SIMONE MARQUES
Soup'n the sky (versão normal)


“Eu estava sentado e zap! saltou minha pica; sem sangue, dor, nada.
Um corte limpo, de faca laser ou motosserra silenciosa. Saltou minha pica e a vi ricocheteando de cabeça
por todo o salão. Se deteve num canto distante. O olhinho olhando-me fixo. Senti perigar meus orifícios virgens.”
William Burroughs


A sopa ferve. Ele entra na cozinha, levanta a tampa da panela, verifica o conteúdo. Até chegar ali, tinha fome. Como dor de barriga, a fome passou e, agora, é dominado, é possesso por outra necessidade. Ele ouve uma ordem que vem de dentro de sua cabeça, ele ouve sua própria voz a dizer que jogue a panela pela janela.

Procópio estava até então tranqüilo. Passara dois dias sem sair do quarto, comera somente um pãozinho com queijo que sua mãe deixara sob a porta; ela quem pedira à empregada que fizesse a tal sopa. Doente, a mãe teve apenas tempo de avisar por um bilhete que iria ao médico. Não era exatamente perigoso deixá-lo sozinho em casa, afinal, tinha 21 anos, uma banda de rock, carteira de motorista e travalhava na empresa de comércio exterior do titio; seus remédios estavam à mão e era só pegar um prato e se servir da sopinha.

Já sem controle da fantasia, Procópio procura uma bengala onde atirar o peso da loucura. A culpa, pensa, é da panela de sopa: ela despertou o demônio que vive dentro dele. A panela, esse inocente aparelho feito para preparar em seu ventre o alimento, ela o instigou e agora Procópio está aflito, uma tormenta de pensamentos ricocheteiam dentro da cabeça do infeliz, ele que pergunta e responde para si mesmo, que inventa palavras especiais porque as que existem não dão conta dos seus significados extravagantes; Procópio, duas pessoas, todas as coisas interiores e exteriores num só corpo. Blup blup blup blup, a sopa ferve.

Que coisa irritante, panela desgraçada, essa coisa existe para infernizar, ela e aquele jardineiro, como é odioso esse velho cagado, o imbecil fica me vigiando de olhinho disfarçado, pensa que eu não noto quando me abre aquele sorriso cínico, o merda, e diz ainda “e aí, patrão!”, como se eu tivesse obrigação de gostar dele e de cumprimentar. Ser humano asqueroso, eu queria poder matar, estraçalhar esse bosta e depois sumir com o corpo desse idiota da minha frente.

Pega a panela com as luvas de cozinha e uma euforia como se tivesse sob efeito de alguma bebida inebriante já borbulha, a adrenalina faz o corção disparar, como se estivesse vendo pela primeira vez a mulher amada (se houvesse); ele se aproxima da janela e atira pela fenda a panela de sopa fervente. Na sua fantasia, o jardineiro pode estar lá embaixo, exatamente na mira. Pobre, feio, fedorento como uma meia suja, sorri Procópio. Aguça o ouvido e ouve: plein!

A panela cai no pátio da frente do edifício. Ao contrário do que se poderia esperar, Procópio ficou subitamente irritado, furioso mesmo. Agora está sem sopa, com fome e se acha um grande abobado, ridículo por ter obedecido ao demônio que vive dentro dele. A culpa desta panela, o demônio lhe diz ao ouvido, num sarcástico sussurro; ela é preta, de ferro, forte e negra como o jardineiro.

Lá no pátio, quatro andares abaixo da janela de onde a panela voou, a sopa jaz esparramada sobre o mármore da entrada do prédio: batatinhas, macarrão miúdo e alguns pedacinhos de carne enfeitam a enorme poça fumegante.

E agora, ele vai comer o quê?, grita Procópio dobrado sobre a janela, olhando a panela estatelada lá embaixo, como esta tivesse vida e ainda pudesse ouvir. Quem ouve é ele, e ouve sabe-se lá o quê que faz com que comece a bater a cabeça pelas paredes da cozinha.

Depois de bater-se e brigar consigo e com o demônio por mais de hora, ora se repreendendo, ora insultando, Procópio resolve ir ao McDonald’s. É só pegar o carro e ir até lá, coisa rápida. Ele pega as chaves, pensa Procópio, quando pega as chaves do carro. E assim, mais satisfeito, desceu pelo elevador até o estacionamento, e já estava dentro do carro quando deu-se conta de que era impossível ir ao McDonald’s, era impossível sair de carro, a vida era impossível seguir seu curso por causa do algoz. Que estúpido, esquecera do jardineiro! Ele deve ter visto que joguei a panela, deve ter até ligado para a polícia, claro.

Obcecado, Procópio então julga que precisa se livrar do jardineiro, pois ele o perseguirá até o McDonald’s por causa da panela de sopa fervendo que caiu sobre sua cabeça. Deve ter feito um belo estrago na pele daquele fedorendo, pensa, sorri Procópio, num tique que faz a pele em volta da boca apenas tremer. Se ele sair a toda velocidade, porém, o energúmeno ficará para trás, praguejando, o que vai ser engraçado.

Abre a porta do estacionamento, que sobe lenta. Que praga de lesma de porta desgraçada! Engata a primeira e parte para cima da porta, que ainda não abriu à altura suficiente. Ele vai conseguir passar, pensa.

Procópio não escutou o barulho feito com o choque do carro contra a porta da garagem, pois estava muito ocupado xingando o demônio. Atrás de si ficou a porta, contundida, no chão. Se o jardineiro estivesse por perto, se houvesse jardineiro, com certeza teria sido atropelado. O que não traria mais paz a Procópio, que resolveu pegar outro caminho para chegar até a lanchonete. Para despistar a polícia, ele disse.

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