A grande cegueira

Frei Bento Domingues, o.p.

...............................Público, Lisboa, 26.03.2006

1. Estamos a meio da caminhada para a Páscoa. Na celebração da Eucaristia de hoje, optei pelo capítulo 9 do Evangelho de S. João. Coloca, de forma polémica, uma questão fundamental: por que será que as instituições e os preceitos religiosos, criados para possibilitar formas supremas de liberdade, se transformam em prisões sacralizadas? Para não cairmos na armadilha de nos fixarmos nas cegueiras dos compatriotas de Jesus, lembremos a evidência: este texto é proposto aos cristãos de hoje, não aos judeus de há dois mil anos. Não podemos, no entanto, passar ao lado desta truculenta narrativa.

2. Começa assim: Jesus viu, ao passar, um cego de nascença e os seus discípulos perguntaram: "Rabi, quem pecou, ele ou os pais dele, para que nascesse cego?" Jesus respondeu: "Nem ele nem os pais, mas para que nele se manifestem os sinais de Deus."

Dada a cultura ambiente mais generalizada - com analogias nas crenças de re-encarnações de expiação -, o que estava implícito na pergunta era um insulto: a doença - ou qualquer outro mal - é um castigo de Deus.

Diante do mal, a reacção acertada consiste em procurar as formas mais adequadas de o vencer e não a de repetir pseudo-evidências consagradas. Nesta história - elevada ao nível de grande parábola - estamos em presença da cegueira física de um homem e da cegueira cultural e religiosa, na qual os discípulos foram criados. Jesus, de um só golpe, libertou o filho e os pais daquela vergonha e separou Deus da ideia de castigo. "Cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou-a sobre os olhos do cego e disse-lhe: Vai lavar-te na piscina de Siloé." O cego foi, lavou-se e regressou de olhos abertos. A parábola está construída para mostrar que Deus estava naquele gesto material. Também a arte realiza, através da matéria, a dimensão simbólica.

As acções de Deus, porém, não costumam vir com assinatura. Não se impõem: "Os vizinhos e os que estavam acostumados a vê-lo, porque era mendigo, perguntavam: Não é este que ficava sentado a pedir esmola? Uns diziam: É ele. Outros diziam: Não, mas alguém parecido com ele. Ele, porém, afirmava: Sou eu mesmo. Perguntaram-lhe, então: Como se abriram os teus olhos? Respondeu: Aquele homem chamado Jesus fez lama, aplicou-a nos meus olhos e disse-me: Vai a Siloé e lava-te. Fui, lavei-me e recobrei a vista. Disseram-lhe: Onde está ele? Respondeu: Não sei."
Levaram o "miraculado" aos fariseus. O narrador adianta a causa principal das complicações que se seguem: o cego teve o azar de ter sido curado num sábado! Mas não foi por aí que os fariseus começaram o inquérito. Teimavam em saber como é que foi curado. A resposta é de quem já não suporta mais a pergunta: "Ele aplicou-me lama nos olhos, lavei-me e vejo."

A cegueira ideológica é mais forte do que os factos: "Este homem não vem de Deus, porque não guarda o sábado." O homem não é para o trabalho. Sem tempo livre, não pode descobrir o sentido da vida. O sábado do descanso transformou-se, todavia, numa opressão de mil preceitos mesquinhos. Jesus revolta-se: o dia de Deus tem de ser o da alegria e o da liberdade do ser humano.

Os próprios fariseus acabaram por ficar divididos diante do paradoxo: "Como pode um homem pecador realizar tais sinais?" Procuraram conhecer a opinião do que fora curado: "Que dizes de quem te abriu os olhos?" E ele respondeu de forma provocatória: "É um profeta." Chamaram, então, os seus pais e perguntaram: "Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é que, agora, vê?" Responderam: "Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego. Como é que ele, agora, vê e quem lhe abriu os olhos, isso não sabemos. Interrogai-o. Já tem idade e ele próprio se explicará."

A redacção da narrativa denota uma época tardia porque já precisa de informar os seus leitores: "Os seus pais assim disseram por medo dos judeus, pois estes tinham combinado que, se alguém reconhecesse Jesus como Cristo, seria expulso da sinagoga. Por isso, os seus pais disseram: Ele já tem idade, interrogai-o."

A história voltou, então, ao começo. Tentaram convencer o que fora cego de que Jesus era um pecador. Resposta: "Se ele é pecador, não sei, mas uma coisa eu sei: é que eu era cego e agora vejo." Recusou-se a dar mais explicações e atreveu-se a nova provocação: "Por acaso, quereis tornar-vos seus discípulos?"

Aqui, a embrulhada é total. Ele reforçou as provocações, servindo-se da mais corrente teologia farisaica. E o resultado não podia ser outro: "Tu nasceste todo no pecado e queres ensinar-nos?"
Jesus ouviu dizer que o haviam expulsado e, encontrando-o, perguntou-lhe: "Crês no Filho do Homem?" Respondeu: "Quem é para que acredite nele?" Jesus declarou: "Estás a vê-lo, é quem fala contigo." Ele exclamou: "Creio, Senhor!"

Jesus encerra este debate com uma evidência paradoxal: os cegos vêem e os que vêem ficam cegos. A quem não quer ver não há nada a fazer.

3. A Quaresma não é para cumprir ritos de preparação da Páscoa. Se ficar por aí, torna a Igreja mais cega, mais endurecida, mais apegada ao que deve ser transformado. A Quaresma é, por natureza, um caminho de iluminação.

Como preparação do baptismo de adultos, supõe uma alteração do olhar sobre a realidade social, económica, cultural, política e religiosa. É preciso descobrir, em liberdade, o que nos realiza e o que nos perde. É um trabalho de destrinça que não pode prescindir do uso das ciências humanas para se não cair em novas pseudo-evidências. Mas nenhuma ciência pode substituir a conversão da mente e do coração, simbolizada no baptismo. Nele se exprime aquilo a que se deve dizer "não" e aquilo a que se deve dizer "sim" com uma vida nova.

No entanto, o baptizado não é um introduzido no céu. Continua um ser histórico, um ser tentado. Não pode eliminar a necessidade da revisão da vida pessoal e comunitária, na Igreja e na sociedade, local e planetária. Para quando uma sociedade de todos, desenvolvida, segura e sem armas?

Já não estamos numa "sociedade teocrática". Sagradas são as leis do mercado. Quem tiver olhos para ver, veja!