HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO / Problematização
Maria Estela Guedes
www.triplov.org . 01-01-2006

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Hospital Psiquiátrico S. Pedro

Visitei a Oficina de Criatividade, no Hospital Psiquiátrico S. Pedro, em Porto Alegre, no Sul do Brasil, guiada por uma das pessoas mais ligadas a ela, a socióloga e professora universitária Tânia Fonseca, no curso de uma viagem a Curitiba patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Com os alunos e estagiários, ela acompanha os internados desde há alguns anos, num espaço em que eles podem manipular instrumentos de arte e desenvolver até dons artísticos que possuam.

A Oficina de Criatividade é uma oficina em dois sentidos: serve para os loucos se tratarem através de técnicas artísticas e serve de laboratório para os técnicos de saúde e investigadores apreciarem o resultado da terapia nos pacientes que regularmente a frequentam.

Há uma série de problemas que se levantam quando visitamos uma galeria de arte com uma exposição colectiva de loucos, pois foi isso o que aconteceu em Agosto de 2005, naquela parte do Hospital.

O menor dos problemas é saber se o que estava à vista, desenhos, pinturas, instalações, escultura, é arte ou não. Entendo que sim e passamos adiante, porque os problemas mais sérios não estão desse lado, sim deste: sou artista ou louca? Leiam os "Pensamentos" de Manoel Jardim, um dos internados em S. Pedro. As sentenças têm estrutura de textos poéticos. Pedindo licença para citar o mais licencioso, e note-se que as fotografias dão razão a Freud, ao descobrir na pulsão sexual a dominante da arte, da linguagem dos loucos, dos gestos falhados, etc., muitos escritores subscreveriam de boa vontade estas reflexões de Manoel Jardim, por quanto há nelas de malicioso e original: "Se hoje fo dia santo fecha tudo"; "Caríssimos irmãos siga Deus porque tudo que fodeDeus é bom"; "Não amarre o cavalo no pau da Igreja porque o pau é do padre".

Este tipo de asserções ocorre aos escritores muitas vezes espontaneamente, sob a forma de lapsos linguísticos. É claro que, uma vez aproveitado um lapso criativo, pode gerar-se uma situação que favorece a ocorrência de mais, para não dizer que um discurso destes também pode ser provocado com estimulantes externos. De qualquer modo, uma vez apreendido o mecanismo e usado deliberadamente, as gralhas deixam de o ser, passa-se a dispor do erro como técnica ou dispositivo retórico.

Mais incómoda situação ainda, gerada pelo erro "fo dia santo", em vez de "for dia santo", seria a de o leitor negar a existência de um sentido sexual no texto, para o atribuir apenas à minha exegese dele. É como nos textos dos naturalistas que habitualmente comento: um "fo dia santo" ainda se tomava por erro de ortografia, agora uma quantidade de "fo dias santos" só pode ser uma bacanal...

Problema mais sério ainda do que indagar se a arte louca não estará fora dos hospícios mais do que dentro deles é estabelecer a fronteira entre loucos e sãos. Já sabemos que de são e de louco todos temos um pouco, e que não é novidade nenhuma a contiguidade - talvez de zona cerebral - entre a arte e a loucura. Deixem-me no entanto seguir este caminho para ver onde vai desembocar. Uma lição importante que recolhi dos loucos de S. Pedro foi a de que as rotinas são indispensáveis para nos ligarem à terra, enfim, nos criarem elos de ligação, referências com qualquer coisa. Um dos dramas dos loucos é não terem referências, rotinas, conhecidos nem família, e por isso, mesmo curados, não podem sair dos hospitais, porque no exterior não sobreviveriam. A Oficina de Criatividade tem esse grande mérito: alguns loucos habituaram-se a frequentá-la regularmente, sentem prazer em manipular papéis, barro e pincéis, criaram rotinas em relação ao espaço de actividades e às próprias actividades. Isso gera neles serenidade e segurança. A arte cura? Poderá curar alguns, mas dos que estão em S. Pedro vários já sairam e regressaram, por isso a questão é ociosa, e terá de se recolher outras vantagens na Oficina de Criatividade.

É um espaço estranho, o atelier, apesar de igual a qualquer atelier não hospitalar. Aliás, talvez a maior estranheza venha daí, do facto de a Oficina de loucos ser igual a uma cooperativa de artistas contemporâneos. É assim que a arte nitidamente transborda para fora do suporte, da Oficina, e até para o exterior do edifício, significando isto que a loucura invade a cidade. Michel Foucault já o referiu, a loucura está fora e não dentro dos hospícios. Mas neste caso há um gesto de apontar através da arte, que vai descendo escadas com ela para denunciar a loucura dos nossos modos de vida. A cidade é tão grande que gera focos de medo, as pessoas vivem em casa como no interior de prisões, com segurança à porta, grades nas janelas e portas fechadas a sete chaves.

Perguntando a uma das estudantes universitárias que trabalham com os internados se a arte curava, ela respondeu que talvez não, mas que a Oficina de Criatividade a tinha curado a ela. Filha de uma família brasileira tradicional, de uma pequena cidade do Sul, o medo e a insegurança impediam-na de andar sozinha nas ruas de Porto Alegre. A partir do momento em que começara a cuidar dos loucos, tinha ganho nesse convívio a segurança que lhe faltava e já não precisava de motorista: ia de ônibus para a Faculdade, para o Hospital Psiquiátrico, sem medo de andar sozinha.

A experiência mais assustadora de andar pelas salas e corredores do Hospital Psiquiátrico S. Pedro não é a de eventualmente se ser atacado por algum internado, sim a do espelho, a perturbação gerada pelo facto de não se distinguirem as visitas dos loucos. Os visitantes parecem personagens normais daquele espaço, a Oficina de Criatividade. E assim eu pertencia àquele mundo de reflexões criadas a partir de lapsos linguísticos, de imagens pintadas no quadro, que saltavam do quadro para a parede da sala, e daí para a porta, porta que por sinal tinha um orifício rectangular para a vigilância, imagens que saltavam do orifício da porta para as paredes do corredor, e daí para os vãos de escada, e, descendo a escada em caracol, saíam para a rua, em grafitos nas paredes e em letreiros publicitários numa incrível algazarra por todo o lado, até contaminarem o ciberespaço.

Barbara Neubarth pergunta se o que pinta Frontino, um dos internados, é arte ou terapia, e responde com a pergunta: "Que importa, trocar vassouras por pincéis?"

De facto, essas questões são pouco importantes porque só levam à academia, à convenção. Mais importante é a relação humana com os loucos, porque eles nos abalam, e, ao abalarem-nos, abrem-nos horizontes para uma diversa compreensão da vida. Uma das loucas, conhecida por Natália, insistia em que eu era filha dela. Para lhe dar a ver a loucura, disse-lhe que isso era impossível, porque eu era mais velha do que ela: podia ser mãe, mas filha, não. Então a Natália perguntou que idade tinha eu. Esta pergunta, para mim, é sinal de perfeito juízo, de compreensão de que se tinha enganado. Mas logo voltou à ideia fixa, discorrendo que os meus olhos não tinham a mesma cor, mas que a cor muda com a idade.

Pensando melhor, o que a Natália ensina é que o seu discurso não tem nada a ver com erros, gralhas nem enganos, tudo mecanismos da lucidez e da razão, sim com afectos, a saudade de alguma filha morta ou desaparecida.

A arte lida muito com afectos, por isso é possível que proporcione felicidade. Talvez seja esse até o ponto em que loucura e arte se encontram, ou o lugar no cérebro em que ambas nascem, pois a loucura não é uma afecção da inteligência, como o atraso mental, sim a resposta aos outros do ser ferido nos seus afectos.

Oficinas de Criatividade como a do Hospital Psiquiátrico S. Pedro são laboratórios de enorme potencial, dos quais podem resultar trabalhos intelectuais de grande mérito. Creio no entanto que os envolvidos estão a retirar os seus principais lucros das relações de afecto com os internados. Os loucos transmitem, através da linguagem emocional da arte, um conhecimento e promovem uma terapia de natureza muito interpessoal, que não circula certamente nos programas de curso da Universidade.

Maria Estela Guedes