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MARIZA MAGALHÃES

 

 

 

 

"Meu próprio engano surgiu (...) do meu temperamento por demais leviano (...) e demasiado impulsivo. Mas, (...) é raro que eu durma profundamente à noite. Há um rosto que me assombra, por mais que me vire na cama."

Edgar Allan Pöe

A guardiã (ou Águeda)
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Ali estava o pai. Imóvel, pétreo e translúcido, mãos cruzadas sobre o peito, uma expressão de tormento retratada irrevogavelmente. Aurélio ao lado do esquife, pensativo e ausente, nem percebe a automaticidade impressa no gesto sem significado dos apertos de mão e dos murmúrios de condolências. Apesar da estatura e da compleição impressionantes, é agora um homem vencido, pequeno.

Vizinhos e amigos do pai observam-no, curiosos. Raras vezes saíra à rua, era pouco conhecido, assim como mal conhecera a vizinhança, ali ao lado, no decorrer de seus trinta anos. Belo, culto, agora rico, mas disposto a viver no isolamento, mantinha-se alheio ao bulicio humano, mergulhado na sua ilha de silêncio, abandonado a pensamentos sombrios. Temia a morte como ninguém. Convivera com ela, a Dama das Sombras, como a designava, desde o nascimento: a mãe não resistira ao parto que o daria à luz. Ao morrer deixara, ele e o irmão doente, aos cuidados de Lila, uma tia solteira. O pai ocultara-se até a morte, sob um reforçado verniz de dor e de mutismo.

Durante anos, Aurélio, pequeno ainda, convivera com os gemidos tétricos e os gritos lastimosos e guturais do irmão, varando o assoalho do sótão e penetrando em seus ouvidos dilacerados de pavor. Temia-o e, nas suas fantasias infantis, imaginava o outro como um ser monstruoso, repelente e agressivo. Na sua memória ficou gravado, como uma marca de fogo, a primeira ocasião em que o vira de perto.

Tia Lila saíra para fazer compras. Cauteloso, subira as escadas de madeira rangentes e gastas até chegar onde ficava o doente. Era um quarto de criança todo revestido com papel de parede, já descorado, repleto de intactos bichinhos de pelúcia, de bolas nunca usadas, livros de estória jamais abertos. Tubiano mantinha uma atenção aparente voltada, por completo, para o vai-e-vem da cortina puída ao sabor do vento. Desfazia-se o pavor cedendo lugar a uma meiga piedade, Aurélio comovia-se com aquele amontoado disforme de vida.

Habituou-se a subir todos os dias logo ao retornar da escola, ali permanecendo a contar estórias e mostrar gravuras ao doente. Enternecia-se ao mais leve brilho de compreensão daqueles olhos inexpressivos e entusiasmava-se no seu recontar de estórias.

Seis anos passados desses momentos de redentora magia, subia a escada aos pulos, na ânsia de mostrar para Tubiano o balão multicolorido preparado por ele para dois, quando foi impedido de entrar. Com a mesma voz paciente e metálica, o médico, chamado às pressas para atender o doente, comunicou sua morte.

Durante o velório, Aurélio não conseguia despregar os olhos daquele caixãozinho leve e tão pequeno, ninguém diria conter o corpo de um homem-menino de mais de vinte anos. Era adolescente quando o irmão libertara-se dos sofrimentos por intermédio de quem ele, Aurélio, considerava sua inimiga: A Dama das Sombras.

A partir de então, seu pai isolou-se por completo no quarto, até a morte, em absoluto silêncio, exatamente como vivera, sem emitir um som, como se temesse atrapalhar o mundo. A faxineira o encontrara sentado frente à escrivaninha, a caneta ainda suspensa dos dedos rígidos pousados e inertes, como borboletas de cera sobre um papel imaculadamente branco.

Passado o enterro do pai, quedara-se horas a fio pensando nas providências a serem tomadas, não podia ficar morando sozinho naquela casa imensa povoada de dor. Ainda não sabia qual a atitude mais correta, a solução melhor. Mas, de imediato, decidiu por lacrar todas as portas de acesso aos quartos dos mortos, uma forma de isolar a Inimiga. Gostaria de humilhar a morte, enraivecê-la, torná-la impotente ao menos uma vez. Urgia, contudo resolver algumas dificuldades, para os outros corriqueiras, tais como pagamento de taxas de serviço como luz, água, telefone, enfim. Optou por uma dama de companhia, sim, era isso. Uma mulher escolhida criteriosamente, capaz de incumbir-se sozinha de todos os encargos e, ainda, ludibriar o vazio daquela casa e zelar por ele.

Colocou o anúncio num jornal e ficou aguardando, certo de não encontrar maiores percalços. Todavia a espera prolongou-se durante dois ou três meses, ocupando-o só da seleção até que o desalento ficou visível no rosto exangüe de fantasma vivo. A primeira era excessivamente jovem, a segunda muito velha, presa fácil da adversária oportunista e, assim, sucederam-se mulheres de toda a espécie.

Num entardecer qualquer descansava na sacada, meio desanimado, quando ouviu a campainha. O relógio de pêndulo do corredor assinalava, em perfeita sincronia com os sinos da catedral, a hora do Ângelus. Aurélio desceu, rápido, impelido pela curiosidade. Ninguém o visitava. Ao abrir a porta um ligeiro tremor percorreu a ambos. Instintivamente perceberam a conclusão de uma busca empreendida por toda a existência de ambos. Não foi necessário conversarem muito para ela começar já no dia seguinte. Ele impôs uma única condição: aceito o emprego, Águeda mudaria-se para a casa. Prontamente ela aceitou, não tinha família nem amigos.

Em pouco, ele respirava aliviado e abandonava-se ao bem-estar de quem não está mais só. Desde a roupa pensada por ele à comida desejada para o almoço, ela providenciava antes mesmo de ele formular a idéia. As portas dos quartos dos mortos foram abertas com naturalidade, sem medos ou receios, a vassoura e o sol varrendo resquícios de ausências. Aurélio já não pensava na morte daquela forma obsessiva, ao contrário, admitia o absurdo de seus medos e o exagero de suas fantasias, pouco a pouco esquecendo-a. A presença de Águeda confortava-o, e o tempo encarregou-se de adormecer seus receios.

Por um breve período, ainda cismou com qualquer coisa relativa à governanta, detalhes apenas. Nunca recebia telefonemas, cartas, visitas, nada. Seus pertences resumiam-se aos que trouxera acomodados numa antiga e surrada mala de couro de idade e procedência indefinidas. Às vezes, ficava imaginando se aquela mulher tinha passado: não trazia consigo sequer uma fotografia. Contudo, o passar dos dias acomodou suas dúvidas e inquietações.

Sucederam-se verões e primaveras, outonos e invernos sempre num compasso marcado por uma plácida serenidade. À sombra dos plátanos, Aurélio absorvia cada lufada de vento e fremia as narinas a cada perfume revelado. Da casa, por detrás das cortinas brancas de renda, Águeda limitava-se a observá-lo. Os primeiros e implacáveis sinais de decrepitude fizeram-se notar nos cabelos de Aurélio. Antes o charme da prata nas têmporas, agora o branco das cordilheiras. Os olhos haviam adquirido a opacidade da visão do limbo e avançavam sobre seu rosto naquele início impreciso de velhice. E, como efeitos colaterais, voltavam os receios de Aurélio, seus medos e desconfianças.

- A partir de hoje, mantenha fechadas as portas dos mortos. - Não era mais o pedido gentil, mas a ordem ditada pelo medo.

- Estão fechadas há pelo menos dois meses. Abro-as apenas nos dias de faxina. - O tom era sereno. A repetição tornou-se um monocórdio acrimonioso.

- Dei ordem de manter as portas fechadas. Obedeça apenas, como tem feito nas últimas três décadas. - A voz encerrava ira e medo, revolta e súplica.

Aurélio passara a ouvir sons nos quartos vizinhos. Talvez fossem os gatos da vizinhança. Não raro, levantava-se vacilante e parava no corredor escuro, a lanterna inútil na mão trêmula garimpando o chão sem brilho do quarto abandonado, um olho posto na luz amarelada a escoar-se por baixo da porta de Águeda. Hesitava entre o dirigir-se ou não até lá, acabando invariavelmente por desistir. Fechava as portas com furor, entretanto sempre voltavam a abrir-se como uma horrenda e silenciosa cicatriz a provocá-lo. Passou a fazer as refeições no dormitório, como aquartelado a defender-se de fantasmas invisíveis e silentes, dos quais apenas adivinhava a presença.

Durante as noites povoadas de pesadelos, acordava lavado em suor, o rosto angustiado de Tubiano vagando na lembrança, como a querer dizer algo, a imagem sobrepondo-se à da governanta. Outras vezes, quando julgava-se desperto, via o pai recortado contra a porta do quarto, fisionomia aflita, ombros caídos, como impotente. Por fim era tia Lila a chamá-lo, arrancando-lhe gritos da garganta seca a implorar, voz rouca, pela governanta, dee modo que esta passou a dormir no quarto junto a ele, encolhida na poltrona e sempre a postos.

Invariavelmente tranqüila, acudia-o a mão suave, presa de uma certa umidade fria que o acalmava. Águeda esperava o efeito do remédio para dormir e voltava a enrodilhar-se na cadeira. Logo desenvolveu uma extrema dependência da mulher, bastava vê-la para cessar seus resmungos ou para relaxar do seu permanente estado de agitação. Águeda, em contrapartida, redobrava seus cuidados e dedicação, parecendo cada vez mais forte, os olhos encobrindo-se de sombras, sem jamais emitir um queixume.

Num fim-de-semana, o primeiro em muitos anos, Aurélio, sentindo-se particularmente bem disposto, dispensou Águeda, ignorando seus protestos. A mulher comunicou ao médico e, contrariada, saiu hesitante, metida em suas austeras roupas negras. Parou um pouco no portão de ferro e finalmente afastou-se a contragosto.

Na casa, Aurélio, melhor do que nunca, festejava a solidão da liberdade reconquistada, despido de qualquer medo. Bebeu champanhe, mordeu com vontade a ponta de um charuto para depois degustá-lo com volúpia. Abriu a janela e respirou, sôfrego, o ar do pôr-de-sol. Era isto, não podia sentir-se vigiado. Por alguma razão não-captada, seu ódio pela morte recrudescera. Não fazia sentido temer a Dama. Estava velho mesmo, ninguém vivera tanto em sua família. Conseguira ludibriá-la, não estava bem vivo? Seu pai não alcançara a sua idade, tia Lila mal beirava os cinqüenta quando morrera. Isso merecia uma comemoração.

Com passos ágeis, quase correu até a adega para apanhar uma garrafa do seu melhor vinho. A ocasião merecia o mais antigo, o mais raro para a louvação da vida, a derrota da Dama das Sombras. Estava frenético, eufórico. Bebera metade da garrafa, sentia-se leve e feliz, quando a porta de um dos quartos começou a bater. Agastado, subiu cambaleante os primeiros lances da escada onde parou, hirto. Tubiano estava sentado no último degrau exibindo a mesma expressão vista em seus sonhos, o desalento e a tristeza misturados a um sinal indecifrável qualquer pairando na face agonizada. A garrafa escapou-lhe das mãos, os pés dançaram, perdidos, antes de, enredando-se um no outro, lançarem-no de encontro à parede. Enquanto caia, percebeu terem terminado ali seus dias de medo. A última imagem gravada em sua retina, não foi a de Tubiano, mas a da governanta, atrás do irmão, no alto da escada. A face de cera não tinha rugas, o cabelo não exibia um único fio branco.

No preciso instante antecedente à sua morte compreendeu, afinal, e esboçou um sorriso amargo: sob as vestes negras de sempre, Águeda não tinha corpo, apenas um vazio escuro povoado de vermes.