UMA SANTIDADE
MUITO CHIQUE

BENTO DOMINGUES, O.P. ...........................Público, Lisboa, Maio de 2006

Pela distância que existe em Portugal entre o número dos muito ricos e os pobres, não me surpreende que se pense em preparar uma Fátima chique
para gente sofisticada.

1.Consta que já existe um estilo muito chique de ir a Fátima, a pé. Uma combinação requintada na distribuição do tempo, do repouso, da boa mesa, do apoio, tomou um percurso muito duro num rico passeio de turismo religioso. As reportagens e as discussões sobre as expressões tristes e doloristas da religião de Fátima perderam o exclusivo. Gente muito chique terá esvaziado esse tema rapidamente e sem dor. Em vez da irritada Fátima nunca mais do padre Mário de Oliveira, surgiu Fátima cada vez mais e com mais prazer. Seja como for, o passado dia 13 de Maio, com cerca de 350 mil peregrinos, riu-se de quantos, desde há vários anos, se deleitavam a prever a decadência irreversível da maior peregrinação do Ocidente. As televisões, que não morrem de amor pelo conhecimento do fenómeno religioso na complexidade das suas manifestações, preenchem horas e horas, até ao tédio, quase só com imagens de repetida banalidade.

2. D. António Ferreira Gomes, cujo centenário foi comemorado no passado dia 10, não morria de amores nem por Salazar nem pelo cardeal Cerejeira nem pela religião de Fátima. Num diálogo com Óscar Lopes, em 1970, numa mesa-redonda na qual também participei e que Anselmo Borges lembrou no passado domingo (DN 14/05/2006), o famoso bispo destilou - com a sua voz inconfundível - a pouca simpatia que lhe mereciam as seduções da Serra d"Aire: "Sabemos que por baixo de Fátima ainda há todo um culto mágico que, tomado a sério, é uma ofensa a Deus, porque, na realidade, a magia está a embotar o sentimento religioso do povo. A magia é uma vontade de encadear, de prender as forças sobrenaturais, consideradas mais como malignas do que como benéficas. Ora, isto, em relação à religião cristã, é a maior ofensa que se pode fazer a um
Deus de bondade. Mas nós lidamos com isto, lidamos com a religião utilitária do "dou para que me dê". Eu prometo, eu faço uma promessa para que Deus me faça isto ou aquilo. Faço um negócio, um contrato. E para quê? Evidentemente, para a vida, para a saúde, para o dinheiro, para tudo. Ora,
isto, como muita piedade e muita fé no nosso povo, não é religião cristã de forma nenhuma."

Não considerava, por isso, que designar a religião como "ópio do povo" fosse sempre um insulto. Para D. António Ferreira Gomes, o cristianismo e Jesus Cristo, que continua vivo no Espírito, nada têm a ver com esse tipo de religião. Mas insistiu que, "para o povo, a religião, no geral, não significa nada de transcendente". Para o famoso bispo do Porto - um cristão metafísico e político, no alto sentido da palavra -, a religião autêntica vive-se num movimento de transcendência para o Outro e para os outros, para Deus inabdicável e para os irmãos.

A religião que parece destapar o céu, mas na terra levanta muros de separação, é uma mentira.

3.. Seria ridículo ver Fátima dos peregrinos como um conjunto de empresas comerciais. Mas também é utópico esperar a sua rápida metamorfose num lugar de beleza. Em 350 mil pessoas que foram a Fátima no passado dia 13 de Maio, as motivações nunca poderiam coincidir. Mas pela distância que existe em Portugal entre o número dos muito ricos e os pobres, não me surpreende que se pense em preparar também uma Fátima chique para gente sofisticada. E compreende-se. Uma Cova da Iria privada das inconvenientes ameaças do inferno não pode insistir numa eternidade celestial demasiado igualitária, e, também por isso, aborrecida. Quem vive na terra experiências de muito luxo tem de fazer ensaios pacíficos de uma religião chiquérrima com garantia de replicações criadoras pelos séculos dos séculos. Vi na revista Homem, referindo a imprensa internacional, que se prepara o clima para fazer de Bento XVI - ao fim de um ano de pontificado - um Papa que prefere ser chique em tudo e não só nas suas selecções musicais. Andaria a seleccionar costureiros e as melhores marcas para vestir e calçar. Compreendo. As pessoas chiques não podem com a persistência da memória das imagens finais de João Paulo II, nem com a de João XXIII, um rústico que viveu e morreu pobre. Eu que tantas vezes fui às suas audiências aos peregrinos, só para ver o esplendor de Deus nos gestos daquela bondade desarmante, cheia de humor, também não acredito que possa ser recuperável pela religião muito chique. Todavia, apesar de tudo o que por aí se escreve e diz de Bento XVI, eu prefiro a imagem verosímil apresentada por António Marujo num livro bem informado e sóbrio (1).

4. Agora, porém, não é Fátima nem o Papa que enchem os meios de comunicação. O que mais conta é aquilo de que não se pode saber rigorosamente nada. Com a suspeita de que a Igreja ocultou a realidade humana de Jesus, o seu fascínio transferiu-se precisamente para o apócrifo, para o oculto. O Código Da Vinci deixa-me completamente indiferente. Que Jesus tenha sido celibatário ou tenha deixado um rancho de filhos não afecta, em nada, a minha fé na sua misteriosa e fascinante personalidade. Jesus Cristo nunca se apresentou com a missão de aumentar a natalidade. Deu a vida pela transformação da terra em reino de Deus, isto é, num mundo fraterno. A sua vida privada nunca interessou os primeiros que escreveram sobre ele, nem a mim me interessa.

 
(1) Cf . Um Papa (in)esperado, Paulus, 2006.