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Francisco Soares
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O distanciamento perante o modelo do « Verdadeiro Método» deriva, em parte, do recurso ao conceito de «expressão», cujo conteúdo passa pela crença num "processo psicológico, de que o género toma origem" (1) e que, por isso, exprime. Ele remete-nos para uma fonte romântica, sem dúvida, e para a subjectividade. Nessa fonte, porém, a perspectiva pragmática também não foi esquecida. Uma das obras que certamente se interpôs entre os dois foi a « Estética» de Hegel, resposta actualizada à poética de Aristóteles e seu lastro, que ainda vai ecoar em títulos de Croce, como a « Estética », o « Breviário de Estética » e, mesmo, « La Poesia» (a ''poética'') (2). A poesia lírica distingue-se em Hegel pelos "conteúdos" (o objecto, na Poética de Aristóteles (3), pelos "modos de apresentação" e por um aspecto pragmático não nomeado como tal: "evocar à consciência a potência da vida espiritual". Diz na « Estética »: "o que o poeta [lírico] se propõe evocar no auditor ou leitor (4) é uma disposição de alma semelhante à que nele fez nascer o facto que relata" (5). É notável a relação com o « Breviário de Estética », confirmando-nos que o filósofo italiano era de linhagem romântica. No « Breviário» se escreve que "o artista produz uma imagem ou visão; e aquele que ama a arte dirige o olhar para o ponto que o artista lhe indicou, olha pela fenda que ele abriu e reproduz em si essa imagem" (6). Não há aqui nenhum sinal da luta pela expressão, que viria a ser o pólo decisivo do pensamento estético de Fidelino de Figueiredo. Mas isso não importa agora, só para a contabilidade das diferenças entre os dois. O que importa é que a narração do processo literário é idêntica em Hegel e Croce, idêntica na atenção ao aspecto comunicativo: o autor suscita no leitor a imagem criadora que o moveu. O que traz uma consequência para ambos: o processo literário imagina-se na relação autor-leitor, intermediada por um texto em princípio obediente (mais obediente na frase de Croce (7) que na de Hegel, cuja prudência lhe faz escrever "propõe evocar" em vez de "evoca" ou "produz"). Hegel, um pouco mais adiante, reúne de novo a marca expressiva à pragmática para redefinir o lírico: a "expressão da alma do poeta" (Croce falaria no "estado de alma" (8) é "destinada a agir sobre outrem" (9) para "libertar o espírito [.] no sentimento" (10). Num "sentimento" que dava "coerência e unidade à intuição", portanto à obra de arte (11).

O aspecto pragmático vem a ganhar em Fidelino de Figueiredo uma configuração idêntica em parte, ao se representar sob a já citada forma de "contacto com o público" (a mesma que faz Hegel falar em "auditor ou leitor"). A forma de contacto com o público, a situação em que o poema é enunciado, foi aproveitada mais tarde, ao longo do século XX, por outros autores, como por exemplo Northrop Frye. Ela é, no entanto, muito próxima também da que levara Verney a classificar os poemas narrativos (discursivos) em "poesias" que se cantam e que se lêem, tanto quanto em peças que se comunicam pela acção ou só por leitura . Claro que a matriz mais remota é, nesta história e mais uma vez, a de Platão e a de Aristóteles. Eles tinham já levado em conta a maneira como a estória se transmite (por representação ou discurso) e os cenários enunciativos imitados. Platão, por exemplo, no livro III da « República» , diz que as "duas harmonias, a violenta e a voluntária, [.] imitarão [.] as intonações dos infelizes, dos felizes, dos sábios e dos valentes" (12), reportando-se a quadros enunciativos mais definidos, em que ao domínio de uma pessoa gramatical se acrescenta o carácter de uma personagem definida pela posição social ou pela situação pessoal (o estado de alma próprio). Aristóteles, como acima disse, dá à emoção ou sentimento a provocar (a catarse ) uma importância fundamental - a qual, de resto, faz lembrar o carácter ritual da tragédia - e separa a epopeia da tragédia porque uma é escrita e a outra representada. A linhagem e posteridade dessa atenção pragmática têm aqui um nódulo sugestivo.

A consideração do objecto da imitação (os "conteúdos" da "expressão" em Hegel), terá levado Fidelino de Figueiredo à denominação de "subjectivo" (aquele género em que o escritor "traduz os seus pensamentos e sentimentos"), oposto à reconstituição do "pensar e sentir d'outras personagens, criando uma acção". A consideração do objecto é, em Fidelino de Figueiredo e em Hegel, muito próxima, pois ambos consideram, apesar da divergência na nomeação, que o objecto ou conteúdo correspondem ao sujeito ou à estória. No entanto, Hegel associa o subjectivo ao lírico, sendo lírico o poeta que se toma a si mesmo como sujeito - ideia que se repete em vários pontos da parte da Estética dedicada à poesia lírica. A genologia de Fidelino de Figueiredo separa o subjectivo e o lírico (por exemplo incluindo as "memórias" no subjectivo, ao lado das "prosas lyricas"). Por isso me parece mais precisa a denominação usada pelo crítico português. E Fidelino está mais próximo de Batteux do que de Hegel neste ponto.

O que há de comum é muito mais a consideração do processo comunicacional. Em vez dos tipos morais de Aristóteles (em que o objecto, a personagem, é superior, igual, ou inferior ao comum dos mortais), temos a definição segundo o objecto fixada pelas relações enunciativas, melhor, pela relação entre o "conteúdo" e quem se apresenta como emissor da mensagem. Essa relação é de coincidência (no caso do género subjectivo ou lírico) ou de discrepância (no caso do género narrativo ou "de acção"). Jakobson veio a fazer uma sugestão próxima, ao conotar cada género com cada um dos pronomes pessoais, na esteira ainda da tríade romântica (épico-ele / lírico-eu / dramático-tu). O objecto imitado era, portanto, a primeira pessoa, a terceira, etc.. Definindo os géneros pela função sub-dominante, ele diz ainda que "a poesia da segunda pessoa [.] é ou súplice ou exortativa, dependendo de a primeira pessoa estar subordinada à segunda ou esta à primeira" (13). Introduz aí um critério que se prende com a função social da fala da personagem no quadro enunciativo e ficcional, um pouco à maneira de Platão, mas captando-a a par de um quadro enunciativo em que "tu" define o género e "exortativo" ou "súplice" a espécie. Por associar os géneros, a enunciação e as funções, Jakobson (como Hegel) não vai distinguir o subjectivo do lírico (14). A sua hipótese de classificação volta, portanto, a ser menos precisa. O modelo de Fidelino de Figueiredo é, de facto, uma síntese pertinente, quer das genologias dos séculos XVIII e XIX, quer das genologias das primeiras décadas do século XX na Europa. A sua principal tarefa na classificação dos géneros foi, precisamente, a de clarificar e tornar mais coerente uma tríade já usada e abusada, portanto sonolenta. Ao fazê-lo não deixou de ser um homem do seu tempo, não deixou de lhe trazer (e ao nosso) um contributo próprio.

Francisco Soares

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(1) Op. cit., p. 25.

(2) A obra parece ter sido em alguns momentos designada por Croce como " Poética" (vv. ed. cit., pp. 367-368).

(3) V. ed. cit., p. 105. O objecto é o homem.

(4) Veja-se, já aqui, a atenção dada ao cenário no qual se faz a divulgação ou publicação da poesia lírica.

(5) Hegel, G.W.F., « Estética» , trad. de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, pref. de Pinharanda Gomes («Vida e Obra de Hegel»), Lisboa, Guimarães Ed., 1993, p. 609.

(6) Ed. cit., pp. 20-21.

(7) Croce, no « Breviário de Estética» , defende a unidade intrínseca da obra de arte sem hesitações, ou misturas, ou vacilações que pusessem em causa a comunicação da imagem produzida pelo artista (v. ed. cit., p. 64).

(8) Ed. cit., p. 63.

(9) Ed. cit., p. 616.

(10) Ed. cit., p. 607. O itálico não é meu.

(11) V. B. Croce, « Breviário de Estética », ed. cit., p. 63.

(12) Platão, « Diálogos - I: a República , trad. e notas de Sampaio Marinho, Lisboa, Europa-América, 1975, p. 94.

(13) « Linguística e Comunicação» , 10.ª ed. bras.ª, pref. de Izidoro Blikstein, trad. de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes, São Paulo, Cultrix, sd, p. 129.

(14) Reserve-se que o texto em causa, «Linguística e Poética», não era uma teoria dos géneros literários.