Uma carta por terminar de
João Paulo II

BENTO DOMINGUES, O.P. ..............................Público, Lisboa, 10.04.2005


1. O domingo é o dia consagrado à descoberta do método cristão para resistir à morte da esperança. O Evangelho de hoje (Luc 24,13-35) é uma narrativa com aspectos muito cómicos acerca da longa passagem da depressão à alegria da fé reencontrada na celebração eucarística.

João Paulo II, mediante a carta apostólica Fica connosco, Senhor - um dos seus últimos documentos de insistente e programada promoção devocional - escolheu precisamente o "ícone dos discípulos de Emaús" para servir de orientação a um ano inteiro (de Outubro 2004 a Outubro 2005) dedicado à vivência da eucaristia como "fonte e ápice da vida e da missão da Igreja". Além da realização de um congresso eucarístico internacional no México e da assembleia ordinária dos bispos no Vaticano sobre a eucaristia, destacou também, a este respeito, a importância da Jornada Mundial da Juventude, a realizar em Colónia (Alemanha), de 16 a 21 de Agosto de 2005: "A eucaristia é o centro vital ao redor do qual desejo que se congreguem os jovens para alimentar a sua fé e o seu entusiasmo."

Sublinhou que a iniciativa do Ano da Eucaristia não lhe aconteceu de repente. Já a trazia dentro dele e foi o desenvolvimento natural da orientação que quis imprimir à Igreja, especialmente a partir dos anos de preparação do Jubileu, e que retomou nos anos que o seguiram.

Como, porém, antes, durante e depois do Jubileu foram tantas as iniciativas e tantos os documentos publicados em torno da eucaristia, seria de temer que esta carta apostólica provocasse uma saturação de recomendações devotas em colisão com os programas pastorais das diversas Igrejas. João Paulo II não tinha, a esse respeito, qualquer preocupação. Pelo contrário. Estava convencido de que podia iluminá-los mais eficazmente, ancorando-os no mistério que constitui a raiz e o segredo da vida espiritual dos fiéis e de qualquer iniciativa da Igreja local. Não exigiu, por isso, que fossem suspensos os caminhos pastorais que as diversas Igrejas estavam a desenvolver. Só pedia para que neles fosse dado relevo à dimensão eucarística própria de toda a vida cristã: "Da minha parte, com esta carta, quero oferecer algumas orientações de fundo, com a esperança de que o povo de Deus, nas suas diversas componentes, queira acolher a minha proposta com pronta docilidade e vivo amor."

2. Não consta que João Paulo deixasse transpirar para o exterior os periódicos balanços críticos da sua intervenção na Igreja e na sociedade, não se esquecendo, porém, de pedir perdão pelos erros e pecados dos filhos da Igreja ao longo dos séculos.

Não deixou, no entanto, de manifestar uma viva consciência do sentido e do alcance da sua acção: "Há dez anos, com a Tertio milllenio adveniente [10 de Novembro de 1994] tive a alegria de indicar à Igreja o caminho para o grande Jubileu do ano 2000. Sentia que esta circunstância histórica se delineava no horizonte como uma grande graça. Não tinha ilusões, por certo, de que uma simples data cronológica, apesar de sugestiva, pudesse, por si mesma, comportar grandes mudanças. Os factos encarregaram-se infelizmente, de pôr em evidência, após o início do milénio, uma espécie de crua continuidade com os acontecimentos anteriores e frequentemente com os piores dentre eles.

"Foi-se delineando assim um cenário que, a par de reconfortantes perspectivas, deixa entrever opacas sombras de violência e de sangue que não cessam de nos entristecer. Mas, ao convidar a Igreja para celebrar o Jubileu dos dois mil anos da Encarnação, eu estava perfeitamente convencido - e ainda estou mais agora! - de trabalhar para os "tempos longos" da humanidade." Esta convicção pode parecer megalómana ou uma extrapolação para o futuro da sua grande influência na queda do Muro de Berlim.

Não é essa a minha opinião. A sua confiança no futuro, apesar de todas as nuvens, resulta de uma convicção profundamente cristológica. Para ele, "Cristo está no centro não só da história da Igreja, mas também da história da humanidade. Tudo foi recapitulado n"Ele." (Cf. Ef. 1, 10; Col. 1, 15-20.) E acrescenta: "Como não recordar o ardor com que o Vaticano II, citando Paulo VI, confessou que Cristo é o fim da história humana, o ponto para onde tendem os desejos da história e da civilização, o centro do género humano, a alegria de todos os corações e a plenitude das suas aspirações."

3. Depois deste pórtico solene, João Paulo II retoma na sua carta a apresentação da narrativa dos discípulos de Emaús, mas a atenção concentra-se em prementes exortações à participação na celebração da missa, nas devoções do culto eucarístico e na redescoberta do verdadeiro espírito do domingo.

Não existe, porém, nenhuma pista para superar uma das maiores contradições da vida actual da Igreja católica e bem presente nesta fervorosa carta de João Paulo II. Diz-se que a eucaristia e a fonte é o cume da vida e da missão da Igreja. Insiste-se na participação frequente na missa e no culto eucarístico. Mas não se anota nenhum caminho para que um grande número de comunidades católicas, por falta de padres, possa ter acesso à mesa do "pão da vida". Por razões de carácter disciplinar, encobertas por motivos pseudoteológicos, não se chamam, não se preparam nem se ordenam homens casados e mulheres para presidirem à eucaristia.

João Paulo II trabalhou de forma admirável para os "tempos longos da humanidade". Precisamos também de quem se ocupe do alimento eucarístico a que as comunidades cristãs têm direito. (1)

 
(1) Edward Schillebeeckx, Por Uma Igreja mais Humana, Paulinas, São Paulo, 1998