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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 27

Margarida ficou só na sala.

Viera aumentar-lhe a turbação, em que estava já , esta cantiga de Clara.

Andava-lhe muito ligada a idéias do passado, para a poder escutar com indiferença.

Aquela toada era para Margarida como as palavras misteriosas que em certos contos de fadas, se diz terem o condão de evocar dos páramos mais agrestes, jardins, florestas e palácios encantados; povoara-se-lhe a imaginação ao ouvi-la, um pouco de recordações ao princípio, e depois muito de fantasias...

Encostada ao peitoril da janela, e apoiado o rosto nas mãos, assim ficou por muito tempo com o olhar vago e o pensamento mais vago do que o olhar ainda.

Se o espírito, ao sair dessas exaltadas abstrações, se volta de súbita para as realidades do presente, o desencantamento é fatal e amargo. Entra-nos então no coração um profundo desgosto da vida, e como que se nos quebram as forças para continuar a ação.

Estava passando por um desses estados o espírito de Margarida.

As vozes joviais da irmã e os risos de Joana chegavam-lhe aos ouvidos; e afligiam-na aqueles sinais de alegria.

As vivas cores das rosas e dos cravos atraiam-lhe a seu pesar, as vistas para os alegretes do jardim, e impacientavam-na; quase lhes queria mal por aquele aspecto festivo.

Quando, em épocas de provação para a alma, a sós com os nossos pesares e as nossas lágrimas, escutamos lá fora o ruído ou divisamos o esplendor das festas alguma coisa estremece dolorosamente em nós.

Sentia-o Margarida naquele instante, e tanto lhe crescia o mal que, para fugir-lhe, ergue-se e passeou com agitação por algum tempo na sala.

- E por que não hei de eu também distrair-me, como se distrai a Clara!? - pensava ela - Virão já de nascimento estes gênios assim? Mas como se há de acreditar que os Senhor queira fazer cair sobre a criatura que ainda não o ofendeu, este grande castigo de uma tristeza tamanha? Não, não pode ser. - Antes creio... isso sim, que o gênio de cada um toma a feição da vida, que em criança se teve... Uma pessoa, afinal, é como uma árvore; enquanto nova, é que se pode dobrar, que depois... Ali estão aqueles cedros que, de pequenos, Clara vergou em arco; ganharam essa forma, e hoje já não se erguem direitos como os outros. É assim. Quem abriu os olhos, começou a pensar, sem ver grandes alegrias em volta de si, pode lá aprender a sorrir? As crianças então, que tudo aprendem dos outros, a falar, a andar, a brincar... como não aprenderiam também alegria ou a tristeza?

Nisto fizeram-na ir à janela algumas vozes infantis.

Eram quatro crianças, quase nuas, que rodeavam uma pobre mulher, coberta de andrajos e macilenta. E elas, apesar de sua nudez e dos rostos pálidos, riam e brincavam em redor da mãe, que nem tinha pão para lhes dar.

À porta das duas irmãs estava sempre sentada a caridade. Não se fechou vazia ainda desta vez a mão da indigência, aberta a implorar por ali. A pobre mãe chorava de gratidão ao retirar-se; as crianças brincavam ainda.

E calou-se por algum tempo; depois prosseguiu a meia voz:

- Pois sim, mas há uma riqueza que elas têm e eu não tive. Aquele olhar da mãe. Não vi eu sorrir-lhes a mãe? Coitada, no meio da sua desgraça ainda não desaprendeu de sorrir; precisa de risos para os filhos. É ver como eles olhavam para ela. É isso... deve ser isso.

E tornava a passear no quarto; depois parando junto da janela ao lado do quintal, continuou como antes:

- Deve ser isso, sim. No meio da pobreza, no meio da miséria, pode nascer ainda a alegria, mas é preciso que haja um olhar de afeição para a criar... um olhar de mãe, sobretudo. Ai, um olhar de mãe deve ser para agente quase como um raio de sol para as flores. É ver aquela rosa, que nasceu acolá, à sombra do muro. Como é desmaiada! Enquanto que as outras... Bem faltas de cuidado cresceram por entre a horta aquelas papoulas vermelhas; quem pensava nelas? Mas lá ia o sol animá-las... Clara teve uma mãe que estremecia, teve o seu raio de sol... eu, de bem pequena, perdi a minha... Quem tão cedo se viu órfã, como há de ser para alegrias?

Neste ponto, entrou na sala uma rapariga, que as servia, trazendo um ramo de flores na mão.

- Veja menina, - disse ela - Veja o bonito ramo que eu trouxe do campo de baixo. Vou já, já daqui pô-lo ao Santo Antônio, lá dentro.

-Pois vai, vai, Maria.

E a rapariga, que era uma exposta, saiu cantando alegremente.

- E esta então - continuou pensando Margarida, quando ela se retirou. - Que mãe teve esta para lhe semear a alegria, que nunca perde? A pobre nem família conhece; a gente que a criou não a tratava com carinhos. E como ela vive! e como ri! Não há dúvida pois; não há dúvida que se vem ao mundo assim. Então eu... Ó Senhor! mas isto não pode ser. Que condenação, meu Deus!

E como se procurasse convencer-se de outra solução menos desconsoladora, do problema em que meditava, prosseguiu pouco depois:

- Mas quem me diz que é isso uma condenação? Por que não hei de ver se posso tirar de mim estas idéias negras? Olhando-se bem claro dentro de nós, talvez... vejamos: Estou hoje triste; é verdade. E por que? Esta manhã não estava. lembra-me que até ri com Clara... Parece que é mau agouro esta alegria, que sentimos às vezes ao acordar! Depois... Há pouco... foi depois que veio aquela mulher... E que me disse ela? Tudo que eu lhe ouvi não era para isto. Não, decerto. Afinal que tenho eu com...

Aqui o pensamento quebrou o jugo que o constrangera a seguir o caminho estreito da reflexão, e entregou-se insofrido à mais extravagante carreira.

Na posição e nos gestos de Margarida nada acusava a revolução mental que se operara; mas instantes depois ela murmurava já:

- Quem sabe se aquela rapariga? Mas não, não pode ser... E ele? Que mudanças traz o tempo! Eu não sei como são certas memórias também... Mas que admira? A vida da cidade... Quem havia de pensar?... Parece-me que ainda estou a ver, quando ele era criança e vinha... Dez anos!

Absorvida em pensamentos desta ordem a veio encontrar o reitor que raro deixava de visitar as suas pupilas.

- Em que cismas tu, rapariga? - disse-lhe o padre - Santo Nome de Jesus! não posso atinar o que tanto tens para cismar. Nem que te cansassem aos ombros grandes canseiras de família! Deita o coração ao largo. Não vês a Clarita? Faz assim como ela. Lembra-te que tens vinte e três anos. Aos sessenta é que é natural pensar assim.

Margarida beijou-lhe a mão dizendo:

- Isto julgo que nem é pensar. É quase ume esquecimento de tudo, e de nós mesmos, em que às vezes se cai. Mas faz bem ralhar comigo, Senhor Reitor, faz muito bem. Este costume é mau. É quase uma doença da qual hei de ver se me curo.

- E tem juízo. Olha, minha filha, isto de pensar muito... Enfim, o Senhor para isso nos deu a razão, mas... Queres tu saber? Um dia, veio aqui um homem que, pelos modos, é um grande sábio, um desses filósofos da cidade. Era domingo e eu tinha que fazer a minha prática. O tal sujeito foi para a igreja. Quando o vi lá fiquei assustado. Enfim... com esta boa gente daqui, entendo-me eu bem, mas, pobre cura da aldeia que sou há vinte anos, o que queres tu que eu possa dizer diante de gente instruída e ilustrada, como era o tal? Estive para desanimar, Margarida, olha que estive; mas disse comigo: "Não senhor, eu não devo recear. Não tenho lido muitos livros, é verdade; mas os Evangelhos leio-os todos os dias. Eles me ajudarão. Pois não tenho eu lá aquele sermão da montanha?" E fui para a igreja, e abri o SãoMateus, e li: "Amai a vossos inimigos, bendizei aos que vos maldizem, fazei bem aos que vos tem ódio, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem". Bastou-me isto, e pus-me a falar, assim que te falo agora, Margarida. Achava-me à vontade. Pois sabes - que é ao que eu trouxe isto - o tal homem, de que eu me receava, foi ter comigo à sacristia para me abraçar, e disse-me: "Gostei de ouvir; deram-me a suas palavras, por algum tempo, mais sãs consolações do que as minhas noites de estudo". Ficou-me este dito do homem, e pareceu-me que ele tinha consigo grande coisa a afligi-lo. Pensava demais talvez. Corre-se o risco de endoidecer. Nada, não tem jeito.

Margarida sorriu, assegurando ao reitor que evitaria esse perigo, fazendo por se distrair.

No decurso da conversa ulterior, falou-se em Daniel. O padre aludiu à entrevista que tinha tido com ele, e procurou atenuar a culpa do rapaz, expondo as idéias que lhe ouvira em relação ao casamento e à escolha de uma esposa.

O resultado de tudo quanto disse foi deixar Margarida mais pensativa do que antes.