Como cuidar da

PAZ?

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa, 23.07.2006

O terrorismo dos dois lados é sempre justificado como exigência de defesa ou como actos de resistência ou de retaliação às violências inimigas. No fundo, parece que ninguém acredita na possibilidade da coexistência pacífica de um Estado israelita e de um Estado palestiniano.

Quando a desgraça tomar de novo conta do Líbano, quando não houver mais nada a salvar, os EUA, a UE, a ONU, arranjarão maneira de colocar no terreno uma força de separação para enterrar os mortos.

1.Os niilistas não pecam por subtileza, sobretudo diante de questões que os outros julgam complexas, com uma história ainda pouco clarificada e com os labirintos dos interesses obscuros e a face dos interesses proclamados.

Segundo essa filosofia, para os belicistas de Israel, a destruição de qualquer possibilidade de um Estado viável palestiniano é a razão de ser de toda a sua política e de todas as suas incursões terroristas. Para o Hamas, e sobretudo para o Hezbollah, a destruição do Estado judaico é o objectivo de todas as suas intervenções. O terrorismo dos dois lados é sempre justificado como exigência de defesa ou como actos de resistência ou de retaliação às violências inimigas. No fundo, parece que ninguém acredita na possibilidade da coexistência pacífica de um Estado israelita e de um Estado palestiniano. Neste momento, Israel invoca exigências de defesa para uma guerra de destruição do Líbano, embora por causa do terrorismo de Hezbollah.

O Estado de Israel gosta de se mostrar ávido de diálogo, só que nunca tem um interlocutor válido: Arafat não servia e muito menos, agora, o governo livremente eleito do Hamas, julgado inimigo do Estado de Israel. O Hezbollah, que tinha feito recuar Israel, acabou por facilitar uma nova guerra. Quando a desgraça tomar de novo conta do Líbano, quando não houver mais nada a salvar, os EUA, a UE, a ONU, arranjarão maneira de colocar no terreno uma força de separação para enterrar os mortos.

Os EUA e Israel pensam que vão desenhar um novo mapa do Médio Oriente e dos interesses em jogo. O Hezbollah e o Irão procuram resistir a esse desígnio. O Iraque já é uma agonia democrática.
Não vale a pena insistir, mas Bush, mesmo com o desastre diante dos olhos, pensa sempre que está a inaugurar uma grande vitória. Quando terminar a operação bélica de Israel no Líbano, saberemos a amplidão da desgraça por alguns anos. Para os niilistas, isso não tem importância nenhuma: uns morrem e outros nascem e haverá sempre carne para canhão.

Dentro do paradigma, "para eu existir não podes existir tu", mesmo a justiça do "olho por olho, dente por dente", é sempre demasiado pacífica. É preferível que o outro fique sem olhos e sem dentes. Se desaparecer, melhor.

Quanto aos "direitos humanos", serviram bem para acalmar as consciências depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, nem os todos os Estados que assinaram a declaração voltariam à mesma ingenuidade. Os próprios EUA acham bem ser democraticamente terroristas, violadores desses direitos, praticantes da tortura para acabar de vez com o terrorismo. A UE tem sempre o senhor Javier Solana para dizer as banalidades convencionadas, regressando a Bruxelas com a convicção que desempenhou um papel importante, não fazendo nada.

Os grandes, reunidos em São Petersburgo, têm mais que fazer do que cuidar dos pequenos. Estes são sempre muitos e têm muita mais gente para morrer.

2. Bento XVI não gosta das "ideologias caracterizadas pelo niilismo ou pelo fanatismo, materialista ou religioso". Já anunciou o tema de reflexão para o XL Dia Mundial da Paz que se celebrará a 1 de Janeiro de 2007. Não aceita a propaganda e a crescente aceitação de estilos de vida desordenados e contrários à dignidade humana que vão debilitando os corações e as mentes das pessoas, a ponto de extinguirem o desejo de uma convivência ordenada e pacífica. Pensa que isso representa uma ameaça para a humanidade, porque a paz está em perigo, quando a dignidade humana não é respeitada e quando a convivência social não visa o bem comum. Para este Papa, "a pessoa humana é o coração da paz".

De facto, nas guerras, é a própria pessoa humana que está realmente ameaçada. Nas guerras não há pessoas, há interesses que, mesmo quando legítimos, falam sempre mais alto do que as pessoas. Há sempre menos petróleo do que gente. A única esperança é terrível: a morte acaba com todo o sofrimento.

3. Para que servirá ganhar todas as batalhas, ganhar todas guerras, se se perder o sentido da justiça, do amor e da paz para todos? Que adianta a vitória da tribo, se a humanidade da própria tribo e a das outras tribos for derrotada? Será possível acreditar numa paz sem vencidos nem vencedores?

É necessário mudar de paradigma teológico e humano. Importa desterrar o Deus da guerra. Dizem que Hezbollah significa "partido de Deus". Não conte com o meu voto. E o "Deus dos exércitos" de Israel é um Deus terrível.

Não renuncio, no entanto, ao nome de Deus que está para além de todo o nome. Gosto do paradigma de um Deus criador, um Deus poético com o prazer de criar seres humanos que sejam a alegria uns dos outros e façam, deste mundo, um jardim para todos (Génesis 1 - 2).

Gosto de um Deus que não se preocupa com Deus - nem com o culto divino -, um Deus que não cuida de Deus, mas das relações entre os seres humanos que são irmãos, embora julguem que são rivais e procurem levar as suas rivalidades até aos céus. Diante da guerra, a Sua preocupação declarada é esta: que fizeste do teu irmão? A voz do seu sangue brada aos céus, mas ai de quem responde à violência com violência (Génesis 4).

Esta é mensagem bíblica que deve julgar todas as outras mensagens. O Vaticano II falou com justeza da hierarquia das verdades!

O mundo está dividido em povos e em credos religiosos. Como diz a mensagem da parábola magnífica do samaritano, a diferença não é para provocar a indiferença, mas para cuidar do outro maltratado porque foi maltratado, sem outro motivo ou interesse (S. Lucas 10, 29-38).

Enquanto Israel não cuidar de tornar viável um Estado palestiniano, como se do seu Estado se tratasse, perder-se-á a tornar-se forte e guerreiro. Enquanto a realidade palestiniana não gostar dos êxitos do Estado de Israel, como se fosse o seu próprio bem, estará a tornar impossível o seu próprio Estado.

Não há salvação para as relações entre pessoas, grupos, povos e Estados fora do cuidado de uns pelos outros. Sem isto, voltaremos sempre à opressão e à resistência à opressão.

É justo pensar que o meu verdadeiro interesse coincide com o verdadeiro interesse do outro, mas não me pertence ser o supremo juiz do interesse do outro.