Frei Bento Domingues, o.p.

 

Contra a velhice e a morte

Público, Lisboa, 18.04.2010

1. Para além do meramente factual, talvez nunca seja possível dizer algo de indiscutível, de aceite por todos, acerca da morte e da velhice.

Li, na Babelia, duas notícias bastante desenvolvidas sobre duas obras literárias que me impressionaram pela sua aparente banalidade. A primeira referia-se ao Libro de los muertos do grande escritor Elias Canetti, judeu sefardita (1905-1994). É constituído por cadernos de apontamentos que testemunham a sua permanente “declaração de guerra à morte”. Para ele, mais repugnante do que a morte, é a submissão à morte: “O objecto sério e concreto, a meta declarada e explícita da minha vida é conseguir a imortalidade para todos os homens. Em tempos, quis dar este objectivo ao personagem central de um romance que a si mesmo se chamava o inimigo da morte”. Do seu projecto de matar a morte ficaram fragmentos e aforismos de luta, agora publicados.

Dizer, como Fernando Savater, que se trata de um protesto contra o irremediável, não é sinal de grande argúcia.

A segunda é sobre um romance, El don de la vida, acerca da velhice e da morte, de Fernando Vallejo, escritor colombiano. Retardou-o quanto pôde, mas apressou-se, agora, a escrevê-lo, com 67 anos. Gostaria de esperar pelos 78 ou 80 anos para o elaborar a partir da sua própria experiência. Teme, porém, que, nessa idade, já não lhe apeteça, já não tenha gosto nenhum em falar da velhice.

Dir-se-á que sobre esta idade há atitudes prosaicas mais eficazes do que as obras literárias ou filosóficas. Segundo consta, a medicina anti-envelhecimento, focada na prevenção e detecção precoce de uma patologia, está apoiada em cinco pilares: nutrição, medicina desportiva, estética, optimização hormonal e genética e biologia molecular.

Como ainda não se consegue evitar o envelhecimento, aconselha-se a envelhecer com qualidade. Esta dependeria de sete factores: prática regular de exercício físico, uma boa alimentação, não fumar, não beber bebidas alcoólicas, manter um peso regular, dormir sete a oito horas e estimular o cérebro.

As consequências da revolução biotecnológica e dos avanços da neurofarmacologia ainda estão cheios de incógnitas que a Bioética tem de seguir com cuidado, pois os cenários possíveis não são todos igualmente desejáveis. Não se esqueça a sentença de Paracelso: “não são os olhos que fazem o homem ver; é o ser humano que faz com que os olhos vejam”.

2. Por enquanto, todos esses avanços, na direcção de uma vida longa e feliz, ainda não conseguem “matar a morte” como desejava Elias Canetti. Como preencher, em nós, o grande vazio deixado pela morte daqueles que amamos? A morte tornou-se, no entanto, nas sociedades modernas, um tabu, um desejo de a negar ou, pelo menos, de a esconder. No entanto, as obras acerca da arte de bem morrer e de responder às perguntas sobre o Além estão sempre a aumentar. Nem sequer faltam enciclopédias acerca de todos os saberes e crenças sobre a morte e a imortalidade. As várias religiões encenaram, na sua linguagem simbólica e nos seus ritos, formas de reanimar o grande vazio deixado pela morte.

Desde a Antiguidade, segundo os diferentes povos e culturas, projectaram-se para depois da morte os cenários geográficos do que havia de melhor, de pior e também de medíocre neste mundo. Dir-se-á que essa imaginária duplicação do mundo só prova que o desejo de ser humano para sempre é incurável, mas o desejo não é suficiente para fundar uma realidade. O único caminho aconselhável seria o da reconciliação com os nossos limites. O que não tem remédio, remediado está. É, porém, aqui, que tudo se complica. Enquanto certas formas de sabedoria se empenham em erradicar o desejo até ao vazio total, para atingir a verdadeira iluminação, passando quase sempre por diversas reencarnações, há outros caminhos que, longe de trabalharem pela aniquilação dos desejos, os intensificam, exigindo, no entanto, a sua conversão, um nascer de novo.

3. No cristianismo juntaram-se, no seu nascimento e ao longo dos séculos, várias influências. Na Quarta Feira de Cinzas, nas palavras do seu antigo ritual, há uma antropologia pouco entusiasmante que roça o niilismo: lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar.

Não é, porém, nessa declaração, que se pode encontrar a originalidade da revelação cristã. Esta é apresentada por S. Lucas. Jesus enviou em missão os discípulos que regressaram entusiasmados com o êxito do seu trabalho. Jesus confirmou que tudo aquilo tinha sido espantoso, mas não quis apoiar uma Igreja do sucesso: Não vos alegreis pelo facto de nada deste ou de outro mundo ter resistido à vossa palavra; alegrai-vos, sobretudo, porque os vossos nomes estão escritos nos Céus. O mais interessante é que o próprio Jesus se comoveu com o que disse: muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram (Cf. Lc 10, 17-22). Afinal, que disse Jesus de tão inaudito? Traduzindo: alegrai-vos porque a vossa vida está para sempre inscrita no coração de Deus e nada nem ninguém vos poderá arrancar desse amor. Sois pessoas amadas para sempre. Não há morte que possa vencer este amor.

 
Página principal - Mapa - ISTA - Bento Domingues - Naturalismo - Jardins - Teatro - Letras - Viagens
.