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Francisco Soares
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Fidelino de Figueiredo e o Feixe Conceptual de « A Crítica Literária como Ciência»
 

O modelo genológico de Fidelino de Figueiredo vem a público em 1912, portanto já depois de extinta a "escola" romântica . Apesar de mais tarde o crítico ter reformulado afirmações feitas em « A Crítica Literária como Ciência» , atitude natural num pensamento vivo, é-nos útil a sua obra, para fazermos a comparação entre a segunda metade do século XVIII e o princípio do século XX, que na verdade é o fim do século XIX. Por essa altura, as reacções que atingiram o seu cume em Croce acompanhavam os tímidos ou ressentidos afastamentos de alguns intelectuais e cientistas em relação ao positivismo triunfante ainda nas academias de Portugal e do Brasil. Foi aliás com admiração, mesmo entusiasmo, que Fidelino de Figueiredo saudou a tradução autorizada do « Breviário de Estética » em Portugal. Apesar das diferenças que entre eles havia, não se pode estudar o pensamento literário do crítico e teórico lusófono sem considerar a sua relação com o filósofo italiano. O autor de « Cultura Intervalar» assumiu-se "um dos seus mais assíduos leitores e dedicados admiradores" (1), "principalmente [.] como esteta e crítico" (2). No prefácio que faz a essa tradução, Fidelino mostra conhecer bem a obra de Croce. Encontra afinidades no seu particular historicismo, realçando que a história não é "conhecimento do abstracto, pelo contrário, muito tem de arte, pelo seu objecto concreto". A paixão pelo tipo artístico de conhecimento constitui outra afinidade. Era o tipo "intuitivo", que se fazia equivaler à "expressão" - daí derivando a identificação (segundo Fidelino) da linguística e da estética, "peça mestra da estética do sr. B. Croce, e uma das suas mais ousadas proposições, que concitou a antipatia de toda a ciência oficial" (1). Usando o adjectivo "oficial", ele estava já a denunciar o domínio positivista sobre a Universidade portuguesa no seu tempo e « A Crítica Literária como Ciência» , nas suas reedições, testemunha a tensão entre as ideias afins das de Croce, Bergson e outros e uma tendência estruturadora, classificadora, que se completava na teoria da cientificidade da crítica ou da história literárias.

O que mais unia os dois (Fidelino e Croce) era precisamente o combate ao positivismo, "análogo ao de Bergson" (2) - sendo que o francês partia de uma investigação sobre o conceito de tempo e Croce de uma "concepção histórica", partilhada pelo autor de « O Medo da História» . No caso do futuro Director da Biblioteca Nacional, a denúncia virava-se contra a prática e o magistério de Teófilo Braga, incluídos na caracterização geral da ideia de poesia na segunda metade do século XIX, ainda muito ligada, mesmo entre positivistas e realistas, à imagem da "expressão" de "estados de alma" (3). Margarida Vieira Mendes observa que Teófilo Braga tem muito ainda de romântico, porque na verdade caiu no estudo documental da vida do poeta a partir da obra literária (o documento). A descrição que faz é certeira e sumária: os seus prefácios "são dominantemente estudos e ensaios histórico-literários, de preferência sobre a evolução de um género e as suas origens étnicas, ou então meramente biográficas" (4). O nacionalismo deste positivista português aparenta-o também com o romantismo lusitano. Diz Margarida Vieira Mendes que "praticamente todos os seus prefácios mostram preocupações nacionalistas" e neles se procura definir um "génio nacional", uma "alma nacional", agregando-se para isso argumentos raciais e etnológicos entre outros (5). Com razão denuncia ela que Teófilo "procede à acumulação de ideias feitas, que transforma em programas literários dogmáticos, e cuja articulação racional não resulta nada clara, ou até nem chega a existir" (6). Quando Fidelino de Figueiredo reagia ao domínio de Teófilo Braga sobre a academia portuguesa, reagia também a essa mistura de positivismo e de romantismo. Para Fidelino de Figueiredo, a prática de Teófilo estava cada vez mais reduzida a uma exposição, cuidada nas notas bibliográficas, mas de escasso ou mesmo inexistente raciocínio criativo e teórico (7). Sem comentar prefácios em « A Crítica Literária em Portugal» (de 1910) (8), campo de estudo de Margarida Vieira Mendes, ele observara que o positivista português se dedicava mais a aspectos extra-literários do que aos próprios da arte, na linha da filosofia de Comte. A reacção era contra este positivismo e por isso podia passar pela exigência de um raciocínio verdadeiramente científico, tal como acontecia com os formalistas russos (ainda que a noção de ciência diferisse entre ambos, sobretudo na segunda fase da obra de Fidelino). Talvez venha daí uma significativa diferença face à poética de Benedetto Croce. No entanto, o seu pensamento está entrelaçado, mesmo no que à ciência diz respeito, com a obra do pensador italiano.

A exigência do trabalho científico fá-lo notar a associação da linguística e da Estética em B. Croce, que é outro aspecto comum aos formalistas russos. Outro factor em comum entre os três é o de se dedicarem tanto à crítica quanto à teoria e de porem à prova, no estudo de obras concretas, as suas hipóteses. Também no prefácio ao « Breviário de Estética », Fidelino chama a atenção para as "relações entre a crítica e a criação literária", que seriam fundamentais no pensamento de ambos. Note-se que o prefaciador havia de publicar, em 1918, uma conferência intitulada mesmo «Criação e Crítica Literária», sendo que a sua consideração por este aspecto o leva a dividir o propósito científico inicial em dois: a crítica teria um desenvolvimento científico (tal como desejavam os formalistas) e outro mais criativo, próximo da poesia e da filosofia. O português considera Croce, aliás, a par de Bielinsky, Taine e De Sanctis, um dos críticos e filósofos criadores. No pref. à 3.ª ed. de « A Crítica Literária como Ciência» (de 1920), volta a falar na "recíproca osmose do exercício prático e da reflexão teórica", sublinhando que o pensamento teórico só se torna fecundo por essa via. Muito mais tarde ainda reafirma a ideia, em «A Luta pela Expressão», quando fala na relação entre as palavras e a filosofia que marcava as obras dos grandes pensadores. O seu caminho será, de resto, cada vez mais na direcção de um pensamento livre, criativo, desenvolvido com e a partir da poesia ou da literatura, para daí extrair conclusões de carácter universal, relativas à essência e existência do homem. Com isso aproximava-se, provavelmente sem o saber, do tipo de crítica desenvolvido no seio da Filosofia Portuguesa (9), onde pontuaram vários pensadores antipositivistas, ou pelo menos não-positivistas. O fundamento para esta evolução passava por uma percepção comum de como se forjam o pensamento e a linguagem. Para Fidelino de Figueiredo, o "conhecimento literário está em germe no acto inicial de pensar" (10); "há, pois, um aspecto literário ("poético", diria Croce) constante no acto inicial do pensamento, um episódio primeiro do longo drama da expressão verbal" (11). Álvaro Ribeiro estabele "a doutrina de que pensar é pesar, medir e contar as palavras", deduzindo daí uma didáctica do intelecto activo: "falar para aprender" (12).

As diferenças entre Fidelino de Figueiredo e outros teóricos ou filósofos da época, não-lusófonos, derivam em boa parte da relação complexa e informada que mantém com a história e a contemporaneidade da cultura portuguesa. Uma das diferenças que separava Fidelino de Figueiredo e Benedetto Croce era respeitante aos géneros e mostra-nos isso mesmo. O ensaísta português também aceitava que os géneros literários não tinham substância própria, como definiu no seguinte "princípio: o género traduz uma atitude de espírito do seu autor e nunca uma realidade independente" (13). Mas considerava a classificação genológica indispensável ao trabalho do historiador da literatura, o que se vê justamente em « A Crítica Literária como Ciência» . Croce aceitava a pertinência do conceito de género para estudar certas épocas (por exemplo o Renascimento europeu) (14). Fidelino de Figueiredo falava de classificação como de algo muito miúdo, muito preciso, sintetizável num quadro onde caberiam todas as obras existentes e escritas até ao momento em que trabalhava. Talvez por isso, o nível de condensação fixado no esquema genológico do livro, a sua clareza e simplicidade, permitem que nos concentremos nesse esquema como num resumo rigoroso das ideias que o autor então conhecia e perfilhava.

Para Fidelino, como para Croce, o fenómeno de partida é a "produção da obra pelo autor". Daí derivam, "multiplicando-se e complicando-se, todos os problemas: constituição e orientação mental do artista, acção sobre o público, reacção deste sobre o autor, transformações do gosto, processos de satisfação dessas transformações do gosto, etc." (15). Dir-se-ia que uma tal consciência da comunicação literária e das suas implicações devia ter antecipado a estética da recepção. E que, nesse caso, a atenção a Lichtenberger, por exemplo, não devia ser tão irónica. Mas é que havia uma convicção a barrar o avanço nesse sentido. Era ela a de que não podemos assistir "às alterações da consciência do artista e da consciência colectiva do público". Pelo que só havia uma solução, típica também do século XX e que não afastaria Verney: a de estudarmos a obra, nosso campo único de observação (16). Nesse campo único se conhecia alguma coisa da "regularidade causal", uma tarefa destinada à ciência literária pós-positivista. Ele relativizava o valor da ciência, reconhecendo-lhe os limites humanos (também erra) e morais (pois "representa só uma visão humana, susceptível de incessáveis[sic] correcções" (17). Porém, "a regularidade fenomenal das coisas, ao menos como nós as vemos, mantém-se e persiste através de variadas explicações provisórias" (18). Ou seja, relativiza e ao mesmo tempo salvaguarda a valorização do trabalho científico, pois o que vai expor se apresenta como tal. A visão do trabalho e das possibilidades de sucesso não está muito longe da estruturalista, mas leva a classificações idênticas às de Verney.

Em passagens como esta, vemos a luta que se trava entre uma afirmação de fé na ciência e a rejeição da hipótese de ela constituir a única via do conhecimento e da crítica. O papel da ciência literária já tem aqui por companhia o "também": "é também isto o que a crítica procura, uma vez que se imponha intuitos científicos". A bipartição nova entre as duas formas, a científica e a do livre pensamento, vem recolocar o trabalho em uma das duas vias exploradas pelo ensaísta. Não se trata agora de uma única tarefa. Ainda assim, a ela cabe-lhe (porque tem condições) "apurar [.] conclusões sobre a crítica, considerada como ciência, e não como novo género literário" (19). Para se detectar as regularidades exigidas aos cientistas, o quadro genológico é fundamental e é esse quadro que ele traz à discussão.

Comparando com mais proximidade as duas genologias, a classificação de Fidelino de Figueiredo parece melhor que a de Verney mas é, por inesperado que (já não) pareça, uma parente próxima. Começo por fundamentar o "por inesperado que pareça" e depois falo do parentesco.

O ponto de partida do raciocínio de Fidelino é que "o escritor tem sempre em vista dois fins: a expressão e o contacto com o público" (20). A palavra "expressão" evoca sem dúvida o romantismo e também Croce. É o romantismo, presente em « A Crítica Literária como Ciência» apesar da reacção a Teófilo Braga, são os "estados de alma" dos "nossos românticos avós" que justificam o "por inesperado que pareça". Claro que a influência do romantismo não desaparecia no discurso de Fidelino. Os exemplos dados (para as espécies dentro dos géneros) são actualizados e cobrem um leque vasto no espectro literário, em contraposição com a rigidez clássica das espécies enumeradas no « Verdadeiro Método ». Incluem tipos que só entram no campo da "arte literária" depois do Romantismo, como a "prosa lírica" e as "memórias", que dão corpo à prosa expositiva e subjectiva. A recomposição do modelo estava, pois, atenta à "confusão de géneros", "que no romantismo se deu", tanto quanto acautelada contra ele.

Não seriam de esperar, neste quadro, afinidades com a poética neoclássica. Reforçando essa impressão, a "maneira como o género actua no público", um dos dois critérios para classificar os géneros em « A Crítica Literária como Ciência» , lembra que a emoção era o fim a atingir. Ora, esse era o objectivo da poesia percebido por Fidelino em Verney, mas muitos anos depois de Hegel e depois, também, das leituras de Croce. Fidelino de Figueiredo lia, assim, Verney com o romantismo, tanto quanto o romantismo com Verney. Atenta à substituição do mecenas pelo cliente, a segunda expressão usada por Fidelino de Figueiredo ("contacto com o público") igualmente nos lembraria mais poéticas dos séculos XIX e XX que do século XVIII. A importância da cooperação do público, sem a qual as obras não existem (e não se vendem), aparece ainda na 3.ª ed. da conferência (21) e restaura "algumas velhas ideias metodológicas de Henri Lichtenberger sobre a concepção pebliscitária da crítica", tal como diz mais tarde em «A Luta pela Expressão» (22).

A citação de Lichtenberger é muito significativa, apesar do distanciamento manifestado por F. de Figueiredo em relação ao seu método em «A Crítica Literária como Ciência». Estudioso germanófilo em todos os sentidos da palavra, Lichtenberger foi uma referência no estudo de certos autores alemães - referência presente em Portugal. Crítico reconhecido e divulgador qualificado das obras de Novalis, Goethe, Wagner (note-se o romantismo do conjunto) e outros em França, tornou-se um dos germanistas (senão o germanista) predilectos dos intelectuais em geral. Fernando Pessoa tinha-o representado na sua biblioteca. Não pelo aspecto literário.

Lichtenberger, divulgador avalizado da cultura germânica, explicava também a evolução mental alemã e, por consequência, expunha a lógica interna que, sob o filtro humanista francófono, justificava o nacional-socialismo alemão. Daí surgiram obras destinadas a fazer entender o regime nacional-socialista aos outros povos. Alguns dos títulos mais conhecidos de Lichtenberger estão relacionados com esse aspecto, de divulgação cultural e política ao mesmo tempo. Entre eles figura « L'Alemagne Moderne: son évolution », obra recenseada na biblioteca de Fernando Pessoa. É a prosa, das escritas por Lichtenberger, mais conhecida fora da Alemanha e da França. Chega a ser elogiosa para Hitler e o seu projecto político. Mas - este "mas" não é só imposto por uma regra gramatical - falando num projecto político ainda assim razoável, porque Lichtenberger chegou a acreditar que o nazismo não era, nem racista, nem imperialista. Pensava, talvez, em uma espécie íntegra de nacionalismo à qual, por isso mesmo, não podia ser assacada qualquer intenção destrutiva relativamente a outras nações. Os nazis aproveitaram-se disso, como o faria qualquer regime totalitário, que (apesar do poder que detém ferreamente) sempre sente necessidade de se legitimar. Os nazis, nesta história, não representam, porém, nada.

O que tem significado é o facto de Lichtenberger não ser desconhecido para a elite académica e literária portuguesa da época. E isso, para o contexto concreto do nosso estudo, interessa por ele propor uma espécie de estética da recepção radical e "avant la lettre" nos seus estudos literários. Na formulação comentada por Fidelino de Figueiredo em « A Crítica Literária como Ciência», a crítica passava a ter o papel de recolha de versões acerca de uma obra, pouco ou nada mais (23). Não sei se isso é justo em relação ao pensamento crítico e teórico de Lichtenberger, não me parece. Segundo Fidelino, a proposta dele consistia em "organizar o juízo", num "método impessoal", que tinha sido "formulado pela totalidade dos leitores acerca das obras e dos escritores" (24).

O princípio do método parece mais redutor que ele: "il est bon de présenter au lecteur sur le sujet qu'il étude les solutions typiques de l'humanité: voilà le principe de cette méthode" (25). É por isso que Fidelino de Figueiredo o rejeita. Porque parece ficar só por aí, ou seja, não passa de uma fase considerada preliminar, de recolha (impessoal) da recepção à obra de Goethe. Mas o papel do crítico, felizmente, na prática de leitura de Lichtenberger, não ficou só por aí. No seu livro sobre Novalis, por exemplo, a relação entre texto e leitor ocupa um lugar importante, que não se reduz à recensão de obras críticas sobre determinado autor. Numa afinidade não assumida por Fidelino de Figueiredo ele acha aí que " la manière dont Novalis dit ce qu'il a à dire est aussi parlante que le contenu lui-même. Il faut même aller plus loin et dire que le sens du texte n'apparaît véritablement qu'au travers du style, de la formulation. Le mouvement de la langue révèle la substance du texte et la forme rend compte en elle-même du contenu'' . Fora justamente a coesão da obra o que chamara a atenção de Fidelino na poética neoclássica portuguesa e, por estas como por outras vias, o "inesperado" começa a deixar de o parecer. Embora atento a este aspecto, ao analisar o « Monologue », Lichtenberger percebe a dialéctica relação entre o texto e o leitor, reiteradamente, e a importância que ela tem.

Depois de comentar uma citação a partir do seu quadro enunciativo e respectivas implicações ao nível do significado, surpreendem-nos as frases relativas ao jogo com as expectativas da recepção. Por exemplo: ''cette première affirmation frappe à cause de l'adjectif närrisch qui est employé pour qualifier une chose a priori sérieuse et profonde. D'emblée Novalis crée une distance entre le lecteur et son mode de pensée habituel '' . Veja-se bem que se mostra a pertinência (específica desse texto) do adjectivo närrich em função do contraste com o uso habitual. No segundo período refere-se o jogo em termos que Jauss não desdenharia: o texto cumpre a função diacrítica, reconhecida por formalistas e pelo estruturalismo de Praga (" cria uma distância entre o leitor e seu modo de pensamento habitual ") e portanto é analisado pela relação que suscita entre o leitor e as suas expectativas. Dessa perspectiva se chega à conclusão de que, segundo o texto, '' parler et écrire n'est donc pas ce que l'on pense à première vue'' .

O efeito de estranhamento ("não é portanto o que se pensa à primeira vista") provocado no leitor tem a função, primordial, de nos abrir os olhos para uma visão nova e autêntica de falar e escrever. Não reparar nele é não reparar na importância que tem a própria perspectiva de Novalis (como o prolongamento da citação permitiria comprovar). Portanto, a percursora atenção que Lichtenberger dava aos aspectos pragmáticos era mais personalizada do que a citação de Fidelino de Figueiredo faria supor. Essa atenção reforçou decerto as afinidades que o historiador da crítica portuguesa encontrara em Verney, fixando um elemento comum entre o neoclassicismo e as metodologias do seu tempo. Ou seja, a leitura de Lichtenberger, apesar dos distanciamentos ou dos pruridos, está ali para marcar a contemporaneidade mas também estabelece uma ponte com a crítica anterior ao romantismo.

A importância dada à situação comunicacional, em « A Crítica Literária como Ciência» chamada "contacto com o público", mostra bem a proximidade que, nesse aspecto pragmático, havia entre as duas obras e, na verdade, só nos deve surpreender isso se não lemos o « Verdadeiro Método» . A forma de contacto com o público substitui a dupla "dramático / narrativo" (acção viva / discurso sem acção viva) pela dupla "representativo / expositivo", remetendo-se a noção de acção para as subdivisões do expositivo ("de acção" ou não) - ou seja, passando a "acção" a qualificar a narrativa pelo seu conteúdo em vez de qualificar o drama pela forma de exposição ao público. A situação comunicacional distingue, ainda assim, a nova dupla (representativo é o que se representa para os espectadores; expositivo é o que só pode ser lido). Mas, em qualquer dos casos, ela é decisiva para este nódulo: em Verney pela consideração da "acção viva" (representação, ou seja, forma de contacto com o público) como o critério distintivo, em Fidelino de Figueiredo porque o modo de se apresentar ao público um género é o que o distingue do outro. A dualidade entre o que no « Verdadeiro Método» se chama de poemas dramáticos e poemas narrativos repete-se, portanto, em « A Crítica Literária como Ciência» .

Acrescentando-lhe um mais rigoroso raciocínio indutivo e partindo do mais concreto para o mais abstracto, o crítico faz anteceder essa dualidade por "duas maneiras": verso (26) e prosa. Para designar os dois "modos" equivalentes aos de Verney (extraídos a um vocabulário clássico), ele usa os termos "representativo ou figurativo: Theatro" e "expositivo", como disse. Por sua vez, cada um deles se subdivide em "de acção" e "subjectivo". Temos, em resumo, poemas em verso ou em prosa (as duas maneiras de falar artisticamente), representados ou expostos quanto aos "modos" (de "contacto com o público"); dentro do expositivo temos os géneros "de acção" e "subjectivo", palavras que substituem "narrativo" e "lírico". A passagem do "lírico" ao "subjectivo" tem por base uma operação já comentada por Genette na « Introdução ao Arquitexto» e para a qual o neoclassicismo deu uma contribuição decisiva, mais à frente referida. Acrescenta-se, portanto, um léxico novo e mais preciso à classificação anterior, o que não lhe afecta o papel estruturante. Mas, apesar de beneficiar dessa passagem, o subjectivo não se confunde, em Fidelino de Figueiredo, com o lírico.

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(1) Pref. ao Breviário de Estética (trad. R. de Almeida, "auctorizada pelo auctor", Lisboa, A. M. Teixeira, 1914), p. XXVIII.

(2) Op. cit., p. XVII.

(3) Loc. cit..

(4) Op. cit., p. XIV. O prefácio vem datado: Lisboa, 18 de Maio de 1914.

(5) Margarida Vieira Mendes (v. abaixo), pp. 72-73.

(6) Sintomaticamente, o artigo em que o diz intitula-se «O Conceito da Poesia na 2.ª Metade do Século XIX à Luz dos Prefácio de então - Persistência do Romantismo». A citação veio da nota 6, p. 89. O artigo insere-se no n.º 4 da série «textos de literatura», editada pelo INIC / Centro de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa (Lisboa, 1980).

(7) Op. cit., pp. 84-85.

(8) Op. cit., pp. 87-88.

(9) V. A. Soares Amora, op. cit.

(10) Margarida Vieira Mendes, op. cit., p. 63.

(11) Fidelino de Figueiredo criticou e saudou o saudosismo no citado artigo sobre «Saudosismo e Integralismo», p. 230. Achava o movimento e o sentimento saudosos propensos ao lirismo. Não manifesta conhecimento da obra filosófica de Leonardo Coimbra, que não comenta ali. A Filosofia Portuguesa, embora tenha raízes múltiplas, tem uma forte filiação no saudosismo.

(12) «A Luta pela Expressão», ed. cit., p. 89.

(13) Op. cit., p. 93.

(14) Liceu Aristotélico: lógica e psicologia , Lisboa, SEC, 1962, p. 127.

(15) «A Crítica Literária como Ciência», 3.ª ed. (1920), p. 55.

(16) Aguiar e Silva, op. cit., p. 119.

(17) Op. cit., p.13.

(18) Loc. cit.

(19) Op. cit., pp. 13-14.

(20) Loc. cit.

(21) Op. cit., p. 14.

(22) Op. cit., p. 55.

(23) Lisboa, 1920.

(24) 3.ª ed., São Paulo, Cultrix, 1973.

(25) « A Crítica Literária como Ciência», ed. cit., pp. 43-44. Comenta o artigo «Le Faust de Goethe: esquisse d'une méthode de critique impersonelle», saído na « Revue Germanique », em Jan.º de 1905.

(26) Op. cit., p. 43.

(27) Loc. cit..

(28) O concreto aqui tinha já sido visto como tal (e negativamente) por Castilho e Ramalho Ortigão, ao distinguirem poesia e verso. Castilho fá-lo num prefácio de 1862 e Ramalho em 1866, no prólogo às « Primaveras» de Casimiro de Abreu (v. Margarida Vieira Mendes, op. cit., pp. 75-76).