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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 36

As vagas apreensões do reitor, em relação à Daniel, comunicaram-se a Margarida, e nela adquiriram maior intensidade. As afeições arraigavam-se profundamente naquele bom coração; baldado era impedir que viessem à luz e florescessem; a cada momento, recebiam elas uma vida nova, e desenvolviam-se, como estas árvores que, cortadas todos os anos, rebentam a cada primavera, brotando jovens renovos.

Vão lá cobrir de gelo um coração assim. Tem vida de sobra para o fundir todo em lágrimas, e inflamar-se depois ainda.

Tendo salvado a irmã, a generosa rapariga só tinha agora, orações para pedir ao Senhor a salvação de Daniel. De si esquecera-se! - Sublime esquecimento!

Cumprindo o que dissera, pusera-se o reitor a caminho, a procurar Daniel. Levava o coração apertado o bom do pároco, ao atravessar lugares, onde, segundo os seus cálculos, mais provável seria encontrá-lo.

Muitos desses lugares eram os mesmos que, havia anos, seguira com uma intenção análoga - a de espiar os passos do seu pequeno discípulo, que já então mostrava o que viria a ser.

Lembrava-se agora o reitor daquele dia, e de como fora encontrar o rapaz, no mais remoto sítio da aldeia, em diálogo pueril com a pequena pastora, que hoje, por notável coincidência, tão intimamente se achava ligada outra vez ao seu destino.

Não sei que idéias associadas estas trouxeram consigo, que, muito contra o que era de esperar, o reitor pôs-se a sorrir.

Dir-se-ia que estava entrevendo um desenlace feliz a todo este enredo, e que, a pensar naquilo se esquecera das críticas circunstâncias presentes.

Mas as idéias negras voltaram cedo a assombrar-lhe o semblante.

- Que será feito do rapaz? - dizia o padre consigo. - Esta gente da cidade é tão sujeita a loucuras! É ver aquele infeliz, de quem falaram as folhas do Porto, que, não sei porque histórias de amores, se atirou das Virtudes abaixo. Quem me diz a mim que Daniel... em um momento de desespero... Nossa Senhora nos valha! Mas tem-se visto coisa!... Que gênio aquele! A quem sairá este rapaz? A mãe, uma santa mulher, o Senhor a tenha em glória; o pai, um homem sério... Mas, na verdade, dá-me que pensar este desaparecimento! Ele não dormiu em casa... Não teve ânimo de se encontrar com o irmão, talvez... Santo Antônio nos acuda! Quem sabe se iria para o Porto? Pode ser. Antes fosse.

Ia pensando nisto o velho pároco, quando ao tomar por a ponte de madeira, que atravessava um despenhadeiro, de cujo fundo pedregoso chegava aos ouvidos o fragor medonho de uma torrente , se encontrou, face a face, com o objeto de sua pesquisa.

Passou um calafrio pelo reitor ao ver Daniel naquele lugar, e ao reparar-lhe nas feições.

Daniel estava excessivamente pálido e com o rosto desfigurado pela vigília, e mais ainda pelas angústias do espírito que naquela noite o torturavam.

Olhava com a vista espantada, e numa espécie de fascinação o abismo a que ficava sobranceiro, e pareci atento a uma voz interior, que o impelia ao suicídio.

O reitor parou, fixando nele um olhar perscrutador.

- Que faz aqui? - perguntou-lhe, segurando com força pelo braço, como se pretendesse desviá-lo do precipício.

Daniel levantou para o padre os olhos entorpecidos, e em seguida, baixando-os de novo para o fundo do despenhadeiro, respondeu com uma frieza que fez estremecer o velho:

- Estava a fazer contas comigo mesmo; assistia a meu julgamento e...

- Ora, vamos. Não seja criança. Deixe-se de loucuras. Venha-se embora. Não queira fazer a infelicidade dos mais, dos que os estimam, já que a sua lhe merece tão pouca importância. Lembre-se do seu pai, e veja lá se quer pagar-lhe assim os sacrifícios que tem feito para si. Venha comigo.

- Senhor Reitor, não se ocupa de mim. Repare que está falando com um miserável. Não creia que me pode regenerar pelo arrependimento. Eu sou relapso. A minha alma fraca sabe sentir mas não sabe vencer-se. Sabe sentir, disse eu? Nem isso. Em mim já se apagou todo o sentimento moral.

- Não diga blasfêmias, filho, não descreia assim. A fé é o primeiro passo para a regeneração de que fala.

- A fé? Agora?... Tenho-a na quietação da morte. - E outra vez fitou a vista na torrente.

- Chama quietação à morte? Engana-se; depois dela é que principia muitas vezes o maior movimento, o movimento sem fim, sem remissão, o eterno. Mas oiça, Daniel; eu concebo o desespero do seu coração neste momento. Pesa-lhe o que fez? Tanto melhor. Não o quisera ver tão endurecido, que dormisse tranqüilo depois das cenas desta noite. Sente doloroso o pungir dos remorsos; pois é essa a porta da expiação.

- Remorsos! E daqueles que só acabarão, quando este amaldiçoado coração deixar de bater.

- Que durem como preservativo de novas loucuras, e não virá mal daí. Mas escute: julga haver destruído o futuro de seu irmão, imagina que lhe espremeu a esponja de fel no copo que o pobre moço preparava para levar aos lábios? E assim esteve para ser; e, se fosse, também eu não sei que vida se prepararia para esse seu coração incorrigível. Mas tranqüilize-se: Deus foi misericordioso; enviou um de seus anjos protetores. Tudo está salvo.

- Salvo?! - Que salvação pode haver? Como desviar a desgraça iminente sobre a cabeça deles?

- Então não lhe estou eu a dizer? Esquece-se das asas do anjo? Clara foi protegida por elas. Pedro ignora que fosse a noiva dele a que esteve no jardim a noite passada.

- Não queira iludir-me; Pedro surpreendeu-me quando...

- Bem sei. Mas não a viu.

- Não se precipitou ele contra mim, com a raiva do ciúme?

- A estas horas está arrependido.

- Arrependido? Não o vi eu ainda correr, cego de paixão, para o quintal? Diga-me o que sucedeu depois. Clara?...

- Já não estava lá quando ele entrou.

- Pedro?

- Retirou-se passado tempo, manso e pesaroso.

- Mas...

- Em uma palavra, Pedro julga haver-se enganado.

- Enganado? E como podia enganar-se?

- Sendo outra a mulher da entrevista.

- E quem mais podia ser?

- Margarida, a irmã de Clara.

- Mas ela pugnará pela sua inocência?

- Pelo contrário. Foi ela quem se acusou.

- Ela? E levou-a a isso?

- A felicidade da irmã leviana, mas não criminosa, cujo futuro viu ameaçado.

- E existem ainda anjos assim neste mundo, Senhor Reitor?

- Existem, existem, homem descrente e desalentado, existem - respondeu o padre com gesto severo - e sirva-lhe esse exemplo heróico, para lhe dar crença e fortaleza.

- E há quem lhe aceite a abnegação?

- Assim é preciso. Ninguém pode recusar sem sacrificar alguma coisa, além da própria felicidade.

Daniel calou-se. Olhou mais uma vez para a espuma da torrente; mas eram já menos poderosas as seduções do abismo. Levantou depois os olhos ao céu, e, a meia voz, disse, quase só para si:

- Como me sinto pequeno e miserável, diante daquele exemplo! E há quem julgue em decadência moral o mundo, ao qual descem ainda almas assim.

E calou-se outra vez.

O reitor observava-o.

Depois de algum tempo de silêncio, o padre, pousando a mão no ombro de Daniel, disse-lhe afavelmente.

- E por que não pede a essa alma, que admira tanto, um pouco da sua angélica fortaleza? Por que não procura purificar a natureza demasiado terrena, do seu malfadado coração, na abençoada influência dela?

- E ser-me á concedido?

- É; siga-me - respondeu o reitor, não disfarçando o seu contentamento. E, dirigindo o caminho, prosseguiu: - Talvez que vendo-a, tenha memórias a avivar. Mais oiça, Daniel; se, como diz, desconfia do coração - e tem razão para isso - faça por o subjugar, e deixe dominar a consciência, a consciência, que ontem mesmo, através da loucura - que foi loucura decerto aquilo - que ontem mesmo lhe devia estar exprobrando o seu mau proceder. Agora veja também como se apresenta a seu irmão. Olhe que é necessário que ele viva na crença em que está, ou morre para a felicidade. Veja o que faz. Vamos.

Daniel, com a cabeça inclinada sobre o peito seguiu maquinalmente o velho reitor.