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FRANCISCO SOARES

“Tirar Doutrina”: Cruzamentos Narrativos de Cadornega

INDEX

Contextos
(In)definições
A língua: Intenção estética, oralidade e originalidade
Intenção estética
Oralidade
Estórias cruzadas
Recursos de conexão
BIBLIOGRAFIA

Oralidade
A linguagem cruzada nestes meios, entre confrontos e conluios, em intensos intercâmbios entretanto, usava-se não apenas no comércio e na tropa, mas também no lazer. O prazer do convívio obrigava a uma fala que fosse comum, percebida por todos e afável, tanto quanto o interesse dos negócios ou das estratégias políticas. Nas horas de lazer é que as estórias corriam mais soltas e o autor, anotador atento, as registava, entresachando-as com a notícia das guerras e dos comércios.

As suas fontes eram, sobretudo, essas – e, portanto, orais. Ainda que se perceba que o velho capitão frequentou leituras eruditas de crónicas e épicas, tentando o estatuto mor de cronista de Angola (1972, III: 109-110), quem lhe fornece a matéria narrativa, já estruturada numa estória, é essencialmente a oralidade e muito em especial no volume que estamos a ver.

A oralidade ela própria era já multifacetada e instável. Não era uma oralidade a preto e branco, ou melhor, a preto, pardo e branco como nos antigos selos de povoamento. Era, ao invés, uma complexa e pouco ordenada amálgama onde se cruzava, com formas e ritmos mutantes, uma miríade de origens étnico-linguísticas, assim como de interesses económicos, políticos e sociais.

Sendo capitão do exército colonizador, uma das fontes orais de Cadornega é a dos “portugueses antigos desta terra” — porém não se dizendo nitidamente que pessoas incluir entre tais portugueses, como observei atrás. Não seriam penas os “antigos conquistadores” (1972, III: 89). Uma das estórias daí recolhidas é sobre soldados que se portavam mal quando não tinham guerras em que lutar. O que nos remete para uma possível fonte castrense mas, apesar dos indícios, as informações não são suficientes para delimitar o exacto perfil desses militares “portugueses”.

Os “soldados velhos” que vinham para a colónia traziam também às vezes estórias de países mais afastados. Um deles, “tendo servido na guerra a alguns príncipes de Itália, [...] contava muitas grandezas deles e daquelas partes por onde havia estado” (1972, III: 89). Os militares passavam o tempo às vezes recontando estória s, “como o faziam aqueles famosos Argonautas indo navegando ao descobrimento da Índia Oriental com aquele excelente e animoso caudilho Vasco da Gama, fazendo o Veloso amigo com seus companheiros rancho (os Lusíadas de Luís de Camões)” (1972, III: 89). A citação veio até ao fim de propósito. Os militares, entre os quais se incluíam não-brancos, “para entreter o tempo” compunham um cenário que a erudição do autor — e de alguns dos previsíveis leitores — conhecia bem, livro de referência comum. Tal cenário proporcionava a troca de estórias passadas longe de qualquer dos povos envolvidos nas lutas locais e elas assim entravam na oralidade angolana. Francisco Gomes de Amorim (1827-1891), poeta português que emigrou para o Brasil aos 10 anos de idade, na narrativa autobiográfica que introduz os Cantos Matutinos (Lisboa, 1858) mostra outras vias (principalmente em ambientes comerciais) pelas quais a oralidade recebia e integrava a escrita. A nossa é também uma “literatura anfíbia”... (v. Santiago, 2006: 201).

Ao mesmo tempo ele faz a ligação com a epopeia camoniana. Um hábito local — o de contar estórias, ainda que fabulosas, e dizer ditos e gracejos — hábito de horas vagas, encontra-se com outro exógeno que lhe é igual. Isso permite a combinação dos dois cenários em torno de intrigas próximas ou longínquas, dá uma escala de equivalências que torna familiar (portanto, possível) a partilha das várias estórias. A citação erudita passa assim a funcionar como identificador ou conector entre as culturas envolvidas na oralidade e as da escrita, umas locais e outras em acelerada globalização.

Quanto à oralidade do Portugal europeu, de onde vinha o capitão, ela também não era monolítica. No Alentejo ainda havia pessoas a contar casos e coisas que “diziam os Mouros”, ou seja, os Muçulmanos. Curiosamente, quando se fala nessa fonte, as palavras que lhes são atribuídas formam uma rima típica: “Onde fostes lôcos? Fostes muitos e vindes poucos?”. O dístico não era certamente “mouro” mas, ainda assim, a menção a tais “povos” indiciava a consciência desse legado africano dentro da história portuguesa.

O legado africano em terras portuguesas era renovado pela presença de escravos e gente forra. Em Vila Viçosa houve em certa altura um leão, oferecido ao Duque de Bragança. A única pessoa que o leão respeitava era um “negro”, por sinal chamado Nicolau de Bragança. Que estórias contaria este negro quando falavam com ele por causa do leão? Dessas, quantas originalmente não-europeias? E destas, quantas a oralidade portuguesa não terá levado em algum momento para fora de Portugal outra vez?

No local as fontes orais eram, para além das citadas, outras que vieram por terra, igualmente de proveniências várias, uma delas sendo os “fidalgos Muxicongos daquele reino”, assim como “sovas” ou “sobas” de outros “potentados”, serviçais e escravos, enfim, todos os que os “portugueses” por algum motivo contactavam ou integravam.

A oralidade banto angolana também não guardava só memória do que se passava ou passou ali (v. por ex. 1972, III: 152). Os “Donges”, que chamavam Kalunga ao mar porque lhes lembrava a morte, sabiam que na costa oriental andavam navios portugueses. O conhecimento que tinham da situação não se reduzia, portanto, ao espaço local.

As fontes orais até aqui mencionadas derivam de indicações explícitas. Algumas vezes indicava-se a fonte muito especificamente, sobretudo quando a estória se transcrevia da boca de um dos protagonistas (v. 1972, III: 75-76). Outras indicações eram menos precisas.

Lembremo-nos, por exemplo, dos que são apenas referidos como padres. Muitos padres eram filhos da terra, alguns filhos de sobas e de nobrezas locais, o que os tornava especialmente hábeis como tradutores culturais mas também lhes dava um perfil indefinido quando se falava só em padres.

Outro cenário da oralidade (cruzada com a escrita) que proporcionava a transmissão transversal de casos era o das romarias, como a já citada, feita pelos de Massangano à Senhora da Muxima. Ali, em certa ocasião, “celebrou-se [um certo] dito com muito festejo, como gente que vinha de romaria que buscam e inventam cousas de gosto, para ter que rir” (1972, III: 111). Esta “muita gente” não dá uma indicação precisa de que tipo de pessoas são, qual o seu recorte social, a sua origem e a cultura de referência. Mas é-nos dado um quadro preciso no qual eram accionados vários modelos literários, narrativos, retóricos e culturais.

Outra das estória s começa escrevendo-se: “hum sucesso galante se contou [...]”. Não se refere quem ou entre quem se contou o sucesso. Na p. 90 do volume podemos ler: “contavam os antigos [...]”, sem ninguém especificar quem eram esses antigos. Conhecemos apenas o canal, o da oralidade, mas não propriamente o narrador ou o transmissor cultural. A mesma elisão se dá mais adiante. Trata-se do combate entre “o nosso Jaga Casagi” e “o poderoso de Muzumbo a Calunga” e a verdadeira fonte é o mujimbo, o boato: “andando algum tempo se soube [...]” (1972, III: 177). De novo mais adiante encontramos parafraseado um mujimbo: “do que dizem há notícia destas cousas na Ilha de São Tomé” (1972, III: 188). Mas, quem diz isto? Onde é que o diz? Quando e como?

No entanto, se as fontes explícitas são híbridas as implícitas, apesar da informação que nos falta, parecem-no mais ainda. Com menor ou maior consciência, as oralidades instáveis que suportavam as narrativas actuavam sobre a língua veicular com as suas cargas semânticas e simbólicas, procurando assegurar aos “seus” elementos as funções decisivas e positivas nessa rede. Podemos ver o jogo a desenrolar-se em pelo menos dois níveis complementares: o do uso das formas literárias para, ainda aí, marcar posições estratégicas; o da adaptação das técnicas e dos conteúdos narrativos às expectativas e conhecimentos dos ouvintes ou leitores — o que levava à procura de recursos de conexão, que fossem conhecidos e usados em vários contextos (por exemplo, o oral e o escrito). Vamos observar esses dois desenvolvimentos metonimicamente.