RINALDO DE FERNANDES - QUEM SE PROPÕE?

O brutal assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André, mais uma vez “mobiliza” o governo federal para enfrentar o problema da violência. É bom não esquecer um outro assassinato que, em meados de 2000, também “mobilizou” o governo. De lá para cá, mudou alguma coisa?

Aqueles que defendem a pena de morte tiveram em 2000, com o seqüestro no Rio de Janeiro que resultou na morte da professora Geísa e na asfixia do assaltante pelos policiais, um bom exemplo de que no Brasil ela já é um fato. Ficamos todos abalados com o drama vivido pela professora e pelos outros passageiros encarcerados no ônibus, sob a mira de um indivíduo tomado sabe-se lá por quais instintos, além daquele de matar ou morrer. Mas não há dúvida de que a polícia atuou de forma incompetente, sendo que o mais preocupante é que ela, em casos assim, faz as coisas pior do que os marginais.

Um raciocínio elementar sobre o que se passava na mente do seqüestrador - alguém, pelo que se viu, muito ofendido e que sofreu brutal violência quando criança, ao escapar por milagre do massacre da Candelária - deve indicar que, na situação em que ele se encontrava, cercado por um pelotão de elite da Polícia Militar e por alguns populares que lhe pediam a cabeça, só podia reagir ameaçando, mostrando alguma firmeza. Por outro lado, como está dito que a firmeza da polícia diante de qualquer situação, mesmo estando em jogo a vida de pessoas inocentes, tem que ser superior, e como fica claro, por suas próprias ações cotidianas, que a polícia é naturalmente violenta com os pobres, é fácil um policial ser assaltado pela idéia de que um bandido perigoso, antes de tudo, e de qualquer negociação mais demorada, tem que ser morto.

É evidente que estou tratando daquilo que alguns chamam de “violência legitimada”, ou seja, a violência do Estado que a maior parte da população, em qualquer país do mundo, aceita e acha natural. Essa violência existe desde que existe Estado. No entanto, no caso brasileiro, ela perdeu, por assim dizer, a “verossimilhança”. Ela poderia pelo menos persuadir (a inspiração é mesmo Aristóteles) a partir de um enredo mais plausível. Um enredo cujo argumento seria da seguinte ordem - o Estado existe para administrar a sociedade, os conflitos no interior dela; quando a coisa desanda, é preciso pôr ordem na casa e “até mesmo” eliminar aquele ou aqueles que não se emendam. Parece ser assim mesmo, pondo aspas onde é mais melindroso e contraditório para quem se lança com o objetivo de estar com e a serviço de todos, que o Estado deve manter, para melhor persuadir, a sua ideologia da “neutralidade”. O Estado é a história mais bem contada da História.

No atual estágio da sociedade brasileira, a neutralidade do Estado está rompida. O Estado é agora abertamente dos ricos. E, sendo o Estado brasileiro pouco persuasivo na sua neutralidade, criou-se uma crise. A violência que aí está é o sintoma mais visível dessa crise. Nunca, para conter a violência dos marginais, houve tanta violência policial – mesmo que os discursos políticos (da direita à esquerda) no momento bradem contra a falta de segurança e mesmo que tenhamos mais investimentos no setor (afinal, estamos num ano eleitoral) depois da morte do prefeito. Ao explorar a violência, ao tornar algo ordinário (é muito provável que numa cidade como São Paulo, com 10 milhões de habitantes, e com o cinturão de pobreza que tem, ocorram alguns seqüestros e assaltos diariamente) em extraordinário, a mídia, sobretudo a TV, é uma forte aliada da própria violência.

Sendo assim, aqueles que defendem a pena de morte não deveriam estar tão abatidos, alguns espumando ódio (no presente contexto, não deixa de ser curioso – para não dizer oportunista – a defesa que faz o deputado José Jenuíno, do PT, da prisão perpétua para alguns crimes). Afinal, a polícia está aí é para matar mesmo os marginais perigosos. A coisa é dita a todo momento e com todas as letras: bandido é para mofar na cadeia ou para morrer de bala boa. Bala boa, está claro, é a da polícia.

Nos vários depoimentos de especialistas que ouvi em 2000, logo após o desfecho do seqüestro da professora, nenhum chegou sequer a insinuar a hipótese de o marginal sair vivo do episódio. Todos concordaram que a polícia teve ângulos favoráveis, em determinados momentos da ação, para “abater” o assaltante. É, atingi-lo como quem abate um búfalo rebelde. Atingi-lo com a bala boa, a que corrige o crime. Corrige cometendo outra violência, nivelando por baixo. E pior: alimentando a própria cadeia da violência. Já se tornou natural um tipo de discurso que diz, em casos como o do Jardim Botânico, que a polícia foi incompetente, não porque não soube negociar para defender alguém ameaçado, mas porque não conseguiu matar o marginal. Naturalizou-se a idéia de que o bandido tem mesmo é que morrer. Eis a pena de morte à brasileira.

Uma última coisa: sou a favor da vida. A “bala perversa” do bandido, naqueles dias de 2000, tirou uma vida preciosa - a da jovem professora Geísa Firmo Gonçalves. A “bala boa” da polícia, uma vez mais, também tirou uma vida. Se é este o pacto que vigora em nossa sociedade, o que estabelece que a “bala boa” corrige a “bala perversa”, então por que houve aquele barulho todo? Por que a hipocrisia de algumas autoridades em, aproveitando a comoção de muitos pela morte da professora, chamar a polícia de incompetente?

A história agora se repete. Com a morte de Celso Daniel, as pessoas se comoveram e a polícia foi de novo “incompetente”. A alternativa (à direita e à esquerda) é aperfeiçoar a nossa “pena de morte”. A alternativa é aparelhar ainda mais a nossa polícia – sem enfrentar com seriedade o problema da má distribuição de renda, do desemprego.

O Brasil – adaptando o verso de Cecília – só reinventado...

Quem se propõe?

Rinaldo de Fernandes - Escritor. Professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor dos livros de contos O caçador (1997) e O perfume de Roberta (inédito). Como pesquisador, fez os textos introdutórios e as notas biobibliográficas de Os cem melhores poetas brasileiros do século, antologia organizada por José Nêumanne Pinto e lançada em 2001 pela Geração Editorial (SP).