AMOR/HUMOR E REVOLUÇÃO!!!
com
MARIA ALZIRA BRUM LEMOS
Fotos de Silvia Helena Cardoso



Maria Alzira Brum Lemos, coordenadora do TriploV no Brasil, é acima de tudo a mulher de armas que nos tem ajudado a conquistar o Brasil. Vamos conhecê-la agora melhor.


ESTELA - Alzira, nós conhecemo-nos em Madrid, há uns anos, através da Ana Luísa Janeira, que liderava então a equipa portuguesa de um projecto de investigação sobre naturalistas, em regime de cooperação com investigadores espanhóis. Que fazias tu em Espanha?

ALZIRA -Tinha uma Bolsa do Governo brasileiro para realizar parte do meu Doutorado. Esta bolsa era de dois anos, durante os quais tive acesso aos pesquisadores e ao acervo das instituições espanholas, especialmente o Centro de Estudos Históricos do Conselho Superior de Investigações Científicas. Fiquei na Espanha quase quatro anos. Pesquisava muito - história e filosofia das ciências, arte, literatura. Escrevi minha tese de Doutorado, “O Doutor e o jagunço”, sobre "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Participei de projetos de pesquisa, convidada por centros e universidades européias. Colaborei com reportagens, resenhas e entrevistas, em geral sobre literatura espanhola, para jornais brasileiros, incluindo a Folha de S.Paulo. Mas, o mais importante para mim - que não me identifico com a Academia, não me considero acadêmica e sou, no mínimo, crítica ao modo acadêmico-institucional de produzir e gerir o conhecimento -, foi a oportunidade de viver em Madrid, que é uma metrópole ibero-americana onde convivem, de forma “conflitante e complementar”, modos de vida e produção social modernos e tradicionais, da Península, da Europa e das Américas. Fiz uma verdadeira imersão na vida e na cultura ibero-americanas, de Cervantes à salsa, de Almodóvar ao ceviche... Andava a pé e de ônibus, ia ao supermercado...Conheci muita gente interessante (Ana Luísa Janeira, Estela Guedes, Maria Luísa Ortega, Rosângela Battistella, Jaime Vilches... ah, não vai caber todo o mundo... teria de fazer outra entrevista!!!), com as quais tive o privilégio de conversar, aprender e/ou estabelecer parcerias. Viajei muito. Favorecida pelas distâncias relativamente curtas, tive oportunidade de vivenciar, muito além do que faria um turista ou um bolsista, diferentes realidades, como a portuguesa e a francesa. Resumindo: VIVI!!

ESTELA - Parece que a tua tendência, como intelectual, incide de preferência na sociologia e na política da comunicação, independentemente do corpus em que te apoias, que pode ser o romance. Até que ponto a política é importante para ti?

ALZIRA – Considero-me, parafraseando Gilberto Freyre, uma escritora “de ficção” que se utiliza de diversos saberes, práticas e disciplinas para produzir idéias e aproximações, digamos, “científicas”. Como você, não escrevo num gênero definido. Faço ficção, jornalismo, crônica, ensaio... Não me apóio na Sociologia. Diria mesmo que estou na contramão da Sociologia. Não acredito numa separação entre vida e cultura, vida e teoria e nem que temos de adotar os ícones do pensamento da modernidade - e muito menos os que nos impõem as estratégias de difusão de cultura dos países "do centro". Nós, "intelectuais" e/ou pensadores, temos de dialogar, inserir-nos nas inquietações e fenômenos do contemporâneo, ser ousados e criativos, atentos aos sentidos, abertos ao erro e ao novo. Daí minha preocupação com as políticas de comunicação e cultura, com a percepção crítica do modo científico de pensamento e conhecimento, com o combate ao elitismo, à burocratização do saber e à comunicação de massas como padrão. Daí meu engajamento político com o hibridismo étnico e cultural, com as culturas populares e tradicionais, com a juventude, com os contextos "periféricos", com os novíssimos movimentos, do hip hop às comunidades digitais e ao Fórum Social Mundial. Os projetos nos quais participo atualmente - incluindo o Triplov e a Editora Garamond - convergem nestas perspectivas. Tenho outros projetos em mente. Aposto na reinvenção da política à luz do afeto, da alegria, da interatividade, do diálogo. Amor/Humor e Revolução!!!!


ESTELA - Um episódio da história brasileira que estudaste, mais parece uma fábula, de tal modo é fantástico: a Guerra de Canudos. És capaz de o recordar para nós, e de nos dizer em que contexto político se verifica?

ALZIRA - Estudei “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que é a narrativa, feita pelo escritor, engenheiro e jornalista Euclides, da repressão movida pelo Exército brasileiro, nos primeiros anos da República, aos rebeldes que, inspirados pelo sebastianismo, formaram uma comunidade no interior da Bahia. Esta comunidade, Canudos, foi considerada uma ameaça à República, uma vez que seria “monarquista”. Euclides foi ao sertão com o objetivo de fazer uma reportagem para o jornal republicano "O Estado de S.Paulo”. Acabou escrevendo uma grande obra, um clássico, no sentido dado ao termo por Italo Calvino: uma obra que traz marcas da cultura do passado e deixa marcas para o futuro. “Os Sertões” transcende o contexto porque sintetiza lindamente o drama e a tragédia de nossa história, de nossa geografia, de nossa cultura, de nossos intelectuais. Neste livro, a partir da descrição da Guerra de Canudos e das questões relativas à mestiçagem, estão descritos os conflitos “civilização/barbárie”, “ciência/religião”, “autor/personagem”, “geografia/história”, “urbano/rural”, “erudito/popular”, “tradição/modernidade”. “Os Sertões” é um hipertexto, bricolage multi e transdisciplinar que dialoga com colaborações de pessoas, livros e teorias diversas, ou seja, um livro para os nossos dias. Publiquei aqui no TriploV um artigo sobre os cem anos de “Os Sertões”. Também publiquei “O Doutor e o Jagunço: Ciência, cultura e mestiçagem em Os Sertões” (São Paulo, Arte&Ciência 2000... já tenho os direitos... vou colocar este estudo na Rede, à disposição dos Internautas em breve) e, recentemente, com outros autores, “O Clarim e a Oração: cem anos de Os Sertões” (São Paulo, Editora Geração, 2002), o qual recomendo especialmente por se tratar de uma obra abrangente e com múltiplos pontos de vista, não apenas sobre “Os Sertões” mas também sobre o Brasil.

ESTELA - O Brasil é um país imenso, cheio de riquezas naturais, como de resto outros da América do Sul, caso da Argentina, que neste momento atravessa uma fase muito mais difícil e perigosa do que o Brasil. Como é que se explica a pobreza em países potencial e realmente tão ricos?

ALZIRA - A modernidade e o capitalismo têm na origem um modelo de desenvolvimento que alia o conceito de progresso à dominação técnica e tecnológica da natureza e à imposição militar, política, cultural e retórica pelo modo científico de pensamento e conhecimento. A natureza e as culturas dos países considerados “periféricos” não constituem “valor de troca”, a não ser quando apropriadas pelos estados e corporações que detêm o capital e a tecnologia. O modelo moderno-científico nos deu muito. Mas pagamos o preço da insensibilidade e da arrogância deste modelo com relação ao ser humano e à natureza. Nos últimos anos, estabeleceu-se uma espécie de "consenso", orquestrado pelos meios de comunicação, segundo o qual não se pode discordar do capital financeiro internacional. Quem são os bancos internacionais? Divindades da época “globalizada”? Infelizmente, hoje, “bom” é quem não mexe com os bancos. Prevalece a ética, ou a falta de ética, do capital. O caso do Brasil é exemplar. Há milhões na miséria, todo o mundo sabe. Mas, segundo o nosso candidato (quando esta entrevista sair, ele já será nosso Presidente) Luiz Inácio Lula da Silva, “o Orçamento da União de 2003 não permite o atendimento dos gastos pretendidos pela bancada - em relação a salário mínimo, salários dos servidores, saúde, educação e reforma agrária -sem comprometer as metas fiscais que foram negociadas com o FMI (Fundo Monetário Internacional)”. Precisamos rever acordos como estes - e espero que o Governo Lula o faça - porque os bancos não são intocáveis. Precisamos urgentemente de ética, humanizar a política e as relações de produção. Não queremos caridade, queremos solidariedade. A luta contra a miséria é uma luta de todo o mundo.

ESTELA - O Brasil é o terceiro país, aliás segundo (os primeiros são constituídos pelos domínios .net e .com - Estados Unidos, etc.), que mais visita o TriploV, e isso deve-se a ti e teus colaboradores, em especial Romildo Sant'Anna. Os vossos directórios são muito acessados, e por isso outros intelectuais brasileiros têm vindo a aproximar-se de nós. Noto porém diferenças de comportamento face a este novo meio de comunicação: os brasileiros estão nele como peixes na água, o ciberespaço é um lugar de edição normal, ao passo que os portugueses, mesmo alguns editados no TriploV, ainda não trabalham com computador e nem sequer com máquina de escrever. Fazem um grande favor em ceder textos, porque desconfiam da eternidade do suporte - suporte eterno é o papel... O que vêem na Internet está para eles no meu PC, e por isso pode desaparecer do ar mal eu vire costas ou o meu computador avarie... Acham tudo artificial, pensam que o que escrevemos é criado pelo computador e não por nós, e tudo isto me irrita pelo anacronismo e ignorância. Lembra-me o aparecimento da primeira Bíblia impressa, criticada por ser uma "escrita artificial"... Como especialista em questões de comunicação, como vês tu estes problemas?

ALZIRA - Poderíamos passar horas discutindo questões filosóficas e semióticas sobre o assunto. Mas deixemos esta parte para o Mourão... Ficamos contentes por sermos lidos! Os meios digitais permitem a descentralização da produção intelectual e a troca de idéias. Estela Guedes, Maria Alzira, Romildo, Mourão, não teriam tantos leitores se dependessem dos meios de comunicação de massa e do mercado editorial. O Público e a RTP não saberiam da Estela Guedes se ela não houvesse feito um nome na NET, o TriploV... A Internet modifica os meios de produção, gestão, armazenamento e difusão do conhecimento. Isto é uma ameaça aos intelectuais que se acreditam “donos” do conhecimento. Os meios digitais permitem a construção de uma memória que pode ser acessada por qualquer pessoa em qualquer lugar. Graças à Rede, há muito mais gente pensando, discutindo idéias e publicando. Não conheço o contexto português. Aqui há muita gente com projetos interessantes na Rede. O Hernani Dimantas - www.marketinghacker.com.br -, por exemplo, aborda as novas configurações dos mercados no contexto da comunicação interativa. A Garamond, editora na qual trabalho e que acredita na inter-relação saudável entre o livro e a WEB, lançará em novembro o livro do “Marketing Hacker”.

A pretensão de eternidade é arrogância. Não somos eternos; nem nossas idéias... Um incêndio destruiu a Biblioteca de Alexandria... Uma catástrofe pode destruir alguns dos treze servidores que hoje conectam a WEB no mundo. Estela, coloca os resistentes na seção “Dinossauros”!!!