Os inconvenientes
da regra de ouro

 
BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, 10.09.2005

1. Depois das férias, é habitual falar da rentrée política, identificada com o ritual, algo vazio, das declarações partidárias. Mas o futebol e as conversas de nojo que alimenta continuam a comer a cultura, a política, as televisões e os jornais. Quanto a estes, o "Independente" já morreu, o "Expresso" pensa renascer com receitas de marketing, mas o "Sol" que se anuncia pode crestá-lo, se não for ele próprio a ter de passar pelo inverno. A verdade é que os diários também não gozam de grande saúde.

No panorama da rentrée, a diferença é constituída pela grande entrevista de Mário Soares nas cinco primeiras páginas do DN (31. 08. 2006). Não foge a nenhuma pergunta a começar por aquelas que se referem ao seu desaire eleitoral e ao conteúdo do retiro que estes longos meses lhe permitiram. Além das viagens ao Brasil, à Venezuela e a Marrocos, acaba de ser reeleito presidente da Fundação Portugal-África e está para breve o lançamento do seu livro com Federico Mayor, " Um Diálogo Ibérico no Quadro Europeu e Mundial", em Madrid, Barcelona e Lisboa, pelo Círculo de Leitores. E sobram-lhe projectos, solicitações com gosto de viver e intervir.

A própria entrevista – da qual destaco, aqui, alguns pontos –   também se situa no quadro ibérico, europeu e mundial: «O iberismo é um facto. Hoje, somos todos ibéricos. Entendemo-nos a falar português, castelhano, catalão, galego. Temos raízes comuns, histórias paralelas e temos um mercado ibérico integrado. Não tenho medo dessa integração. Temos empresas a entrar em Espanha com muito sucesso». E pensa que, hoje, não há razões para complexos. As várias culturas e autonomias podem ter uma dimensão política: «Estamos em condições de poder antever que Portugal e Espanha, Estados europeus, possam de novo vir a estar na vanguarda da civilização como no século XVI, quando levaram a Europa ao mundo e trouxeram o mundo à Europa. Não é preciso ser profeta para ver que Espanha e Portugal podem de novo vir a ter um papel importante na Europa e no mundo se souberem articular as suas políticas. É preciso que saibamos jogar a nossa carta europeia, de forma convergente, na América Latina, no Atlântico e no Mediterrâneo».

2. Mas a entrevista não se move, apenas, no plano dos grandes desígnios. Confessa-se amigo de Israel com provas dadas: foi ele que estabeleceu relações diplomáticas entre Israel e Portugal que lhe trouxeram problemas internos, quando era primeiro ministro. Sempre foi a favor de Israel, mas teme «que os israelitas, tendo deixado de ser perseguidos, estejam, paulatinamente, a tornar-se perseguidores». E concretiza: «Choca-me que não tenham a percepção de que estão a criar ódios sobre ódios, dificilmente reversíveis. A meu ver, a intervenção no Líbano não tem qualquer justificação. O rapto de dois soldados é um pretexto sem sentido. O Líbano é um Estado em que várias religiões coexistem, em que há convívio e alguma tolerância. Uma excepção no Médio Oriente. Pois foi este país, de gente culta e aberta, que Israel, com as costas quentes pela Administração Bush, mais uma vez atacou. Que ganhou com isso? Novos problemas».

Não aceita que tudo aconteceu porque Israel teve de se defender dos raptos do Hezbollah. Para Mário Soares, isso não tem sentido, «pois é uma matéria em que Israel não tem autoridade: raptou demasiadas figuras do mundo árabe e particularmente palestinianos, que também são pessoas humanas». E pergunta: «como é que o rapto de soldados israelitas pode justificar a destruição de Sídon, Tiro e de uma parte de Beirute? Andei por lá há mais de 20 anos. Visitei Arafat em Beirute quando Israel bombardeava a cidade em que ele se encontrava. Sei o que foi e o que custou ao mundo a anterior invasão. Agora repete-se a história. Com que vantagem? A derrota de Israel, amplamente reconhecida, e a glória do Hezbollah, que conta hoje com o apoio de xiitas, sunitas, druzos e maronitas».

É evidente que, para Mário Soares, todos perderam. Mas quem perdeu mais foi Israel. Não conseguiu destruir o Hezbollah e não o conseguirá desarmar, provavelmente. Se Hezbollah não esconde que gostaria que Israel não existisse, Soares acrescenta que esse desejo «é recíproco e é preciso respeitar os dois lados. O ódio que os americanos e os ingleses têm vindo a semear no mundo árabe, com a invasão do Iraque, faz com que agora nem sequer possam integrar o corpo da ONU no Líbano. Pela força das circunstâncias, os americanos começaram a perceber que a sua ambição imperial só os prejudica. Bush criou uma crise gravíssima de credibilidade. A crise do petróleo, por ele criada, está a desestabilizar o mundo contra o império. Há uma contestação em toda a América Latina. E uma manifesta reserva mental dos países emergentes como a China, a Rússia e a Índia contra a política de Bush. Mesmo no Reino Unido. Ninguém respeita a posição de Israel que, aliás, está a ser muito contestado no plano interno. É algo que nunca se viu. De uma gravidade espantosa para o Ocidente».

3. Concorde-se ou não com a posição deste ex-Presidente da República, ela tem a vantagem de mostrar que a força e a política unilateral, baseada nela e só nela, nunca poderá garantir a paz. E como diz Filipe González, o epicentro da paz e da guerra continua, como há décadas, na solução do problema palestiniano. Tudo terá de voltar ao começo: nem Israel pode continuar a ser um Estado colonial, nem a comunidade palestiniana pode apostar na liquidação de Israel. Há conflitos que não se resolvem pela derrota total do adversário. Este é um deles: «Só um acordo que respeite as resoluções fundamentais da ONU poderá trazer a paz e a estabilidade a palestinianos e a israelitas» ( el país, 01. 09. 2006).

Como promover o reconhecimento da antiga "regra de ouro", tanto na versão negativa – "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti" – como na versão positiva – "faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti"? Esta luz de ética recíproca e universal não é pacifista. É pacificadora. Só tem dois inconvenientes: não favorece o negócio das armas e exige a mudança da mente e do coração.