DOIS EDITORES ALIAM-SE:
Floriano Martins (Agulha)
& Maria Estela Guedes (TriploV)


Floriano Martins é um escritor brasileiro, especialista em poesia de língua castelhana, editor da revista virtual Agulha. No TriploV encontrará ensaios e poesia assinados por ele. Nesta conversa, a editar simultaneamente na Agulha e no TriploV, vamos apertar um laço que se antevê frutuoso entre as duas publicações, e dar sinais da des_inquietação que nos move como artistas e agentes culturais.



ESTELA - Como nasceu o TriploV, perguntas tu? Tinha obrigatoriamente de sair do ovo, dada a crise da edição em papel: em Portugal há só meia dúzia de escritores que vivem da escrita. Eu nem pretendia viver da escrita, queria apenas ter um editor que não cobrasse pela edição... De outra parte, o livro e as revistas em papel têm tiragem limitadíssima. O TriploV, num ano, criou-nos um público ávido, e isso é reconfortante, é bom saber que a leitura não morreu, as pessoas querem mesmo ler, enriquecer-se, partilhar conhecimentos, trocar colaborações, e isso um pouco em toda a parte do mundo, mas em especial no Brasil. Esse foi o meu desafio aos outros responsáveis pelo site, José Augusto Mourão, Maria Alzira Brum Lemos e Magno Urbano: "Vamos reconquistar o Brasil!" E acho que estamos a conseguir... É claro que tive de aprender a lidar com o PC de outro modo, mas felizmente o Magno Urbano, nosso operador de sistema, tem tido a paciência de me ensinar. E tirei uns cursos on-line. Mas ainda falta muito para estar apta. Sabes tu, Floriano, aqui só eu é que mexo no site, tenho de fazer tudo, desde compôr o texto até pô-lo no ar. Como é com a Agulha? Tens alguns conhecimentos avançados de informática e criação de webpage ou a revista é entregue a profissionais?

FLORIANO - A Agulha é dirigida por mim e o Claudio Willer, isto em termos de definição de pauta. Mesmo residindo a 3 mil quilômetros de distância um do outro (São Paulo e Fortaleza), nos falamos diariamente e assim afinamos este e outros projetos nossos. Em termos de designer, a revista é toda feita por mim, da idealização ao acabamento. Ao final, no momento de atualização de sistema junto ao provedor, contamos com a terceira fatia de nossa cumplicidade, o Soares Feitosa, que dirige o Jornal de Poesia, onde a Agulha está ancorada. Os três somos escritores e tivemos que aprender todos os meandros dessa complexa atividade de editor, o que inclui ainda a parte de contatos e difusão. Evidente que a circulação virtual tem maior abrangência que a impressa, mesmo considerando o reduzido percentual de utilização de Internet em um país como o Brasil. Contudo, é ainda impossível se pensar em um veículo como a Agulha em termos empresariais, alcançando condições básicas como o pagamento de matérias. Somos todos, incluindo nossos colaboradores, uns abnegados dispostos ao trabalho intelectual sem remuneração, o que seria impossível em uma publicação impressa. Mas veja: quando começamos a fazer a Agulha, sentimos uma necessidade de estabelecer uma rede bem ampla de contatos, daí que criamos a «Galeria de Revistas», onde reproduzimos capa e link de revistas em várias partes do mundo. Neste sentido, como se relaciona o TriploV em Portugal? E não quero aqui restringir-me apenas a veículos virtuais.

ESTELA - Olha, Floriano, eu não tenho tempo para tudo. A difusão inicial do TriploV foi feita pelo Magno Urbano aos motores de busca, eu mando de vez em quando a newsletter do site, "Ser Espacial", a umas mil pessoas, e nada mais. O feedback em Portugal tem sido bom, saiu um artigo de João Barrento no "Público" muito favorável ao site, o "Jornal de Lamego" descobriu-me no ciberespaço, quando em tantos anos de tarimba os meus conterrâneos não me tinham descoberto em centenas de números de jornal, nem na rádio, nem na televisão. Algumas revistas virtuais e sites têm referido o TriploV, como a "Storm-Magazine", e também retribuo links, mas o principal retorno do investimento é o programa de estatística: num ano, temos vindo a subir da dezena para os milhares de visualizações de página por dia, etc.. Eu não estou interessada em ampliar muito os contactos internos; a audiência, sim. Muitos colaboradores significam muitas páginas para pôr no ar e já agora começo a não ter capacidade de resposta. A ideia é manter poucos contactos, mas escolhidos e diversificados no planisfério, e investir no ensaísmo de todo o género. A poesia, devo dizer-te, é o sector menos lido do TriploV, e no capítulo da ciberarte, que era a minha grande motivação, o desastre é total: não aparecem colaboradores, as minhas próprias experiências ainda mal começaram porque há outras prioridades, e antes de começar eu devia ter aprendido o que ainda não sei: a trabalhar com o Photoshop e o Image Ready. Não sei o que se passa convosco, mas por aqui sinto imensa dificuldade em fazer com que os cibernautas leiam poesia, e não posso sequer chamá-los através das metatags porque não há nada específico para pôr nos campos description e keywords - a poesia não tem pontos de referência, forçar com palavras-chave do tipo "cerejas", "beijos" ou "mar" é enganar quem procura saber como cultivar cerejeiras, onde encontrar um site pornográfico ou a tabela das marés; de qualquer modo, os termos são tão extensos que o poema não apareceria nos primeiros lugares dos motores de busca, a quem pesquisa. A poesia não tem referentes, pelo menos a mais despojada, a não historicista. O dossier «Herberto Helder» é muito lido porque as pessoas já conhecem o poeta e nas caixas de pesquisa dos motores de busca escrevem «Herberto Helder». Uma estreia absoluta como a Tília Ramos não tem pesquisa possível, só será descoberta por quem entrar pela página principal, e esse público é minoritário.


FLORIANO - Certa vez uma revista virtual no Rio de Janeiro nos procurou empenhada em fazer uma matéria sobre a Agulha. Este rigorosamente é um caso único. Temos estabelecido com outras publicações virtuais, em vários países, uma permuta de links. Além disso há uma barreira entre veículos impressos e virtuais, ao menos no Brasil. Ainda não perceberam o que há de complementaridade entre eles. Um ponto de cegueira só lhes permite entender uma inexistente condição de concorrência. Hoje a Agulha conta com um mailing de mais de 60 mil endereços, é nossa mala ativa e raramente recebemos pedido de exclusão. Nós circulamos na extensão de dois idiomas: português e espanhol, com um buscado equilíbrio entre ambos, contando ainda com um expressivo reforço de outro site que coordeno, a Banda Hispânica, este último um banco de dados sobre a poesia de língua espanhola. Isto dá à revista uma expressiva visibilidade, inclusive envolvendo uma ativa cumplicidade de correspondentes em dezenas de países. Nossa opção pelo ensaísmo em grande parte definiu-se pela ausência de uma reflexão mais substanciosa sobre temas ligados à arte e à cultura no Brasil. De uma maneira geral, a poesia que se publica entre nós, nos veículos de imprensa, é um verdadeiro festim de epígonos, textos com artifícios poéticos desgastados que se repetem à exaustão. Mas independente disto, em muito me atrai essa característica de arte de exceção - ou ausência de referentes, como dizes - da poesia. Há uma lista inesgotável de grandes poetas que enfrentaram - e enfrentarão sempre - esse obstáculo de veiculação de suas obras. É natural que os estreantes comam a fatia maior desse pão amassado pelo Diabo, o que não quer dizer que não devamos, editores, estar atentos ao trabalho deles. Um outro aspecto que começa a proliferar, Estela, é o surgimento de editoras virtuais. Nós mesmos na Agulha, durante alguns meses, experimentamos a publicação de uma série de e-books, projeto com grande receptividade junto aos leitores mas que lamentavelmente foi abortado ao perdermos nosso parceiro em tal empresa.

ESTELA - Vou contar em segredo, s.f.f. não divulgues por aí: o site nasceu poeticamente falido, e eu preciso de dinheiro, a informática devora o meu ordenado. Sou eu que estou a suportar todas as despesas e são muitas. Ainda não me dispus a pedir subsídio, e agora o Governo português também está teso... Não pago direitos de autor, mas também não exijo dinheiro para editar... Já fiz uma experiência de carrinho de compras, falhou porque era preciso eu montar uma empresa de e-commerce, passar facturas... Ora eu não tenho tempo nem para escrever os meus versos, quanto mais para redigir nessa língua bárbara dos algarismos! Contar, só histórias. Uma das ideias era a dos e-books e cheguei a verter para pdf o livro Francisco Newton, que soma já muitas leituras. Outra ideia, aliás sugerida pelo Magno Urbano, é a de vender todo o site em CD. Esta ideia é fabulosa porque eu actualizo-o quase todos os dias e então podíamos vender uns 200 TriploVs diferentes por ano... Estou na disposição de alinhar numa qualquer hipótese rentável, se só tiver de dar material, meu e dos colaboradores do site... E como só dou isso, não peço metade dos lucros, apenas uma percentagem compatível... Há uns quatro ou cinco livros no TriploV, alguns inéditos, outros esgotados, e de qualquer modo tudo o que é impresso em livro é inédito à escala do planeta. Eu deixei de me ralar com ineditismos, publico o que acho instrutivo, bom e conveniente. Também deixei de me ralar com esse fantasma do roubo, os escritores não publicam na Internet porque há muitos ladrões!... Venham os ladrões, aprecio quem me rouba, é porque leu e adorou! E fora com esses vírus Nimda dos que só vêem montras e é quando saem a passear ao domingo!

FLORIANO - Na verdade enfrentamos os mesmos obstáculos, excetuando o fato de que a Agulha, se não gera lucro, também não gera despesa, isto do ponto de vista financeiro. Claro que há um investimento imenso de tempo. Tanto eu quanto o Willer temos outra atividade, ainda que ambientada em uma mesma perspectiva editorial. Agora, o ineditismo assume uma proporção algo falaciosa, cabendo aí observar apenas o aspecto ético da reprodução de textos já publicados, ou seja, solicitação de autorização, referência de fontes, etc.. Ensaios reproduzidos de livros ou mesmo de outras revistas habitualmente conquistam novos leitores, pois ampliamos o raio de circulação dos mesmos. O roubo é inevitável e inestimável, além do que está colado à pele do conceito de propriedade privada. Não cabe generalizar, mas antes verificar de quais inúmeras maneiras ele vem sendo praticado - algumas delas bastante aceitas por nossas sociedades. Agora, como tens conduzido o TriploV em termos de orientação de pauta? Em termos editoriais, há algum tema ou abordagem que desperte mais interesse teu? Penso na coincidência existente entre tua revista e a "VVV" editada nos anos 40 por Breton, Duchamp e Ernst, nos Estados Unidos, ou seja, haveria aí alguma coincidência também com os ideais surrealistas?

ESTELA - Eu republico muito, com autorização, e textos de séculos transactos, porque preciso. As pessoas tratam o TriploV como revista, mas não é. Estou a fazer um depósito, e há bases de dados no site, para os meus trabalhos em História do naturalismo. Isso recorda-me que estudo a língua das gralhas, língua das aves ou língua de ponta nos textos científicos. A Agulha não é de costura... Na ponta da língua tem pimenta, pelo menos... O meu vínculo mais forte é com o modernismo português e descendentes, e mais indirectamente com o surrealismo, aliás agrada-me que estabeleçam essa relação, é legítima. Uma das pessoas mais importantes para mim, porque me rasgou horizontes e deitou por terra preconceitos, o Ernesto de Sousa, cineasta que fez o filme português dar o salto do cinema de pátio para o novo cinema, mas foi também artista de multimédia, homem que despoletou o florescimento da vanguarda em Portugal, etc., criou, comigo e com o Fernando Camecelha, um grupo, o VVV, de cuja actividade artística resultaram festas e as caixas Pipxou - há imagens e informação no directório dele. Dediquei-lhe o site, e quando tive de escolher um nome, lembrei-me do VVV, pensando: vou continuar a nossa obra, apesar de o Ernesto já ter morrido. "VVV" também quer dizer Ego sum Via et Veritas et Vita, segundo a interpretação esotérica de outro cineasta, António de Macedo. Nós pronunciamos triplov, à russa, e o meu contributo para o alargamento do campo semântico do nome foi o ovo alquímico, o "triplovo", como o Magno Urbano designa o logotipo que criou. O elo de ligação entre todos os movimentos da modernidade é a agulha, que também se exprime no Morra o Dantas, morra! Pim!, de Almada Negreiros. Sempre estive nessa onda de guerra ao convencional. Quanto a definição de pauta, ou programação, recordo que Breton fala do acaso feliz. Pois bem, a única pauta do TriploV é esse acaso luminoso, como este de estarmos agora aqui sem o termos premeditado. Nunca me envolveria em nenhum projecto editorial que implicasse programação e periodicidade rígida, porque isso é inviável no perímetro da minha acção. Parte dos nossos conteúdos, o segundo mais aliciante de todos, é constituído pelas comunicações ao Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas. Os participantes não entregam os trabalhos. Por isso criar uma revista dentro do TriploV, como era desejo do José Augusto Mourão, por exemplo, está fora dos meus propósitos. Prefiro que o site seja tratado equivocadamente como revista, porque a classificação pode vir a ser útil para fins de patrocínio. Além disso, deixar o triplovo a chocar durante um mês ou mais, para só em data certa ver os pintos a bater as asas, não se acomoda ao meu sistema nervoso. Quando aparece um novo pinto, lanço-o imediatamente no céu.

FLORIANO - E está perfeito que seja assim, mais abrangente o tríplice V do que no caso de Breton, onde aliava o V da Vitória ao Voto no sentido de energia vital ou Volta «a um mundo habitável e imaginável». E cabe bem a lembrança ao Almada e seu manifesto, ele que soube ver bem o valor intrínseco da antecipação a tudo. Admirável Almada que vivia a lembrar o essencial que é a poesia fazer «nascer asas em Nós». Pode-se dizer de Agulha que seja uma revista, tem estrutura e perspectiva estética que atende ao objeto. Ao contrário, o que faço na Banda Hispânica deve ser visto como um banco de dados, uma fonte virtual de consultas acerca da poesia de língua espanhola. Tua referência à pimenta («pelo menos»), eu a entendo como uma aguda visão crítica que se alimenta dessa entrega ao outro, de buscar a integridade das coisas. De buscar a verdade em vida e em toda a vida. É exatamente o que estamos fazendo aqui, neste nosso breve diálogo inicial, quando aproximamos nossos projetos editoriais, Agulha e TriploV.

Lisboa, Fortaleza. Outubro de 2002.