FLORIANO MARTINS
SURREALISMO: 
A DIMENSÃO INSONDÁVEL DO SELVAGEM


ESTELA - Floriano, na tua antologia O Começo da Busca - O Surrealismo na Poesia da América Latina (Escrituras Editora, São Paulo, 2001), só estão representados surrealistas da primeira geração, aqueles que ainda estiveram ligados pessoalmente a Breton e ao surrealismo francês...

FLORIANO - Há ali poetas nascidos em 4 décadas distintas, o que já nos indica uma outra perspectiva. Mesmo considerando poetas que chegaram a conhecer Breton ou outros nomes a ele ligados, como Benjamin Péret, também aí não caberia mencionar tal parâmetro. Em primeiro plano, me interessa chamar a atenção para a presença do Surrealismo na América Latina, especialmente nos países de língua portuguesa e espanhola. A cronologia interessa ao estudo introdutório e aos documentos que constituem a fortuna crítica do projeto. No entanto, há um capítulo central que é a antologia de poetas. Como estamos tratando de 20 países e naturalmente temos que nos movimentar dentro do espaço editorialmente possível, fica bastante claro que um projeto como este não se esgota em um volume único de apenas 300 páginas.

ESTELA - Sei que a seguir vais publicar o segundo volume, certamente com poetas mais jovens…

FLORIANO - Não necessariamente. As mesmas 4 décadas seguirão sendo enfocadas e possivelmente avançarei mais uma. A preocupação é mesmo outra, ou seja, a de traçar um mapa bastante amplo das áreas de influência do Surrealismo na América Latina. Desde o primeiro momento que eu tive o cuidado de não sobrecarregar a presença de um ou outro país, em face do que alguns poetas chilenos e argentinos, por exemplo, não foram incluídos no primeiro volume. E agora incluo poetas de outros países, alguns deles apenas mencionados do estudo introdutório.

ESTELA - Tu consideras-te um poeta surrealista?

FLORIANO - Eu diria que a minha poesia não se afasta de mim em momento algum, que está intimamente ligada ao que eu sou e faço. Por qualquer ângulo que se observe - o político, o amoroso, o poético -, a minha vida integra-se à perfeição à matéria queimante de meus versos. Não caberia, portanto, ater-me a ortodoxia de espécie alguma, o que me torna um surrealista, sim, desde que não se limite, de má fé, sua ação a uma condicionante historicista em isolado.

ESTELA - Sabes que a tua poesia, como a de tantos outros poetas, mesmo os da tua antologia, só é classificável como surrealista por motivos históricos e de depoimento formal dos autores, e aliás é preciso acreditar neles quando dizem: "Eu sou, ou era surrealista!". Do ponto de vista poético, ela é moderna, manifesta como a de todos nós o contacto com as obras surrealistas, mas não há nela nenhuma conformação com imposições formais… À parte a escrita automática, de resto abandonada, como é que tu identificas um poema surrealista? E mesmo a escrita automática, como saber se é automática ou não, mesmo que o autor garanta que sim?

FLORIANO - O automatismo, a perspectiva onírica, o mergulho mais intenso no erotismo da linguagem, a percepção de uma dimensão insondável do selvagem, o dilaceramento das imagens culminando com certa atmosfera visionária, o elo intrigante com o barroco no sentido do transbordamento (fulgor) das formas, são aspectos que podem ser observados para além de um diapasão genérico do moderno, ou seja, aspectos que não podem ser encontrados nas manifestações do cubismo, por exemplo. Acrescentemos ainda aí o fascínio pela aventura em seu caráter primordial de entrega ao desconhecido, os relatos de deriva, de amores loucos etc. Creio que tanto na forma como no discurso é plenamente possível se perceber a presença do Surrealismo, mas sempre atento ao fato que não se deve restringir-lhe a atuação a um plano estético isoladamente.

ESTELA - O que há no surrealismo de tão sedutor, que continua a congregar poetas no Brasil e nos outros países da América Latina?

FLORIANO - É bem possível que a sedução venha desse princípio irredutível de liberdade que orienta o Surrealismo. Mas é também possível que se veja aí algum artifício de certo facilismo da criação poética. Daí a leitura equívoca de que tudo o que não faz sentido é surreal, como se costuma ouvir com relativa freqüência. Diz o poeta guatemalteco Luiz Cardoza y Aragón que "escrever não é cifrar nem decifrar: é balbuciar o estupor de ser". Pois bem, essa identificação mútua e ampla, no sangue e na letra, com o que se faz, com a criação, é o que revela o Surrealismo como sendo o princípio maior a ser buscado, aquilo a que o argentino Enrique Molina se referia como sendo um "humanismo poético". Creio que esta é a raiz essencial da sedução do Surrealismo, e o que o torna sempre atual, pois além de todo tempo.

ESTELA - Floriano, tu dizes que no Brasil o surrealismo é ignorado deliberadamente. De que modos práticos se manifesta esse abafamento e em favor de quê?

FLORIANO - Essencialmente em favor da tradição formalista, racionalista, cartesiana, positivista, cientificista, da cultura brasileira. Acrescente-se aí as manifestações castradoras do nacionalismo, em suas diversas facetas. Não nos esqueçamos que os dois principais momentos de uma presença do Surrealismo entre nós coincidem com o Modernismo e o Concretismo. Agora, por outro lado, é preciso cuidar também para não criar uma versão falseada desse abafamento. Há que se discutir claramente todas as zonas de conflito de uma cultura que, regra geral, tem sido escrita privilegiando focos de interesses particulares em detrimento da veracidade dos fatos.

ESTELA - Tens em curso um pedido de bolsa para vires a Portugal. Vens estudar o surrealismo português? Receio que seja trabalho difícil… Que eu saiba, só Mário Cesariny admite ser surrealista… Vou revelar-te um segredo para te facilitar o trabalho: o escritor mais surrealista que conheci, não só de obra como pessoalmente, foi a Noémia Seixas… Poucas pessoas devem saber quem é a Noémia Seixas, apesar de óptimos livros publicados, romances e poesia, em várias editoras e por fim na Ulmeiro. A Noémia Seixas, que já morreu, e eu em dada altura visitava regularmente, nunca pronunciou na minha frente a palavra "surrealista". Mas explicava frequentemente a sua obra como sendo "surreal"… Devem ser coisas diferentes, não achas?

FLORIANO - Eu não vejo a situação assim. Houve em Portugal, a partir de Cesariny, um grupo bem definido, do qual participaram nomes como António Pedro, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, Carlos Eurico da Costa, dentre outros. Desde o princípio dos anos 40 que se começa a preparar uma cronologia do Surrealismo português hoje plenamente identificada. De qualquer maneira, sei que encontrarei relativa dificuldade, sobretudo dada a dispersão documental a respeito.

ESTELA - És uma pessoa ocupadíssima, com a revista virtual Agulha, os livros, as tuas entrevistas e resenhas críticas em jornais, a nossa empresa, "triplov.com.agulha.editores", que mal saiu ainda do ovo. Como arranjas tempo para escrever os teus poemas?

FLORIANO - A rigor, a resposta deveria ser direta: não faço a menor idéia. Desde cedo me habituei a uma disciplina que hoje me parece algo insana de tocar diversos projetos a um só tempo. Já o faço naturalmente, embora a saúde comece a dar sinais de desgaste. Eu tenho uma espécie de paixão inúmera e irrefreável pela vida. Os poemas vão se escrevendo intimamente, mesclados à própria existência, até que exigem um momento de parto, desova de natureza ritualística. Mas digo que em nada se afastam, em grau de intensidade, das demais coisas que sigo fazendo.