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ERNESTO DE SOUSA
33 Folhas: Carta a Isabel

Lisboa, 1946 - 1950 - 1966

ISABEL

A sedução de Cordélia começou em Abril, e consumou-se - segundo a implacável lógica libertina - a 25 de Setembro. Devia ser um Setembro frio e triste, como esta história que não é só dinamarquesa: "elle est déflorée et nous ne sommes plus au temps où le chagrin d'une jeune fille délaissée la transformait en héliotrope. Je ne veux pas lui faire mes adieux..." Com uma melancolia terrível, o herói de Kierkegaard termina assim o seu inteligente e mefistofélico Diário: "Si j'étais un dieu je ferais ce que Neptune fit pour une nymphe; je la transformerais en homme................ Quel épilogue passionant, qui au fond présenterait un intéret psychologique et en outre pourrait vous offrir l'occasion de beaucoup d'observations érotiques". Passemos sobre o evidente homossexualismo de qualquer lógica libertina. Kierkegaard sabia que as mulheres deixariam de ser apenas flores, mas não sabia como conciliar todas as contradições do amor que a sua época tornara mais agudas. Opunha à lógica libertina a defesa "estética" do casamento, mas não saberia conciliar as duas atitudes: "ou bien... ou bien...". Um século antes, já Diderot escrevia à sua correspondente preferida: "a minha amiga, que sabe ser homem quando é preciso...". Estamos hoje mais perto da época em que a mulher pode transformar-se em girassol, de todo em todo não ser desflorada, mas só podemos prever, e bastante mal, uma sociedade em que não haverá diferença, senão erótica, entre o homem e a mulher. Por isso um Aragon pode escrever, parafraseando Marx ("O destino do homem é o homem"): "O destino do homem é a mulher". Mas o destino é um futuro que tem que ser, dia a dia, descoberto e fabricado no presente.

Num outro passo do seu Diário, o sedutor observa muito justamente: "L'amour cesse s'il n'y a pas de lutte". Esta carta quer ser uma face da nossa luta, no nosso amor - que espero não acabe jamais, um e outro.

Em cada acontecimento erótico, de resto, está em potência aquela metamorfose: a mulher transforma-se em homem (e no limite: a metamorfose contrária), a água em sol

C'est la mer mêlée
au soleil.

mas, assim como "cada desejo exige eternidade, eternidade profunda" (assim falava Zaratrusta), a posse erótica efémera deve transformar-se cada vez mais num contínuo erótico; a "longa e calma posse", num longo e calmo contínuo erótico, de onde toda a ideia de estrutura do ser separado (homem-mulher) esteja ausente, e a morte superada. Isto é, aceite: o homem descontínuo encontrará o ser contínuo - o que é, de resto, uma evidência primeira esquecida. Eros ter-se-á espiritualizado (como no cristianismo) e em seguida - sem nada perder da conquistada espiritualidade, voltará a uma nova etapa erótica espontânea (Kierkegaard).

Quadros de ES com base no graffiti. O de cima é uma serigrafia de António Inverno. Propr.Meg