..COLÓQUIO INTERNACIONAL "A CRIAÇÃO". CONVENTO DOS DOMINICANOS. LISBOA. 2001


  • CRIAÇÕES E VOLTAS DAS GALINHAS
    Carlos Augusto Ribeiro*





I

Entre nós, diz-se com o mesmo sentido 'galinheiro' e 'criação'. Faz-se uso de 'criação' para designar a criação do mundo (Criação) ou a criação de arte. Estranha premonição: a reserva doméstica de criação vem a ser, no presente, equiparada à criação artística e ainda, por via desta e às arrecuas, à criação divina.

Alguém acostumado à arte contemporânea, à sua feição de des-criação, concordaria com o diagnóstico de Stanislaw Lem feito em Biblioteca do Século XXI: "vivemos numa época em que é difícil fazer a distinção entre a expansão das artes e a sua dissolução progressiva. Quero dizer que os cânones e as fronteiras que permitem distinguir uma obra de arte de um objecto vulgar estão a desaparecer, ao ponto de virem a acabar. (...( Se, num futuro afastado, arqueólogos fizessem pesquisas para descobrirem formas de estética características da nossa época - digamos no domínio das artes plásticas -, não saberiam nada, porque não estariam à altura de distinguir as gorduras e detritos vulgares das nossas "obras de arte"; entre os dois, muitas vezes não há nenhuma diferença objectiva. Para que uma lata de sopa de tomate Campbell seja uma obra de arte, só precisa de ser exposta num museu; mas se ela acaba um dia numa fábrica de transformação de esgotos, ninguém poderá contemplá-la com o contentamento estático do arqueólogo perante o vaso grego ou a deusa em mármore arrancados à terra." Contra a inflação de objectos que atinge também o mundo da arte a acção abnegada de Raduan Nassar assume o valor de uma ascese escandalosa. O sentido do seu gesto, conforme veremos, resumir-se-ia, em parte, em um «não querer ser mais um participante em simulacros de criação»?

II

Nós, criaturas de Deus, cuidamos da Criação; nós, criadores, jogamos aos deuses. Por alguns momentos da nossa existência é-nos concedido o tempo e o direito de fazer o jogo de sermos como Deus? Fazemos incidir sobre aquele pedaço de terra vedado as consequências das nossas decisões e da nossa omnipotência. Não nos retiramos da criação, trabalhamos para que esta nos alimente, para que não nos falte o lucro. Cuidamos, umas vezes, da criação - a do galinheiro - mas, outras vezes, não cuidamos tão bem da outra que herdámos, a que se estende para além dos limites da casa - a Terra - aquela em relação à qual ocupamos, viremos ocupar, mais tarde ou mais cedo, o lugar (e o destino) do frango.

Recordaram-me que a Salazar teria sido oferecida, um dia, uma galinha. Logo ele decidira fazer criação e rentabilizá-la. Consta que, assim que a produção de ovos ultrapassou as suas necessidades pessoais, ordenou a venda do excedente pela vizinhança.

Estamos no lugar, não de observados a partir do Céu, mas no de observadores, espectadores da terra a partir de um ponto determinado do céu.

De facto, dominamos, controlamos e esquadrinhamos um território mas há algo que nos vem provar estar fora de alcance dos nossos poderes e das nossas previsões. Os perigos são constantes: vêm do exterior, vêm do interior. São os ladrões, são os vírus, são as doenças que invadem os corpos dos animais. A Criação é mais poderosa do que qualquer uma que sai das nossas mãos, apesar de mesmo aquela que provém da mão humana nos ultrapassar - agindo-nos. Qualquer uma delas - das criações - serve para jogarmos o jogo de Deus e, talvez até, aprendermos a aceitar as regras e as consequências do mesmo. Di-lo o escritor quando fala das suas personagens. Tê-lo-á sentido com as suas vítimas o carrasco nazi? E os seus diversos acólitos? O campo de extermínio (Lager) - essa "gigantesca experiência biológica e social" (Primo Levi) - ilustra a banalização do galinheiro e do aviário por via da bestialização da condição humana. Num sai-se para a panela; no outro, pela chaminé.

A Factory de Andy Warhol, atelier, estúdio, escritório e sala de recepção - tendo sido o local de encontro do meio artístico e social nova-iorquino para onde uma multidão de personagens mais ou menos excêntricos se precipitava para, acotovelando-se à porta acalentando a esperança comum de serem, um dia, «descobertos», se transformarem em estrelas do firmamento mediático por meio de um papel num dos filmes que aí se rodava - assinala o momento de apropriação da arte moderna e a incorporação dos criadores à grande criação mediática: o galinheiro automatizado da fama.

Rubem Alves conta em Estórias de Bichos a história de uma águia que tentou ser galinha até ao dia em que chega um alpinista atento e a rapta para, na montanha, a lançar no ar. É assim que uma águia adormecida no corpo de uma galinha, incitada a ir além dos limites do galinheiro, acorda e se descobre a voar. Para o alpinista, o voo da águia é motivo de satisfação pois, ao contemplá-la, se imagina a voar naquele corpo. No galinheiro da fama o conto é o outro: não há alpinistas; apenas body-jumpers descartáveis.

"Deixa-te comer se queres, um dia, comer", "a cacarejar da mesma forma, acabarás por ganhar, ganhar...": é esse o êxtase à crédito do frango álacre ou da águia alapada no «Big Brother»?

O modelo do galinheiro, com ou sem vedações, não deixou de modernizar-se. O aviário planetarizou-se. Satelizou-se: em estação espacial com tripulantes de nacionalidades (galinheiros) diferentes - a qual concretizaria uma vontade de fazer conectar e cooperar os galinheiros entre si? Foi a viagem à Lua que veio permitir ver a terra como um galinheiro? Foi a queda da bomba atómica que veio dar a consciência da fragilidade humana - eventualmente, a do mundo como ecossistema. A saída para o espaço pode ter funcionado a nível do imaginário como uma compensação e uma esperança face à possibilidade de se actualizar o poder de destruição em massa. Os dois factos convergem em outro ponto: na tecnologia de informação a qual os mediatiza sem deixar, no entanto, implicar e reforçar uma sensação da pequenez crescente do mundo. O mundo nasce para uma sensibilidade global. Torna-se pequeno: nave ou galinheiro sitiado no terceiro calhau a contar do sol. A sensibilidade e a consciência ecológica - na qual se integra a nossa tecnologia e a nossa ciência - dão do galinheiro uma imagem mais complexa quanto ao seu funcionamento e aproximam-no, ao ser disseminado pelo globo, de um galinheiro configurado como o 'museu imaginário' (Malraux) ou, talvez, ainda escondido no futuro, sitiado no interior do nosso corpo (nanotecnologia).

III
Queda dos anjos antigos

A viagem à Lua não é apenas uma conquista da humanidade, a saída da prisão terrena, não é somente o espectáculo do poderio da vanguarda tecno-científica de uma nação a nível mundial... Ela é marcada por um outro acontecimento: a obsolescência dos anjos arcaicos. Ao tornarmo-nos anjos motorizados, aqueles que estavam no céu e tinham asas decidiram ou, simplesmente, aconteceu-lhes a queda. Conta-o Gabriel García Márquez, no seu Um Senhor Muito Velho Com Umas Asas Enormes. Aí, um anjo é comparado a uma galinha, a «uma enorme galinha decrépita entre as galinhas absortas» e vive cativo num galinheiro. Tem a vida, após a queda, de um «animal de circo» - é notícia e objecto de peregrinação, foco de tumultos e alvoroços. Não tem a vida adequada a uma criatura sobrenatural. No entanto, paciente e desdenhoso, o anjo não participa do seu próprio acontecimento. Vem o momento em que a sua reputação é aniquilada. Um segundo ocaso. Deixa de ser proveitoso para os seus proprietários. O galinheiro, com uma vedação de arame, é abandonado. O anjo deixado à sua sorte. «O anjo andava por ali, a arrastar-se de um lado para o outro, como um moribundo sem dono. Expulsavam-no à vassourada de uma alcova e um momento mais tarde davam com ele na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo que chegaram a pensar que ele se desdobrava, que se repetia a si próprio pela casa toda, e a exasperada Elisenda gritava fora de si que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos.» O anjo que fora fonte de rendimento não tarda a tornar-se em causa de ressentimento. Não fala, continua a não querer falar a língua dos homens. Passa indiferente por várias fases: a de ser a notícia e causa de lucro, a ser, depois, o empecilho, portanto, votado ao esquecimento. Foram-no abandonando, foi-se exaurindo na multidão a curiosidade por tão extraordinária galinha. A multidão foi sendo atraída para outras distracções mais humanas. As outras metamorfoses invisíveis do anjo não foram tidas em conta. Não eram com certeza tão espectaculares como o acontecimento da sua queda.

Há, para o final, a saída do purgatório: o anjo voa, para contentamento de Elisenda, deixando de ser «um empecilho na sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.». Para não serem empecilhos, os anjos têm de ficar no seu lugar, suspensos de qualquer lugar longe do mundo dos homens? O seu lugar não pertence ao nosso mundo a não ser senão sob a forma e a condição de um ponto imaginário, a perder de vista, no horizonte. Essa grande fartura - a queda do céu sobre a terra - não tarda a ser mãe da fome, de metafísica, de deuses... de tudo aquilo pelo qual podíamos negar ou iludir a nossa orfandade? Os anjos não servem para nos dar respostas prontas ou conselhos como os recebemos dos nossos amigos ou inimigos; não servem para estar encerrados em jaulas de celebridade e serem atracções de circo; não servem para brinquedo de criança... Servem para estar algures - e aqui só quando é preciso - em nosso redor, mas nem longe nem perto. De preferência longe: a lançar-nos aquele olhar protector - que nos abraça sem agarrar.

O galinheiro é, neste conto, um espaço de reserva de uma espécie extinta, em vias de extinção. Não é só o lugar onde impera o esterco e a produção de mais criação com fins lucrativos mas é o lugar onde aquilo que é transcendente, sobrenatural, está fora de lugar. Não é deste mundo. Demonstra como o extraordinário é, no mundo dos homens, sujeito a uma volúpia assassina. O problema é sempre o mesmo: o anjo não serve para alimento e não dá alimento. Não põe os ovos.

Então como pode ser o galinheiro o modelo de criação? Como pode passar a ser uma obra? Ou como pode ser a forma de abdicar da arte e da obra? Se o galinheiro é o modelo da criação então a conduta do artista não se distancia do comportamento e da utilidade do frango e da galinha? As obras equivalentes à carne e aos ovos? A arte ao anjo?

IV
Três episódios: memórias de galinha

Em três episódios se conta a história da não validade para a arte do modelo da grande criação (divina). Houve um tempo em que a criação divina foi sendo, sucessivamente, o modelo da criação artística até à sua identificação que anuncia o seu fim. A história da libertação da influência desse modelo (teológico), à medida das tentativas sucessivas de modelos alternativos, confunde-se com a sua degradação. A imagem da libertação - processo associado a um desejo e a um fascínio pela política, pelo quotidiano - pode bem ser identificada com a acção emblemática de «pôr as galinhas à solta». Este gesto partiria do pressuposto de que basta as portas do galinheiro serem abertas para que a liberdade seja restituída e, por consequência, se esbatam as distinções e as hierarquias. Depois desses actos de libertação o que resta? No final: o retorno ao galinheiro? Para além dos limites do galinheiro é o nada, o vazio? Se assim é há que cuidar do galinheiro e darmo-nos por felizes por estarmos do lado certo da vedação? Porque estamos todos entregues a nós mesmos, sós, resta-nos a gestão de um espaço congestionado e preservar, todos contra todos, o lugar que nos coube, o papel de dono do galinheiro e da criação? Estamos na mesma situação das crianças de O Deus das Moscas (William Golding)?

Vivemos uma realidade cercada, vedada, sem utopia. Sem além.

1º episódio

O pintor Hokusai realizou uma pintura com assistência (o público). Estendeu uma grande tela azul sobre o chão. Agarrou um galo - ou uma galinha - e mergulhou as suas patas dentro de um recipiente com pintura vermelha e, em seguida, fê-lo percorrer a tela.

Acabada a pintura, levantou a tela azul com as impressões vermelhas e disse: "Folhas de Outono sobre o rio."

O grupo Gutai, fundado em Osaka em 1954 por Jiro Yoshihara (um pintor abstracto reputado) poderia ser o herdeiro mítico de Hokusai ao convocar a natureza para fazer a obra (antecipando a Land Art). Yoshihara teve a intenção de criar uma arte nova, vital e radical em oposição a uma abstracção academizada ou a um realismo social dominante no Japão, em especial, em Tóquio. Quando, em 1956, os jornalistas da revista Life vieram ver o grupo, o grupo montou uma exposição de um dia na qual se incluía a obra de Yoshihara consistindo em três galinhas pintadas respectivamente de vermelho, azul e amarelo. Os editores recusaram publicar qualquer notícia a propósito porque consideraram ultrajante. Os artistas convidavam o espectador a ser um participante na arte e na natureza. As obras destes artistas japoneses, expressão de uma vontade de estabelecer uma relação directa com a terra, integram as condições naturais e os seus efeitos sobre os materiais.

Jackson Pollock, baptizado "Jack The Driper", é considerado por ter feito da tela uma arena - em torno e no interior da qual actua. O quadro deixa de ser uma questão de imagem para passar a ser a de acontecimento. O acto (o processo de criação) é valorizado sobre a produção de objectos. A valorização da dimensão performativa não tarda a coincidir, em outros artistas, com exploração da pessoa e da sua auto-imagem.

Pollock representa o centro de um remoinho de des-criação. Allan Kaprow- criador de happenings, um dos quais Chicken (1962) - afirma que o legado de Pollock responsabiliza a nova arte de saltar da pintura para o mundo, mergulhar na vida quotidiana, pois neles estão depositadas potencialidades artísticas ignoradas. Outros protagonistas influentes da cena artística após a Segunda Guerra são, para além de Pollock, Cage, Fontana, Shimamoto. Todos manifestavam um desejo de produzir rupturas, de perfurar a superfície pictórica, a tela, introduzindo o acaso, o caos, o inconsciente na actividade criativa. Não tarda este desejo de estar na pintura em transformar-se em desejo de estar para além dela. Aceitando a câmara (de filmar e de fotografar) como parte integrante das suas acções viscerais, outro artista Gutai, Shiraga, «que pinta com os pés» suspenso de uma corda sobre a tela estendida no chão, lutara com a lama (um círculo de lama) como os pintores-de-acção (na esteira de Pollock) lutavam com as suas composições: aí, chafurda, gesticula, esgravata, submerge-se, arrasta-se. O isolamento e a quietude do atelier é perturbado pelas câmaras, pelo tumulto do mundo e pelo refluxo da onda de choque. Escancarado ao mundo antes de ser trocado por outros lugares e materiais - pela imersão no real, pela incursão na natureza e pelo corpo do artista - o atelier torna-se com Kanayama o lugar de onde se transmite a encenação motorizada do episódio de Hokusai: as suas pinturas são criadas pela condução de um carro de brincar com um depósito de tinta, por controlo remoto, registando os seus percursos sobre a tela.

Recordo o projecto de uma acção de Manzoni, soltar vinte galinhas brancas no museu (Acrome, desta vez, ambiental) para culminar o processo de esvaziamento e libertação do receptáculo pictural em direcção ao espaço. Afirmava (1960): «nada há a dizer. Basta ser, basta viver». Mas o gesto de libertação surge afectado por um desejo de tirar dele proveito nem que para isso o artista se transforme em galinha e o esgravatar e o bicar rente ao solo surjam como actos artísticos e como anúncio da nova condição do artista. Ushering in Banality? Nem que, para isso, venha a ser convertido numa mera galinha empalhada, uma nova Odalisca (Rauschenberg). O seu acto é simbólico: o emblema negativo daquilo que foi há muito tempo o artista, a obra e a arte. O artista quer assumir-se ainda, apesar das aparências, com o estatuto de «galinha dos ovos de ouro». O gesto terrorista vive da sua teatralização. O mundo é o lugar da arte da mistificação.

2º episódio

Yves Klein, o que realizou o mediático «salto no vazio» (fotografia publicada no seu Jornal de Um Dia, 27 de Novembro de 1960) tornou-se, ao invés de um «pincel vivo», um maestro que compõe e orquestra os indivíduos que realizarão a pintura para ele. Trata-se de criar uma distância entre o artista e a tela durante a execução. Em 1960, numa performance apresentada na Galeria Internacional de Arte Contemporânea em Paris, Klein é o maestro de uma pequena orquestra que toca a sua «sinfonia monótona» - constituída num ciclo de 20 minutos de uma nota só seguida de outros 20 minutos de silêncio. Em cena ele é o coordenador dos movimentos dos corpos nus de três mulheres que se pintam de tinta azul IKB com esponjas e que vão imprimindo os seus corpos sobre as folhas de papel espalhadas no chão (passerelle) e, por intermédio de pedestais de diferentes alturas, na longa folha afixada à parede. Chamou à série: Antropometrias.

Numa exposição em Copenhaga (1960), Manzoni coze ovos e marca-os com a sua impressão digital convidando a audiência a comê-los. A exposição termina com o consumo dos produtos de galináceos. Manzoni incorpora os corpos do seu público na sua arte. Em 1961, na Galeria La Tartaruga em Roma apresenta a sua Base Mágica que consiste num simples pedestal sobre o qual são convidados, pelo artista, membros do público para serem transformados em obras de arte. Assina os seus corpos e distribui-lhes generosamente certificados de autenticidade.

Noutra altura, Manzoni, fez-se fotografar no interior de uma casa de banho, a sorrir, exibindo na mão direita uma pequena lata. Estrume artístico. Tal como as noventa latas, esta tinha o rótulo Merda de artista, 30g, bem preservada, fresca e conservada com a data de Maio de 1961. Eram para venda pelo seu peso em ouro. Assina o mundo. Transforma-o na sua escultura (Pedestal do Mundo) tal como Klein assina o céu azul (1948).

Rudolf Schwarzkogler, uma das figuras proeminentes do "Accionismo Vienense", realiza antes de morrer a derradeira série de Aktions encenadas expressamente para o fotógrafo. Em 6th Action (1966), Schwarzkogler com o corpo e o rosto enfaixados, excepto as pontas dos seus dedos, executa uma performance grotesca, cujos momentos estão registados em várias fotografias plástica e psicologicamente intensas. Ao seu lado, uma galinha morta, ainda não depenada, está depositada no chão com os pés presos com fios ou cabos os quais, por sua vez, conforme outra foto, estão ligados à cabeça do artista. Na segunda foto interpõe a sua cabeça branca, ligada por cabos, entre a mira da máquina do fotógrafo e uma folha quadrada pintada de negro que segura entre as mãos. Numa terceira foto: o seu corpo inclina-se para a galinha morta, aproxima-lhe a luz - cujo clarão dissolve e esconde parte da galinha - para inspeccionar, ao que parece, o seu interior. A última imagem, segura uma lâmpada acesa que ilumina, sem revelar, o seu rosto. oculto. Sob os véus, mal se distinguem as suas feições; uma oval negra resta para sugerir o lugar da boca.

Inventora de um leque diversificado de alter-egos, Linda Montano na exposição The Chicken Show (1969) apresenta umas galinhas no telhado de um departamento de arte e através de toda a cidade de Madison, Wisconsin. Depois desta exposição tornou-se em Chicken Woman (1970), superando, desse modo, a frustração pessoal de não ter conseguido ser uma artista minimalista. No ano seguinte realiza a sua primeira performance: Lying: Dead Chicken, Live Angel (1971). No seu Art in Everyday Life explica o nascimento de Chicken Woman e retrata o seu projecto de ligação entre a arte e a vida. 'Chicken Woman' assume a arte e a vida como um continuum: não distingue as suas actividades domésticas e sociais das suas actividades artísticas. A arte é para ela o lugar onde pratica a sua vida e onde refaz constantemente a sua identidade.

3º episódio

O checo Ladislav Novák efectuou no começo dos anos 70 uma série de acções no campo, sem audiência, sem inscrição institucional, baseadas no desenho e no apagamento de formas geométricas ou de formas orgânicas. Numa dessas peças, Novác desenhou um grande círculo com comida para galinhas. A série de fotografias mostram o artista e a acção em diferentes momentos: a desenhar o círculo, as galinhas a ocupá-lo e a comê-lo até que nada reste do círculo.

Hans Haacke realiza Ten Turtles Set Free (20/07/1970) num bosque próximo de St. Paul de Vence. Trata-se de um acto de libertação simbólica de dez tartarugas (espécie em extinção) adquiridas numa loja de animais de estimação. Esta acção veio pôr em causa o direito de interferência humana na liberdade dos animais ao aprisioná-los como bichos de companhia. O aumento de diversidade dos animais de estimação é o reverso da situação aviltante e de total isolamento do mundo a que estão sujeitos os outros animais, outrora domésticos, em explorações industriais da sua carne.

Raduan Nassar fez outra escolha. Comentou assim em Lavoura Arcaica a sua decisão: "Hoje, finalmente, estou perto de realizar o que mais queria ser quando criança: criador! Nada a ver, está claro, com a auto-suficiência exclusiva dos artistas (Deus os tenha!), que estou falando simplesmente em criador de bichos. É o que venho fazendo no sítio Capaúva, a 250 km de S. Paulo, onde tenho passado mais tempo que na capital. Aliás, se já suspeitei uma vez, continuo agora mais desconfiado ainda que não há criação artística que se compare a uma criação de galinhas." É aí que se pode continuar a ser criador e/ou a ser um verdadeiro criador? O que entretanto se passou para artistas contemporâneos proporem galinheiros como obras?

Carsten Holler and Rosemarie - tendo colaborado desde 1996 até à Expo de Hanover (2000) numa série de dez projectos - construíram A Casa para Porcos e Gente, já apresentada na Documenta X (1997) consistindo em parte num curral. As pessoas são convidadas a entrar numa construção de betão para admirar como um enorme "quadro vivo" o movimento e o repouso de uma família de porcos cor-de-rosa com manchas escuras por detrás de um vidro enorme. Umas vezes, a ficção de uma natureza-morta, ou de uma fotografia, desintegra-se com o movimento de um dos suínos. O painel envidraçado reduzindo os porcos a um fenómeno visual - todos os sentidos são bloqueados, eles não podem ser cheirados, tocados ou ouvidos - separa os humanos dos animais. Tal como uma câmara de interrogatório de suspeitos, o vidro só é transparente do lado de dentro da construção. Da perspectiva do porco, o vidro é um espelho. Os espectadores não são vistos pelos porcos. O curral é acessível do lado de fora, por isso aqueles espectadores que quiserem ver da perspectiva do porco, saem para o exterior e experimentam outros sentidos. Sendo vistos em coexistência com os animais apesar de separados por uma cerca, não podem ver a audiência que, no interior, está invisível.

Addina (1997), apresentado em Palermo, tomando o título da palavra siciliana para 'galinha', inverte o arranjo visual. Neste projecto, é o animal que é o espectador. Por detrás de paredes de poliester decoradas de ovos (moldes), de uma sala em forma de um ovo enorme, quarenta e oito galinhas produzem ovos. Elas podem subir rampas que dão acesso a uma plataforma estreita de madeira; a partir daí podem ver a sala oval (onde estão os visitantes) através de janelas em forma de ovo, as quais funcionavam, do outro lado, dos espectadores, com espelhos. Os espectadores não têm uma vista da capoeira. Outros sentidos, o som e o odor são, em compensação, exacerbados.

A criação artística veio a colocar-nos - àqueles que são artistas - no lugar de Deus. No entanto, ao tentarmos evadir-nos do lugar de criatura para nos fazermos criadores ou sermos como o Criador, chegamos ao ponto em que a democratização da criatividade nos recambia para a posição do frango entre frangos. O artista já não é um ser excepcional com o qual não nos poderíamos comparar, ele é como os outros, como nós. Levaria uma vida de «empregado de café». Disse-o Duchamp. O artista renascentista considerava-se ainda um criador - possuindo liberdade de acção, consciência da sua independência e liberdade na criação -, pois não se contentava em servir de espelho à criação divina nem lhe bastava o rever-se exclusivamente como criatura 'privilegiada' aos olhos do Criador. O artista moderno é aquele que cria não tanto por intermédio de uma obra mas contestando e fugindo à imitação e à instituição-arte. Ele valoriza o acto, o processo. Os actos de libertação não deixam de ser atribuídos a um autor. Assina-os. Cria através da destruição: des-cria. É um criador paradoxal: cria mediante a abdicação aparente da (criação da) obra. A fuga em direcção ao natural, ao espontâneo, ao(s) automatismo(s) - como tentativa de escapar à capoeira - retorna desfigurada, caricaturada em fábula risível.

O galinheiro como um quadro vivo é o reverso dessa utopia aniquilada? O que parece certo é que através dele retornam, sob a forma de espectáculo, as antigas divisões humano/animal, natural/artificial que desenham a linha de demarcação entre os seres da Terra. Em torno dessa linha, a guerra não terminou. No entanto, de uma forma ou de outra, o modelo da capoeira, do curral, da piolheira (de todo o tipo de explorações zoológicas) está de boa saúde e para durar. A reversibilidade dos papéis está instituída. Um galinheiro vale tanto como uma criação artística. Criadores e criaturas trocam de lugares. Talvez o artista contemporâneo não possa deixar de fazer e de tornar a fazer o que Adão começara. Max Jacob, em "Um Ovo", diz sobre a tarefa do mestre (dominus): "O azar fez com que se partisse um ovo no Paraíso terrestre. Adão, a partir daí, tentava quebrar os calhaus parecidos com ovos."

* In Cuidar da Criação – Galinhas, galos, frangos e pintos na tradição popular portuguesa de Ana Paula Guimarães, prefácio de José Augusto Mourão (ilustrações: objectos de arte popular e artistas contemporâneos; antologia de contos populares). Lisboa, Apenas Livros, 2002