Advento
e Vigilância

BENTO DOMINGUES, O.P. ..........................................Público, Lisboa, 28.11.2004


Os católicos celebram hoje o primeiro domingo do Advento. Pode-se perguntar: mas para que serve o Advento? A uma pergunta tão utilitarista só a publicidade comercial pode responder com autoridade e competência. Antecipou-se ao calendário litúrgico e passou a determinar os signos do Natal e a sua preparação.

A liturgia católica teima, no entanto, em mostrar que as incontáveis luzes da publicidade provocam a cegueira, não deixam ver a situação real em que nos encontramos, carregada de ameaças, a nível global e local. Os textos escolhidos para alimentar a meditação durante esta quadra intimam os católicos a abrir os olhos e a manterem-se vigilantes para não serem surpreendidos: "E não deram por nada, até que veio o dilúvio que a todos levou" (Rm. 13, 11-14; Mt. 24, 37-44).

Mas não basta. É urgente intervir para transformar as armas de guerra em instrumentos de paz. É essa a esperança do profeta Isaías proclamada no começo da missa: "Converterão as espadas em relhas de arados e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se hão-de preparar para a guerra (Is. 2, 1-5). Isto é, se queres a paz, prepara a paz, não a guerra!

Sei que os textos bíblicos não devem ser lidos como reportagens do passado, fotografias do presente, nem antecipações do futuro. Enquanto textos de simbologia teológica muito variada, mesmo quando descrevem, só podem sugerir e dar que pensar. Os "sinais do tempo" não falam sem interpretação, que é sempre arriscada.

2. Tendo isto em conta, não se podem esquecer ou apagar as mentiras que encobriram e continuam a esconder os segredos da guerra e da destruição do Iraque de alcance global.

Numa zona onde se encontram os mais importantes vestígios das mais antigas civilizações - Ur, Nínive, Mari, Babilónia e tantas outras que os arqueólogos puseram a descoberto -, as marcas da barbárie de tecnologia bélica dos EUA serão apagadas. Todas as mentiras e todas as violações dos direitos humanos serão em breve esquecidas - mesmo pelos adversários da guerra - para preparar o advento dos bons negócios. As próprias manifestações para evitar a tragédia já recolheram as bandeiras e os cartazes.

Estão prometidas eleições livres para breve. Para facilitar a realização desta promessa, os novos senhores - para não cair na trapalhada de falsificar os resultados como na Ucrânia - preferem destruir as cidades rebeldes e matar os eleitores indesejados. Os mortos ainda não foram todos enterrados. As escavadoras também servem para abrir valas comuns para aqueles que não terão a presença de quem os reconheça e chore.

Como nem as civilizações nem os indivíduos são eternos, a instauração da democracia à bomba tem a sua lógica. Se apenas o futuro conta, todos os meios para alcançar os objectivos desejados estão justificados. Em nome da democracia do futuro rouba-se o presente aos cidadãos.

A memória de Jesus Cristo crucificado - celebrada mesmo durante o Advento - devia impedir-nos de aceitar as mentiras que enchem o mundo de sangue inocente.

A vigilância que o Advento cristão exige deve servir para rever as nossas ideias sobre o terrorismo, os seus grupos, redes e actuações para não cedermos a ingenuidades terríveis.

Mas deve alertar-nos também para os perigos do reforço dos actuais monopólios da violência legitimada. Não se pode esquecer que foi numa situação de monopólio nuclear que Hiroxima e Nagasáqui foram arrasadas. A soma de declarações em torno das armas biológicas e da não-proliferação nuclear podem ocultar a necessidade do "desarmamento geral e completo" de que se fala na ONU desde 1959 e que os delegados da Santa Sé não se cansam de reclamar. O horizonte dessas intervenções fundamenta-se na sugestiva parábola de Isaías acima evocada: o que se gasta em armamento e na guerra é, em grande parte, roubado ao combate à fome, às doenças e ao desenvolvimento de todos os povos.

3. No Advento redobram as iniciativas a favor dos "sem-abrigo". A casa é um direito. Como, segundo a narrativa evangélica, Jesus nasceu num curral - Maria e José não encontraram lugar na estalagem, nem em Belém, nem na periferia -, estas iniciativas encontram um eco maior na quadra do Natal.

Este ano, por causa da nova Lei do Arrendamento, o período do Advento vai ser vivido com alegria por alguns e com muita angústia por outros. Os crentes na justiça inerente às leis do mercado não podem deixar de louvar, sem restrições, esta reforma. Nem todos, porém, receberam a graça da fé nessa automática justiça. No império irrestrito da lei do mercado, a Lei do Arrendamento não precisa de grandes cuidados, nem de ser submetida ao debate público que a pudesse examinar sob todos os aspectos. Daí a necessidade de vigilância. A pressa em a despachar leva a supor que existe nela algo que se deseja esconder.

Uma lei não pode ser avaliada, apenas, pelas injustiças que combate. Deve ser confrontada também com os males e as injustiças que provoca. Uma lei que entregue o poder absoluto e arbitrário a alguns cidadãos deixa os outros sem qualquer abrigo legal. Esta lei, para não ficar conhecida como a "lei do despejo", precisa de ser corrigida antes de ser publicada.

Somos um país "de repentes", alérgicos a pensar e a decidir com ponderação. Depois de um longo marasmo, caímos facilmente na tentação de substituir uma asneira por outra.