Guerra religiosa esvaziada

 

 

 

1. Segundo alguns meios de comunicação social, estava preparada uma guerra religiosa, entre a Igreja e o Governo de maioria socialista, que seria declarada durante a Assembleia plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), reunida em Fátima, de 31 de Março a 03 de Abril de 2008.

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, .2008

Para desencadear o conflito, a Igreja teria motivos graves: o anteprojecto de simplificação do processo de divórcio, a suspeita de um ateísmo militante do Estado, as tensões acerca dos atrasos na regulamentação da Concordata, o receio da legalização do casamento dos homossexuais, a falta de resposta da ministra da Educação acerca da presença da Igreja nas escolas, a assistência religiosa nos hospitais, entre outros.

Numa queixa pública, D. Carlos Azevedo, porta-voz da CEP, realçava alguns em tom paternalista: “Há forças dentro do Governo que têm uma postura de ataque à Igreja católica e penso que falta, da parte do primeiro-ministro, uma vigilância coordenadora de actos e medidas avulsas que ferem e atingem quem anda há muito a servir a população”. Pede a José Sócrates “uma ética política que não fique refém dos interesses imediatos nem das influências de um ou outro ministério e do PS” (público, 30/03/2008).

2. Perante esse clima, uns imploravam o regresso de D. José Policarpo, o conciliador, outros insistiam na opção por uma linha ainda mais dura.

Nunca acreditei muito nessa retórica de guerra – recorrente, aliás, em títulos, notícias e comentários de toda a ordem - e não era só porque havia, pelo meio, o dia 1 de Abril. Não conseguia imaginar que o episcopado português ignorasse o recente desfecho do lamentável afrontamento entre os sectores mais conservadores do episcopado espanhol, comandado sobretudo pelo cardeal Rouco Varela, e o governo de José Luis R. Zapatero. Ao confundir a missão da Igreja com a política do Partido Popular, liderado por Mariano Rajoy, não foi só este o derrotado. Valeu à imagem beligerante da hierarquia espanhola, a intervenção do Núncio Apostólico, D. Manuel Monteiro de Castro, por sinal um português, que, no momento mais quente, convidou Luis Zapatero para uma agradável merenda na Nunciatura.

Em que ficou, afinal, a tempestade anunciada? O porta-voz, D. Carlos Azevedo, saltou. Foi substituído pelo padre jesuíta, Manuel Morujão. A imagem dos Bispos fica, assim, mais resguardada perante as fábricas de opinião. Alguns dossiers, como o da simplificação do processo de divórcio, nem considerados foram. No programa “Diga Lá Excelência”, D. Jorge Ortiga, reeleito presidente da CEP, apareceu manso como um cordeiro. Esclarece: “Reconhecemos, e afirmei-o categoricamente, a laicidade do Estado. Gostaríamos, e falei sempre no condicional, que a laicidade fosse uma laicidade inclusiva, que incorporasse a dimensão religiosa nas suas atitudes e, daí, que tivesse feito essa afirmação, onde efectivamente dizia que um Estado militantemente ateu talvez não seja aquele que nos convém”. Confessa, por outro lado, que não há nenhuma intenção, na Igreja, de atacar e ferir o Governo, acrescentando algo que poderá ser considerado oportunista: “Neste momento a Igreja em Portugal não está numa situação de atacar, mas de diálogo”. (público, 06/04/2008).

3. O presidente da CEP teve o cuidado de não atribuir as dificuldades da Igreja só às forças adversas. Sublinha que as suas intervenções não tinham, como primeiro destinatário, quem deseja enfraquecer ou impedir a influência da Igreja no espaço público, embora saiba que esse fenómeno é real. Fala, sobretudo, para o interior da Igreja: “é aí que nós temos de insistir. Temos de ter consciência de que cerca de 90 por cento dos portugueses se declaram católicos e temos de assumir a responsabilidade e interrogarmo-nos porque não são praticantes. Temos muita culpa nisso”.

Acertou no alvo. Portugal não está em baixa quanto a preocupações de ordem espiritual. Há investigações que documentam o seu crescimento. Pelo contrário, a queda da prática sacramental é impressionante e esta, na Igreja católica, é insubstituível. Não se percebe como as orientações do Vaticano que a exaltam acabem por a tornar impossível em muitas situações. Por isso, não direi que a culpa é do episcopado português, salvo por este não contrariar algumas orientações romanas incompreensíveis. O grande cisma, na Igreja pós Vaticano II, não é o dos “lefebvristas” franceses, para os quais, agora, se dirigem os passos da reconciliação. A opção manifestamente errada, sem remédio à vista, começou em 1968 com a publicação da encíclica “Humanae Vitae”. Como diz o bispo Georges Gilson, “o que decidimos em 1968 não é nem praticado nem sequer pensado. Para mim, é um drama, não há outra palavra” (1).

A decisão desastrada de há 40 anos resulta precisamente da confusão denunciada na entrevista de D. Jorge Ortiga: “Às vezes, pensa-se que a Igreja é hierarquia. Eu acho que a Igreja não é hierarquia”. Todos os cristãos podem dizer com verdade: “Nós somos Igreja”.

 
(1) Catherine Grémion / Hubert Touzard, L’Église et la contraception: l’urgence d’un changement, Paris, Bayard, 2006.