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MÁRIO MELILLO
O Profeta
Primeiro conto do livro “Íris Infinita”
Autor Mário Melillo
Editora Garamond.
Tudo começou porque estávamos na pendura. Pendura na padaria, na farmácia e no armazém. Sendo tudo dívidas de primeira necessidade, ninguém reclamaria, foi o que pensamos. Em pouco, nos acostumamos: pagávamos a farmácia, postergávamos a padaria. Se o pão escasseava, pagávamos o padeiro, tomávamos raízes, nos benzíamos, Deus nos livrasse que doença não passasse perto naqueles tempos. No começo era triste, a mulher chorava. Eu vivia de cabeça baixa e não queria enfrentar os meus credores.

O farmacêutico, homem de posses, foi o primeiro a enviar cobranças. Eu atendia, paciente. Queixava-me do bico-de-papagaio, o cobrador olhava com olhos esbugalhados, espremia nas axilas sua ordinária pasta de papelão. Parecia acreditar na minha queixa, e acho que até se apiedava. Mas o tempo foi passando e a intimidade de meus apuros, sendo conhecida de todos, acabou por empurrar-me ao descrédito. Assim já não convencia mais ninguém. Então, se apareciam no portão da frente, eu logo pulava o muro dos fundos. O açougueiro não mandou cobradores, mas um moleque que veio avisar que não ia levar mais nem uma muxibinha, “que coma ora-pro-nóbis” (era o que queria dizer, mas o moleque só disse, ‘pronobis’). Não tive dúvidas, devolvi pelo mesmo moleque, “virei vegetariano”, disse tentando convencer a mim mesmo. Perdi a vergonha? Pudera, uma hora a casa cai. Devi então a muito mais gente: ao barbeiro, ao carpinteiro, ao agiota não, que ele de bobo só tem a cara. Devi então até na zona boêmia. Dona Carlinda, a gerente do Lupanar, cobrou-me após a missa, um vexame, bem na frente de todo mundo, mas nem por isso eu corei. Depois soube pelo sargento que as meninas era que estavam com saudades minhas.

Daí, após esse revolto mar de dívidas, a gente acabou se acostumando com o galeio do barco. Devíamos também ao botequim, duas pingas, um torresmo, uma porção de pastel de angu. Devíamos, mais tarde, à escola das crianças, à costureira, ao sapateiro, ao jardineiro e à empregada que já era quase a dona de casa de tantos salários em atraso. Mas comovida, Creuza olhava pro chão e dizia: “Pobrema não, seu Aldo, posso ser a última a receber”. É por isso que é pobre. Devíamos à sorveteria, que o calor era de matar. Houve cobradores que, sabendo da situação, vinham em bloco para as cobranças, o que de nada valia. Então, o turco do armarinho, em meio a uma crise nervosa, bradou:

Sharmuta, vou citá-lo em juízo!

Que chique, pensei comigo, citar-me em juízo. É verdade que não saberia dizer com qual roupa comparecer às barras do tribunal, mas já imaginava as desculpas para quando o Meritíssimo me perguntasse alguma coisa, desempregado, aluguéis, família para tratar. E o que mais eu alegaria?

Apareceu então a minha sogra. Era só o que faltava! Nariz para a lua, figa pendurada no pescoço, dinheiro no sutiã, entrou dizendo que me mirasse no espelho. Que eu já tinha quase quarenta anos, mulher e filhos para cuidar e não ia, não vingava, não rompia na vida. Por fim, disse que seguisse o exemplo de meu irmão, um bancário respeitável, já com os filhos formados, com casa própria, carro novo e limpo, aprumado na vida, já podia dar-se por satisfeito, já podia até morrer. Língua de trapo. No outro dia, estressado com as contas do banco, meu exemplo morreu ali mesmo, no caixa, babando em cima de um monte de duplicatas.

Nem a elegância do terno que herdei de meu irmão serviu para diminuir a ânsia de meus cobradores, com a ressalva de que fiquei muito bem apresentado diante do Meritíssimo. Foi uma lengalenga. O turco queria receber, o Meritíssimo olhou-me de alto a baixo, coçou as suíças e perguntou sobre minhas posses. Contei da nulidade. Perguntou então pelo terno, tão elegante.

Contei do defunto. Quis saber como foi o defunto, se pelado, se enfraldado, como? Contei da camisa do América que ele tanto queria eternizar e com ela estava enterrado. O juiz era americano, arquivou o processo. O turco enfartou, carreguei seu caixão e consolei sua viúva, saldando assim minha dívida.

A vida prosseguia, mas as coisas escasseavam. Víveres, roupas, remédios. As gripes eram constantes, Paulinho pegou catapora, Luciana quebrou o pé, no balé. Eu não acreditei. Por um acaso alguém quebra o pé dançando balé? Fui saber da professora. “Luciana? Que Luciana?” Olhou-me por cima dos óculos enquanto conferias as fichas. Com as mensalidades em atraso, minha filha, de vergonha, não ia mais ao balé, mas completava o time dos meninos como uma habilidosa ponta-direita. “Bola pra frente”, disse eu à minha filha.

Rosalva, minha mulher, chorava ainda mais. Tanta carência, a única em casa a ter um trabalho que rendia um salário muito mínimo. Não dava para nada, era bem verdade. Um dia enfarou, cansou. Pegou nossos filhos pelos braços e foi embora para a casa da mãe. Eu fiquei na mesma casa, nada contra ninguém, se bem que não me apetece a companhia de ofídios. Creuza foi junto. Olhou-me desapontada mas saiu-se com uma máxima do capitalismo: “Pois é, seu Aldo, patrão mesmo é quem pode pagar, não é?”

Habituei-me fácil ao vegetarianismo, visto que o açougueiro cortou-me o crédito. E mais fácil ainda foi livrar-me de outros luxos, como doces e banhos quentes. Cortei também o gás, usava lenha, que buscava no matagal atrás da casa, coisa que ia muito bem até que chegou o guarda florestal. Descobri um mundo novo nos alimentos crus. Não sabia que podíamos fazer tanta coisa sem cozinhar, sem esquentar, sem ferver. Até o sabor melhorou. No entanto, todos já me desconsideravam abertamente. Até o Juiz esqueceu-se de meu irmão e do América e, de vez em quando, aparecia lá um oficial de justiça para o confisco de meus bens. Levaram primeiro o aparelho de som, mas não meus vinis, minhas fitas e CDs. Sem toca-discos o melhor é cantar. Noutra oportunidade levaram o sofá da sala. “O que é isso diante da eternidade da alma?”, pensei. Então, voltaram no dia seguinte e levaram a televisão e eu fiquei pensando se uma televisão não valeria mais que a eternidade da alma. Não, não valia. O capitão afunda com o barco, encorajava-me. Não importa o galeio, as ondas, os piratas salteadores dos sete mares. Outro dia, outros oficiais de justiça, outros mandados de penhora, outros confiscos. Levaram a geladeira, o fogão, a mesa da cozinha, alguns móveis herdados e por fim o lustre. Desse último quase ri, sem luz elétrica, para quê o lustre? Do banco vieram dois carecas de gravata e levaram minha bicicleta. Levaram então quase tudo, até uma imagem de São Judas Tadeu que, tenho certeza, saiu contrariado.

Sobraram muitos livros e comecei a queimá-los por ordem de importância, os piores primeiro, sendo que os de auto-ajuda tiveram a primazia, seguido do Código Comercial e este seguido pelos compêndios encadernados da revista Seleções, por último Borges, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Queimei também alguns quadros de pintores amigos, sempre sem valor, e outras obras sem importância.

Na copa restaram, frente a frente, um retrato de Jesus e outro de Tiradentes. O Alferes parecia constantemente olhar para o Cristo e o Cristo para o Alferes. Um olhava como quem perdoava tudo e o outro como quem não se conformava com nada. Assim também fiquei eu, com a barba longa, os cabelos longos, a corda no pescoço e levando as dívidas de todos. Ora eu olhava para o Alferes e dizia “Libertas quae sera tamen”. Ora olhava para o Cristo e dizia “Eli, Eli, lama sabactani”, mas aceitava meu destino. Fiquei assim alguns dias até que, por fim, veio a ordem de despejo. Saí com os dois retratos, um em cada braço, mostrando ao mundo o que deviam fazer. Ajudou-me, sem saber, a prefeitura com o latão de lixo que agora uso como minha casa. Pela manhã o sol me desperta e começo o meu trabalho. Como meu desjejum, que com certeza já esteve em outra mesa. Coloco meus dois retratos para fora e instruo os transeuntes.

Vinde todos vós! Escutai a minha pregação! Vinde todos vós, sóbrios de extratos bancários e vós, ébrios de falsos balanços! Admoesto-vos das facilidades modernas: acautelai-vos dos juros módicos porque crescerão como a erva daninha e sufocarão a vossa colheita! Acautelai-vos dos banqueiros e dos agiotas porque no começo lhes darão um parentesco, dizendo “meu primo, meu primo” mas no tribunal revirarão vossos bolsos ao avesso. Todo crédito será cortado, todo juro será aumentado. “Muito barato, muito barato” dirá o vendedor, mas o aumento das prestações picará como a áspide e envenenará como a cobra naja. De ninguém sejais fiador e a ninguém queirais por fiador, mas empenheis a vossa honra e honrarás a Deus.

MÁRIO MELILLO