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HÉLIO RÔLA
& A SUBVERSÃO DO COTIDIANO
Floriano Martins

 

Na pressa, o dialético perde a cabeça.
HR

 

 

A vida de um artista o acompanha por toda a sucessão de rumos que acaso tome a criação. Arte é rigorosamente contágio, entregar-se aos abismos dentro e fora de si. Satisfazer a quaisquer outras expectativas tende a anular a fonte essencial da criação: a busca de uma alteridade que reúna todos os homens em um só – unidade encorajada a não se acomodar a si mesma, encorajada a seguir buscando a inúmera condição do ser. Vem daí a descrição comum do artista – poeta, pintor, músico – como um ausente do mundo, o que é de um equívoco imenso, pois nessa aparente ausência radica toda a presença de sua percepção, de seu estar no mundo.

Contudo, a aparência pode ser reduzida a fingimento oportuno, a estranheza converter-se em tática promocional, ingredientes que foram integrados ao perfil do artista em nosso tempo, de maneira que a busca da alteridade passa a ser entendida como arte menor, o próprio artista, inadvertidamente, a alimentar os dilemas de uma crise que, a rigor, nem deveria existir. O espectro que atende pelo nome de mercado, com suas mil faces, cria um efeito de ótica que confunde conhecimento com reconhecimento.

Em minhas conversas com o artista Hélio Rôla, vamos desfiando muito desse emaranhado que, de certa forma, situa o mercado como contraventor e o artista como vítima, encerrando o assunto sob irredutível parâmetro:

– A arte nos une na procura e no encontro do novo em todas as dimensões de nosso viver. Mas o pano de fundo, cultura (patriarcal) da competição, nos desagrega e nos rouba o sentido do humano que é a solidariedade. Não há solidariedade no mercado. A arte, ou o que quer que assim seja chamado, não é uma entidade com existência fora do nosso afazer humano. A arte surge quebrando consensos, mas acaba por se tornar consenso (é quando ela morre para renascer quebrando o próprio consenso antes estabelecido). Você vai dizer que na ciência e em qualquer outro afazer humaoa é a mesma coisa. É mesmo!

Rigorosamente não existe mercado, como uma entidade isolada, com existência distinta e independente do ser humano. O mercado é uma invenção humana, como a inveja, a falsidade ideológica, o desprezo pelos valores comuns – uma reação a si mesmo, território pleno da esquizofrenia. Hélio Rôla nasceu em Fortaleza em 1936. Em traços rápidos, é um híbrido de artista e cientista (“Os cientistas, quando querem me desvalorizar, me chamam de artista. E os artistas, por sua vez, me chamam de cientista.”). Afeito à biologia, é um dos raros artistas brasileiros a compreender os processos orgânicos da criação e a questionar, com todo o ímpeto de sua obra, aspectos como crescimento, nutrição, respiração, que possibilitem aproximar arte e ciência.

Em decorrência disto é alheio às obsessões de praxe em nome do reconhecimento. Preocupa-se com a maneira como a mídia vai nos idiotizando em larga escala, como a arte acabou se tornando um elemento desagregador e a ciência revelou-se uma alegoria da vaidade. Hélio vive nos arredores de Fortaleza, em um sítio onde se entrega a um estado permanente de criação. Ali convive com a esposa, Efímia – também ela uma artista, de origem grega – e três cães – não rara aproximação sua de René Magritte. Certa vez disse Magritte que “é necessário distinguir o aspecto afetivo de uma pintura e o que este aspecto afetivo – observado por um físico – tem de presença indiferente ao olhar sensível do que permite evocar”. Essa distinção entre os aspectos físico e afetivo é o que Hélio tem observado em suas reflexões, salientando que uma coisa é a dessemelhança do olhar e outra a ausência de percepção.

Magritte, já em 1955, chamava a atenção para o abismo imenso entre imagem e descrição de sua expressão, uma das máscaras deformadoras do ser humano em nosso tempo. Hélio tem defendido que a imagem é o espírito e, como tal, indefinível, ou seja, o homem está permanentemente a projetar-se em si mesmo, dentro ou fora de si, mas nunca de maneira conclusiva. A arte é território do inconcluso, enquanto que a propaganda afirma-se como a ciência da conclusão forçada.

Vem daí que sua aparente ausência do mundo não seja senão uma confirmação de seu estar no mundo. Seja co-animando um laboratório de fisiologia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, ou nos encontros com artistas, Hélio tem se mostrado como um grande provocador, o elemento fricativo que ajuda a liberar e expandir consciência. Este tem sido seu desempenho extraordinário ao longo dos anos. Estamos habituados a tratar a arte pelo molde conceitual ou estético. Esquecemos, com aturdida freqüência, que a arte não passa de um descompasso do ser. É sintoma de sua fratura existencial. Absolutamente nada mais do que isso. Se o mercado resolveu tornar o homem uma excentricidade auto-contemplativa, isto nada tem a ver com arte.

 

Hélio Rôla viveu na França e nos Estados Unidos, expôs ali e também na Alemanha, não tem o reconhecimento a que faz jus sua arte, mas este não é o ponto. Não cabe aqui a observação de uma tradicional lamúria. Fez clara opção por agir dentro do abismo e não em seu palco ou camarim. Ao longo dos anos, no trabalho coletivo pelos muros de Fortaleza, nos estudos de gravura, na utilização da arte postal – antes postada a selo e hoje pela Internet –, na provocação sempre freqüente em suas conversas, enfim, no que mais lhe caracteriza uma poética, Hélio é artista que merece uma atenção maior. Tem obra extensa, envolvendo técnicas as mais diversas, sobretudo a mescla de algumas delas. Tem lidado com a imagem compreendendo sua alta dose de contradição, mas sempre atento ao que pode alertar o artista em relação a seu uso indiscriminado.

Ao expor no MAC-USP, em 1996, no catálogo o crítico Roberto Galvão punha em destaque uma constante na obra de Hélio Rola, traçando uma espécie de mapa do abismo: “entre a fantasia inocente e o realismo sórdido, ratos humanos, monstros, bandidos, animais, demônios, cenas eróticas, línguas, frases, cornetas, em justaposições supostamente anárquicas, por vezes aparentando pichações, Hélio vai construindo imagens pictóricas que estão entre a confissão (ele ajudou a criar esse mundo) e a parábola, reportando as tentações malucas do universo que o rodeia e, ao mesmo tempo, a realidade social contemporânea global”. Essa condição anárquica é o que faz com que o artista se recuse a desatrelar vida e obra.

Não cabe falar em gêneros, técnicas, estilos. Hélio tem sido um cultor intencional de uma diversidade de manifestações no tocante à discordância do homem em relação a si mesmo, a seu papel social. Não é um cobrador de impostos. Nem a vítima sodomizada pelo sistema. É um fio condutor dos estágios queimantes da existência. Arte não ajuíza, quando muito põe em juízo. Tampouco a ciência deveria julgar.

A idéia de uma exposição que ajudasse a desvendar o enredo da poética de Hélio Rôla é algo que me persegue há algum tempo. A diversidade de técnicas com que tem lidado não chega propriamente a dificultar mas antes a constituir-se em um desafio, o de encontrar vasos comunicantes que nos levem ao âmago, ao lugar secreto que o artista tem como fonte de irradiação de toda sua obra. Este é o ponto. A partir dele é que venho conversando amiúde com o próprio Hélio Rôla, buscando a melhor definição de uma exposição que saiba mesclar retrospectiva e atualidade. Assim é que escultura, desenho, gravura, collage, pintura, vão se mesclando, juntamente com os diversos materiais empregados (metal, madeira, papéis fabricados à mão e industriais, recortes de revistas etc.), em busca de uma subversão de conceitos que é sobretudo uma agudíssima leitura de nosso tempo.

Hélio esteve em 2002 no México, a convite de um consistente projeto de formação profissional ligado à cultura, FARO – Fábrica de Artes e Ofícios do Oriente. Esteve ainda presente ao lançamento de número especial da revista Alforja, edição dedicada ao Brasil, onde foram reproduzidas 85 gravuras suas. Em junho deste ano estará uma vez mais ali, realizando oficinas de gravura. Nesta mesma ocasião segue para a Costa Rica, para o lançamento da revista Matérika, cuja edição será toda ilustrada por ele. Para o segundo semestre deveremos cuidar então da curadoria da exposição mencionada no parágrafo anterior, evento a ser ladeado pela edição de um catálogo de obras do artista, configurando assim um pleno reconhecimento pela atitude de quem soube, no entrelaçamento de vida e obra, entender que cabe ao artista a subversão do cotidiano e não os malabarismos inócuos afeitos à galhofa de um público quase sempre tão perplexo quanto o artista da onda.