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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 32

Daniel cumpriu a promessa que fizera.

No dia seguinte, à hora costumada, não passou por casa das duas raparigas.

Era para admirara nele esta pronta condescendência às opiniões do público.

A própria Clara não tinha esperado encontrá-lo tão dócil; não ousamos dizer que também o não tinha desejado, ainda que dos freqüentes olhares que dirigia para o sítio, donde todos os dias costumava vê-lo aparecer, alguém tiraria talvez esta ilação.

Cerrava-se a noite. Havia muito tempo que o toque das ave-marias tinha ido perder-se nas mais distantes serras, que limitavam o horizonte. O fumo das choças e das herdades difundira-se sobre a aldeia. O zumbido dos ralos, essa incômoda sinfonia, com que rompem no estio as harmonias do crepúsculo, era atordoador.

Principiavam a cintilar as estrelas no céu, apenas muito para o ocidente, uma estreita faixa restava ainda do dia que fenecera.

Clara saiu de casa, em direção a uma pequena fonte que havia nas proximidades dela, e ao final da estreita rua, que acompanhava o muro dom quintal.

De dia, era esta fonte muito procurada, em virtude da excelência das águas, gabadas de tempos imemoriais, pelos clínicos da localidade, quase como milagrosas em infinitos casos de doenças. Não obstante a absoluta carência de princípios medicinais não justificar a nomeada.

Depois das trindades, porém, o solitário e sombrio do lugar afugentava a gente supersticiosa do campo.

Clara, criada de pequena por aqueles sítios, e desde então costumada a não os temes, de propósito escolhia estas horas para mais à vontade fazer sua provisão de água, e demorava-se ali sem a menor sombra de terror, antes cantando sempre, com ânimo desafogado.

Como o leitor decerto prevê, não era nenhum monumento arquitetônico a fonte de que falamos.

Imagine-se uma boca de mina, aberta na base de um pequeno outeiro, que, todo assombrado de pinheirais, se alongava a distância, na direção do norte da aldeia; uma telha, meia quebrada, servindo de bica; e a receber o abundante e inesgotável jorro de água límpida, uma bacia natural por ele mesmo cavada, e onde, à vontade, vegetavam os agriões ávidos de umidade.

Do pinhal sobranceiro descia-se à fonte por alguns degraus grosseiramente abertos, havia muito tempo, no terreno saibroso do outeiro, e aperfeiçoados pelo trilho cotidiano dos que se serviam dos atalhos do monte com o fim de encurtar distâncias dali a diversos pontos da aldeia.

Ao lado, e separado alguns passos da fonte, abria-se um desses enormes barrancos rasgados pelas torrentes de sucessivas invernos e cuja entrada quase disfarçavam os troncos robustos dos fetos e das giestas que, crescendo livremente, haviam atingido proporções quase tropicais.

Quando Clara chegou à fonte, não havia lá ninguém.

A cantar, aproximou-se dela, e ajoelhando, principiou a encher o cântaro de barro que trazia.

A água caiu ao princípio ressoante no interior do vaso; depois amorteceu gradualmente o som, à medida que subia o nível do líquido; este dentro em pouco transbordava.

Clara ia levantar-se. Na posição em que estava, tinha voltadas as costas para a entrada do barranco. Neste momento pareceu-lhe ouvir algum rumor daquele lado.

Não foi superior a um vago sentimento de susto. Voltou-se inquieta. Deu com os olhos numa forma escura, e em breve reconheceu mais claramente ser um vulto de homem, que se aproximava dela.

Soltando um grito, Clara ergueu-se de súbito para fugir.

Segurou-a a tempo um braço e falou-lhe uma voz conhecida:

- Que vai fazer? Não se assuste. Sou eu.

Era a Voz de Daniel.

- Santo nome de Jesus! - exclamou Clara ao reconhecê-lo e ainda tomada de susto. - O que faz por aqui?

- Vim vê-la - respondeu Daniel, com a maior naturalidade.

- Então é assim que cumpre o que ontem me prometeu?

- Pois que prometi eu, senão fazer com que me não vissem? É o que faço, vindo agora só e aqui.

- É pior, muito pior isto - disse Clara, lançando-se em volta de si olhares de inquietação.

- Não é - continuou Daniel. - Pois não me disse que não desconfiava de mim? Não foi só por condescender com os reparos tolos de meia dúzia de curiosos e de velhacos que me pediu... que exigiu de mim que não viesse? Falando-me assim, neste sítio e a esta hora, não pode recear alguém. Lembra-se de me haver dito que o povo tinha medo de passar de noite por aqui?

- Mas, apesar disso. Jesus, meu Deus! - continuava Clara sobressaltada. - E para que havia de procurar falar-me? que tem que me dizer?

Daniel sorriu.

- Que pergunta a sua Clara! Imagina lá a minha vida na aldeia? devoram-me desejos de conversar. Mas não tenho com quem. Privando-me de a ver, Clarinha, afastava-me da única pessoa, das que até agora tenho encontrado, com quem se pode sustentar uma conversa seguida e agradável. Veja se não seria crueldade proibir-me...

- Não diga isso - respondeu Clara - Eu entendo-o às vezes, sim; mas é quando todos o entendem também; quando a sua conversação mais me entretém, tenho notado que muitos o escutam como eu, com atenção. Mas doutras vezes...

Neste ponto Clara reteve-se, como se receasse terminar.

- Doutras vezes? ... repetiu Daniel sorrindo.

- Doutras vezes não o entendo, e é sobretudo quando fala só para mim.

- Não me entendes? - perguntou Daniel, com uma inflexão de voz, que fez estremecer Clara.

- Não, não o entendo porque não posso... porque não quero... porque não devo acreditar na verdade do que me parece entender.

- E quando lhe falei assim, diz-me?

- Um dia, começava a falar-me desse modo em casa daquele doente que foi ver. Doutra vez... Oh! e dessa!... foi aquela noite da esfolhada, em casa de seu pai.

- E não me entendeu nessa noite?

- E queria que o entendesse?

- Pois não deve ser o desejo de quem fala? - perguntou Daniel dum modo jovial.

- Eu ouço dizer que há muitas pessoas que falam a dormir, quanto dariam esses por não serem entendidos, então?

- Mas eu nunca fui sonâmbulo, Clarinha.

- Tanto pior para si.

- Por quê?

- Porque então é mau.

- Mau!

- Mau, sim. Eu não sei de maior maldade do que a daqueles que andam por aí a inquietar o sossego das famílias, a alegria dos corações, e só por gosto e fazer infelizes.

- Então eu...

- Basta, Senhor Daniel. Se é homem de bem, retire-se ou deixe-me retirar - disse Clara, com arde seriedade e nobreza que o impressionou.

Dando também às suas palavras mais grave tom, Daniel respondeu:

- Escute, Clara. Acredite que não fala com um homem de sentimentos perdidos; escute-me e tranqüilize-se. Eu conheço em mim um princípio mau, é verdade; mas creia que não lhe ando tão sujeito que nem compreenda já a força dos meus deveres. Conceda-me ainda um pouco de consciência. As vezes, muitas vezes até, deixo-me arrastar por esta força, que me leva a loucuras, que chega talvez a aproximar-se de uma vileza... mas, ao chegar ai, até hoje tenho resistido e espero... Perdoem-me isto, por quem são. Cedo me verão arrependido.

- Cedo! e quando é cedo ou tarde? sabe-o lá? Quem lhe há de dizer que é cedo? Cedo para si poderá ser; e para outros também? Há poucos dias, que todos por aí só falavam de uma pobre rapariga, a quem , por divertimento o Senhor Daniel trazia quase doida. Está arrependido, não é verdade? Mas arrependeu-se cedo para ela? Amanhã poderiam dizer de mim...

- Que hão de dizer, Clarinha? Essa rapariga de que fala, não fui eu que a fiz doida; engana-se; encontrei-a já assim. Eu não trabalhei para a perder; também se engana; os seus é que se esforçaram por a darem por perdida. A Clarinha esquece que a si todos respeitam e que...

- Não é verdade. Em que sou eu mais que as outras? Ninguém está acima das vozes do mundo. E se até agora tinha razão para não me importar com elas, por me não julgar culpada, teria de as temer, se continuasse a ouvi-lo aqui. Adeus.

- Vejo que me enganava ainda ontem, dizendo-me que tinha confiança em mim. Esses receios...

- Enganaria; mas enganava-me a mim mesma, também. Eu não sei mentir. E a prova é que sinceramente lhe digo agora que desconfio.

- De mim?

- De si, sim, por que não? As suas ações não são leais. Vê que, vindo procurar-me aqui, me pode perder, e não se importa fazê-lo; peço-lhe que se retire, e teima em ficar; peço-lhe que me deixe retirar, e impede-mo. Brinca assim com minha reputação sem se lembrar que sou quase já a mulher de seu irmão, quase a filha de seu pai, quase sua irmã também. Diz que sabe quais são seus deveres... e como é que os cumpre então? Se Pedro passasse por si, neste momento, e lhe abrisse os braços, como a irmão que é, teria valor para o abraçar, diga? Não fugiria antes dele como um criminoso? Fale.

Daniel curvava a cabeça, sem coragem para responder.

Clara prosseguiu:

- Peço-lhe pela alma de sua mãe, que nunca mais me procure aqui, que nunca mais me procure em parte nenhuma. Ontem ainda me ri eu dos avisos que recebia para me acautelar; hoje, já não sinto vontade de me rir. Tinham razão eles, tinham; agora o vejo; e este meu gênio é que me podia perder. Se por mim não é bastante pedir-lhe, peço-lhe por seu irmão, por sue pai, e por si mesmo, que assim anda a perder o crédito de um nome, que nenhum dos seus nunca deixou de honrar.

- Está sendo muito cruel para mim, Clarinha. Concordo que fui imprudente, inconsiderado, mas... Confesso-lhe que a impressão que me causou e que me causa...

- Senhor Daniel, eu não quero saber os seus segredos. Deixe-me retirar.

-Pois bem, será esta a última vez que a procuro, que lhe falo até, que a vejo, se tanto exigir de mim; mas ao menos desta vez há de escutar-me.

- Mas, para que preciso eu escutá-lo? - dizia Clara pelo tom de exaltação que ele falava.

Daniel continuou:

- Todos só têm palavra para me censurar, e ninguém há de ver um dia claro no meu coração? Ninguém, melhor do que eu, conhece a fraqueza ingênita deste caráter, que não sabe lutar; mas o que eu não sei, o que eu peço que me digam é o remédio para este mal. Clara, não procure fugir sem ouvir-me. Retirar-se-ia supondo pior do que sou, como todos que me conhecem. Eu quero que ao menos uma pessoa saiba a verdade a meu respeito. Escute.

E, ao dizer isto, segurava o braço de Clara, que temia de inquietação.

Neste momento, os passos de uma cavalgadura a trote rasgado soaram próximos, no caminho que vinha terminar defronte do lugar onde esta cena se passava.

Clara não pode reprimir um grito de susto.

- Jesus, que estou perdida! - exclamou ela; e soltando o braço que Daniel lhe segurava ainda, fugiu na direção de casa.

Antes, porém, de transpor a esquina que a devia ocultar às vistas de quem quer que era que se aproximava , e de conseguir fugir pela porta do quintal, o cavaleiro, tendo-a avistado e conhecido bradava rijo:

- Ó Clara, Clarita! Rapariga! Ó pequena! Pichiu! Eh! Onde vais com essas pressas? Não são os franceses, sossega.

O homem que bradava assim, era João Semana, que voltava de uma visita distante. Vendo a Clara a fugir tão apressada, conjeturou que ela se assustara, supondo-o algum facinoroso ou mal intencionado, e por isso berrava para lhe fazer perder o medo.

Mas ao aproximar-se da fonte, o velho cirurgião descobriu alguma coisa, que lhe pareceu procurava ocultar-se dele.

- Hum! - murmurou consigo o velho. - Pelos modos, o susto da rapariga era de outra espécie... Há de ser o Pedro.

E acrescentou em voz alta:

- Olá, não fujas, rapaz; não é crime nenhum vir falar assim com uma noiva; ainda que, para dizer a verdade, escusava de ser tanto às escondidas, escusava.

E com isto foi dirigindo o cavalo para aquele vulto, que parara, desde que viu que não podia fugir sem ser percebido. À medida que se aproximava, João Semana principiou a duvidar que fosse Pedro, o homem da entrevista noturna.

Parecia-lhe menos corpulento do que o primogênito de José das Dornas.

A esta suspeita, sulcou uma ruga profunda o longo da fronte do honesto celibatário, que decidiu consigo averiguar aquele mistério.