Francisco Soares: Cemitérios
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24-04-2007

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Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

(Augusto dos Anjos)

 

Os cemitérios são, de forma geral, considerados espaços fúnebres e perigosos dos quais apenas almas doentias se aproximam, ou ladrões de cadáveres, ou feiticeiros. No entanto, pessoas tidas como normais – sobretudo investigadores de História, Sociologia, Literatura, Arquitectura – têm muito a ganhar em visitas a cemitérios. A paz que ali reina, o silêncio que de forma geral impera nesses quarteirões rectilíneos, apoiam uma reflexão calma e concentrada. Os túmulos falam-nos então, se observamos os indícios neles inscritos, de vidas, afectos, costumes, crenças, condições materiais da existência nas várias épocas, etc.

Visto que a maioria das pessoas não se deslocaria ao cemitério para realizar investigações deste género, por aquele misterioso pudor que faz com que um materialista tenha medo da morte, reuni algumas fotografias do cemitério de Benguela. Fica assim dispensada a visita sem que se percam algumas das vantagens dela. Algumas chamadas de atenção:

Logo à entrada o nome: «Campo da Igualdade». A igualdade mítica alcançada finalmente sob o chão. Mas apenas sob o chão porque, para cima, as campas diferem tanto umas das outras quanto os edifícios em que vivemos. Há mausoléus (muito destruídos), casas, apartamentos, casulos pobres, ruas, covas feitas por vezes umas em cima das outras ou reciclando o material das outras.

Fiz o retrato de algumas delas em função de critérios que posso definir bem: primeiro, o estético, subdividido este nos aspectos literário, arquitectónico e escultórico; segundo, os indícios relativos às crenças e práticas consequentes em tais lugares; terceiro, os indícios sociológicos e históricos que nos deixam, subdivididos em índices civilizacionais, técnicos, de riqueza ou pobreza, de guerra ou de paz, de abandono ou cuidado.

O espectador interessado deve articular as datas inscritas nos túmulos e comparar com esses indícios e com o que sabe da história geral do país onde fica Benguela, particularmente dessa faixa litorânea e respectivo hinterland, que viveram os contactos e tensões agitados pelo colonialismo de maneira mais intensa e demorada. Fazendo-o notará como são rústicas e precárias as campas dos anos 80, período em que a guerra, a fome, as carências de todo o tipo mais se acentuaram no país. Notará também a marca da estatuária fúnebre portuguesa, sobretudo lisboeta, pois muitos túmulos do período colonial eram encomendados a oficinas de Lisboa. Também se pode observar como certas árvores, muito belas e de pequeno porte mas sombra densa e fresca, nascem junto aos túmulos. Eu próprio gostaria de repousar assim: os meus restos ascendendo da sombra para a seiva da árvores até darem flores e se tornarem, portanto, sementeira. Notará ainda o observador, em vários desses túmulos, uma vocação poética, transpondo-se frases intensamente líricas e dramáticas, desde os poemas de Silva Porto aos filhos que morreram jovens até à citação na campa de Alda Lara, a nossa maior poetisa ainda hoje. Mas também frases singelas e tocantes como as que por vezes se viam – e se tornaram a ver – em anúncios de jornais pelo aniversário da morte de um parente ou amigo. Essa foi sempre, nas mais variadas latitudes, uma das origens e fontes de desenvolvimento da poesia: a que vem acarinhar a morte, a que responde ao pressentimento físico do além com uma ternura de mãos frágeis, definidas e delicadas.

Muitos outros aspectos notará o olhar atento, observador e raciocinante. Gratificado fica o fotógrafo por isso.

 

Benguela, 06-04-2007 (sexta-feira da Paixão)

Francisco Soares