É sempre Advento

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .................................Público, Lisboa,3.12.2005
Tu mesmo, só tu és Deus de todos os reinos da terra; tu fizeste os céus e a terra.
Isaías 37, 16
 

1. Quem vai à missa sabe que hoje é o segundo domingo do Advento. Advento de quê? Advento de quem? De que estamos, à espera?

Li, já não sei onde, que Ernest Bloch (1885-1977) - um dos grandes filósofos do século XX, marxista heterodoxo - ao desejar as boas-festas de Natal aos seus alunos, dizia com ênfase: "É sempre Advento, ainda é Advento."

Ele não pretendia tocar na organização do calendário litúrgico dos cristãos. Exprimia, no entanto, a essência da sua filosofia e provocava a teologia cristã até às raízes. O autor da famosa obra O Princípio Esperança era ateu, mas sabia que "onde há esperança, há religião". Sem fé em Deus, alimentava a ideia da realização da escatologia no interior da história, numa pátria da solidariedade, através da superação da alienação humana e da história do sofrimento. Sonhava recuperar todos os vestígios de esperança latentes nas artes, nas utopias e na religião. O herdeiro universal das esperanças humanas seria, na sua rebuscada fórmula, "o futuro-ainda-não-tornado-tal".

Nesta nota, estou a simplificar, até ao extremo, um pensamento complexo e vigoroso que vê na esperança o princípio do dinamismo de toda a realidade. Mas que futuro para a individualidade insubstituível de cada ser humano ao longo da história? A religião sem Deus não serve as vítimas do tempo.

Mesmo assim, esta filosofia teve recursos para sacudir o pensamento cristão e suscitar várias teologias, a começar pela famosa Teologia da Esperança de Jürgen Moltmann, nascido em 1926.

Este fecundo teólogo protestante formula o princípio da sua proposta nos seguintes termos: "Na vida cristã, a prioridade pertence à fé, mas o primado pertence à esperança" no Deus que, em Jesus Cristo, vem abrir-nos um futuro novo na imprevisibilidade do Espírito Santo.

O próprio J. Moltmann contou a impressão que, nos anos 50, lhe causara o encontro com a filosofia de E. Bloch e exclamou: "Como foi possível que um tema destes tivesse escapado à teologia cristã? Onde foi parar, no cristianismo actual, o espírito primitivo da esperança? Foi então que comecei o meu primeiro trabalho acerca desta questão (...). Não tive a pretensão de ser o herdeiro de Ernest Bloch e, muito menos, de competir com ele. Pensei antes numa acção paralela à filosofia da esperança na linha das tradições teológicas e cristãs."

2. No seio de muitos debates, esta teologia teve os seus momentos de glória. Mas um outro filósofo, Walter Benjamim, nas Teses de Filosofia da História, fez observações que abalavam radicalmente a caminhada triunfal para o futuro: "Há um quadro de Klee, intitulado Angelus Novus e nele há um anjo que parece estar afastando-se de algo que olha com atenção. Tem os olhos esbugalhados, a boca aberta, as asas preparadas para o voo. O anjo da história deve ter esse aspecto. Numa série de acontecimentos, vê uma única catástrofe. Acumula ruínas e mais ruínas, lançando-as aos seus pés. Ele bem desejaria parar, acordar os mortos e recompor a fractura. Mas cai do céu uma tempestade que lhe emaranha as asas e é tão forte que não consegue fechá-las. Essa tempestade impele-o irresistivelmente para o futuro, ao qual volta as costas, enquanto o monte de ruínas sobe diante dele até aos céus. Essa tempestade é aquilo a que chamamos progresso."

Isto significa que o anjo da história vê um amontoado de ruínas precisamente onde o olhar utópico vê a génese e o carro do progresso. A concepção ascendente da esperança, rumo ao futuro, precisava de revisão. A teologia da cruz, proposta por Moltmann na obra O Deus Crucificado (1972), apresenta-se como a tentativa de levar a teologia a assumir a agudeza e a profundidade do olhar do anjo da história, tornado-a intérprete do sofrimento humano. A filosofia da esperança serviu para provocar a teologia da esperança cristã. A nova obra brotou do diálogo com a teoria crítica da sociedade, com a teologia hebraica do Holocausto e com a temática do sofrimento de Deus no sofrimento do mundo.

Como dirá Moltmann, "a teologia da cruz outra coisa não é senão o avesso da teologia cristã da esperança". A cruz modifica a ressurreição como antecipação do futuro de Deus, porque ela é sempre a ressurreição do crucificado. Ao introduzir no movimento messiânico a história do sofrimento, a obra O Deus Crucificado aprofunda, radicaliza e corrige a Teologia da Esperança.

3. Na passada quinta-feira, D. José Policarpo presidiu à Eucaristia de acção de graças pela beatificação de Carlos de Foucauld (1858-1916), na Basílica de S. Pedro, no dia 13 de Novembro. Não há figura do cristianismo moderno que tanto espere contra toda a esperança humana! Nunca viu sinais de futuro no silêncio a que se entregou. Era uma esperança crucificada à nascença. Em 1908, dizia ao seu bispo: "Os meios que Jesus nos deu para continuar a sua obra de salvação do mundo, os meios de que ele se serviu no Presépio, em Nazaré e sobre a cruz são: pobreza, humilhação, abandona, perseguição, sofrimento, cruz. Eis as nossas armas." A 1 de Dezembro de 1916 foi morto no meio de uma emboscada entre os berberes de Hoggar. Foi enterrado em pleno deserto.

Ele representa a Igreja que escuta antes de falar, que procura mudar antes de pregar a mudança da sociedade, que se faz pobre antes de encher a boca com a causa dos pobres. Quando se pergunta por que é que os Evangelhos são tão silenciosos acerca da maior parte da vida de Jesus - da quase totalidade da sua vida -, talvez tenhamos aí uma indicação de que nem tudo, na vida dos povos e das religiões, se deva medir pelos programas de aparente eficácia imediata.

A "falta de carisma" de Carlos de Foucauld já floriu em dez congregações religiosas e oito associações de vida espiritual. Isto mostra que, enquanto o mundo não acabar, é sempre Advento. Para não envelhecer antes de tempo e para continuar a ser Advento, a Nova Evangelização precisa de repensar as modalidades da sua eficácia.