

1.O título mais adequado à crónica deste IV Domingo da Quaresma podia ser este: as provocações de Cristo à cegueira da religião. Não era apenas um fragmento do Evangelho de S. João que me sugeria essa opção (Cf. Jo 9, 1-41). O tema da admirável peça de teatro, escolhida para a missa de hoje, é recorrente, de forma obsessiva, nas muitas narrativas de milagres do Novo Testamento. A irrupção do inesperado abriu ao cego as portas da prisão do sábado e tornou mais cegas as sentinelas do sagrado.

Para Jesus, qualquer preceito religioso que impeça a libertação humana deve ser sistematicamente violado. Para os seus contemporâneos, só um possesso do demónio podia atrever-se a tocar no sábado, dia consagrado ao Altíssimo. Jesus mostra um gosto especial em provocar, com actos e palavras, uma religião na qual, segundo ele, os próprios animais tinham mais sorte do que os seres humanos (Lc 13, 10-17)...

2. Dir-se-á que essas atitudes atribuídas pelos Evangelhos a Jesus - aliás, um judeu rebelde e marginal - destinam-se a desqualificar o culto judaico do qual os cristãos judeus acabaram por ser expulsos. Tratar-se-ia de um histórico e polémico ajuste de contas elaborado mais tarde pelos evangelistas.

Seja como for, nos dias de hoje, há quem não perceba como essas provocações, tão azedas e anacrónicas, ainda continuam presentes nas liturgias cristãs. Ao insistir-se na preferência de Jesus por fazer os seus milagres quase sempre ao sábado - dia em que até o próprio Deus repousou (Gn. 2, 2) - faz dele um perverso. E não admira que os fariseus digam que Jesus não passava de um clandestino aliado do demónio: "Ele não expulsa os demónios, senão por Belzebu, príncipe dos demónios" (Mt. 12, 24).

De qualquer modo, ficará sempre de pé a observação de um chefe da Sinagoga: porque não aproveitava ele os seis dias da semana para a sua actividade taumatúrgica?

Lidas nas missas, essas narrativas surgem como provocações fora de tempo e podem ser usadas para ridicularizar a religião judaica. Numa época de diálogo inter-regional e depois de João Paulo II, em nome da Igreja Católica romana, ter assumido as responsabilidades históricas dos cristãos na perseguição aos judeus, tudo deveria ser feito para eliminar o antagonismo entre judeus e cristãos.

Creio que tais observações esquecem que Jesus não é um caso errático na crítica ao culto que esconde a opressão dos pobres. Embora radicalizando-a até ao extremo, Jesus insere-se na corrente profética que, em nome de Deus, exige liberdade e justiça na terra. Sacrificar os seres humanos em nome de Deus é um sacrilégio. Mas, segundo Jesus, em nome do bem dos seres humanos pode-se, e por vezes deve-se, sacrificar os preceitos das instituições religiosas.

Há uma cena no Evangelho de S. Marcos que, por não ser sobre uma situação extrema, é paradigmática: (Jesus) "entrou na sinagoga e estava lá um homem que tinha uma das mãos paralisada. Observavam-no para ver se iria curá-lo ao sábado, a fim de o poderem acusar. Jesus disse ao homem da mão paralisada: levanta-te e vem aqui para o meio. E perguntou: é permitido, no dia de sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou matá-la? Ficaram todos calados. Então, olhando-os com indignação e magoado com a dureza dos seus corações, disse ao homem: estende a mão. Estendeu-a, e a mão ficou curada. Logo que saíram, os fariseus reuniram-se com os partidários de Herodes para deliberar como haviam de matar Jesus" (Mc. 3,1-6).

Se este caso parece ridículo, é precedido de outro ainda mais grotesco sobre alimentação. Levou, no entanto, Jesus Cristo a fazer uma crítica radical das instituições religiosas e que terminou numa conhecida sentença de alcance universal: "O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado" (Mc. 2, 27).

3. Passada a década de 70 do século passado, a religião voltou a estar na moda. "O Rumor dos Anjos" intensificou-se. Depois da crítica moderna a que foi severamente submetida e do verificado declínio da religião instituída na Europa - no contexto do descrédito de todas as instituições -, o ressurgimento, a disseminação e a recomposição do fenómeno religioso obrigaram os investigadores a deixarem-se surpreender pelo que está a acontecer na imensa variedade de experiências e atitudes espirituais e no mercado das religiões.

O Mil Folhas de 26 de Fevereiro de 2004 levou à primeira página do jornal PÚBLICO a notícia de que também "Jesus Cristo está na moda".

No seio do pluralismo religioso e do pluralismo cristológico, eu aposto num Deus e num Cristo que não fechem ao "sábado" nem em nenhum outro dia e que não organizem a sua agenda apenas segundo o calendário das instituições religiosas ou nos moldes da burocracia das dioceses, paróquias e movimentos que vivem, por vezes, na cegueira de confundir os seus programas e regulamentos, preceitos e juízos morais, com os desígnios, horários e juízos da divindade. Dizia S. Tomás de Aquino que Deus não se deixa anexar pelos sacramentos!

Jesus respondeu àqueles que o censuravam por se entregar em dia proibido à cura do mundo: "Meu Pai trabalha sempre e eu também" (Jo 5, 18). Cristo libertou-nos para um Deus que nos pergunta: que fazeis dos velhos e doentes que vivem e morrem na miséria e na solidão e das crianças a quem negais um futuro humano?