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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 20

A princípio, a substituição desagradou a Daniel, por lhe dissipar umas vagas fantasias, com que tinha vindo; mas Clara não era mulher junto de quem se pudesse sentir por muito tempo a falta de outra.

Daniel, passados alguns minutos, achava-se conformado.

- Olhem quem nos vem! Bem dizia eu ontem; dentro em pouco, ninguém quer saber do João Semana.

- Devo lembrar-lhe Clarinha, que é à força, quase, que eu venho aqui, porque não houve quem tivesse a idéia de me mandar chamar - replicou Daniel, sorrindo. - Não lhe disse eu que as raparigas seriam fiéis ao João Semana? Veja, nem a Clarinha nem a mana se lembraram de mim, sendo eu da família quase.

- Bem vê que pouco se lhe podia prometer - respondeu Clara, lançando para a humilde mobília do quarto um olhar expressivo.

- Nem a recompensa da consciência, que sua irmã prometia a João Semana?

- Com franqueza lho digo; eu por mim tinha-me lembrado de o chamar, tinha.; mas Guida é que não quis.

- E por que não quis sua irmã?

- Eu sei lá? Eu já não estou acostumada a perguntar a razão por que ela diz isto ou aquilo. Para quê? Afinal de contas, não sei fazê-la mudar de tenção.

- Então é assim teimosa?

- Teimosa? Não, credo; mas é que depois de falar com ela... não sei como isto é... eu sou que mudo sempre. Mas, já que veio, entre; aqui tem o nosso doente.

E, dando ao gesto a expressão de desesperança, acrescentou, baixando a voz e suspirando:

- Isto!... coitado!

O doente era o velho que já conhecemos, agora de todo prostrado por uma caquexia, infalivelmente mortal.

Realizara-se o seu pressentimento. Vida... só lhe restava para agradecer com o olhar, mais já do que com palavras, os cuidados quase filiais, de que as duas raparigas o rodeavam.

A idade e os padecimentos morais deste homem haviam-se tornado elementos quase invencíveis, do mal que lentamente lhe minava as forças.

O único alívio, no seu leito de dor, era a vista das duas irmã. Faziam-lhe bem os sorrisos de Clara, e as lágrimas de Margarida - duas expressões diversas da mesma simpatia.

Daniel aproximou-se do leito do enfermo; do outro lado, ficava-lhe Clara.

A luz era escassa na alcova. As feições de Clara tinham tomado uma expressão de melancolia, a qual aquelas sombras pareciam aumentar.

Junto à cabeceira de um enfermo é onde mais pronta e naturalmente se estabelece entre duas pessoas um trato familiar.

A etiqueta e as reservas do costume sentem-se mal colocadas e intempestivas ali.

Se é sincera a compaixão para o que padece, perde-se a frieza necessária à estrita observância das insignificantes convenções sociais. Não são possíveis as afetações nem os constrangimentos, quando a mesma generosa simpatia domina o pulsar de dois corações.

Por isso, entre Daniel, como médico, e Clara, como enfermeira, crescera, rapidamente, certa familiaridade, a qual não pouco concorrer para fazer demorado o exame do doente, cuja moléstia era de uma evidência e de uma fatalidade de êxito, que deviam facilitar a tarefa do seu estudo.

Depois... nunca é tão cheia de atrativos a mulher, como ao velar, solícita, por o doente que estima. Às mais levianas revela-se-lhes então a grandeza e a sublimidade da sua missão na terra. O coração, que as vaidades podem trazer abafado, estremece e acorda ao primeiro grito de dor; o instinto feminino revive com toda a espontaneidade de abnegação, dá-lhes à voz inflexões de ternura, ao olhar requebros de meiguice, e aquela deliciosa fraqueza de ânimo que nos pedia proteção e amparo, transforma-se em coragem heróica, diante da qual nós, os que nos supúnhamos fortes, cedemos subjugados.

Um momento destes, na vida da mulher, absolve-a de todos os pequenos defeitos, que temos por costume censurar nela.

Quando o império do amor e de piedade deve reger a vida, aceita então ela de nós, com sorrisos de brandura, o cetro de soberana.

E nessas ocasiões bem conhece que o prestígio, que exerce, é absoluto; perde então a timidez habitual e olha-nos desassombrada.

Sucedia isto com Clara. Achava-se à vontade ali; fitava sem constrangimento, os expressivos olhos negros de Daniel, como se para nele espiar o passar das idéias, que o exame do doente lhe fosse sugerindo.

Se ela soubesse que, enquanto o fitava assim, mal na doença o deixava pensar!

O enleado agora era Daniel. Com os olhos no rosto cadavérico do enfermo, comprimindo-lhe ainda o pulso abatido e descarnado, quase não tinha consciência do que fazia.

Sem olhar, sentia que a vista de Clara se fixava nele - porque há fenômenos assim, - e sentindo-o - desgraçada natureza a sua! - em vez de médico impassível e atento, já não era senão o estudante de vinte anos, com toda a sua ardente imaginação.

Enfim terminou aquele exame, longo, mas distraído, e, depois de algumas perguntas feitas ao doente, Daniel voltou à sala para receitar.

Clara acompanhou-o e encostou-se familiarmente às costas da cadeira na qual Daniel se sentara.

Era o bastante para tirar a este toda a tranqüilidade.

A seu pesar, a mão tremia-lhe ao escrever.

Clara pôs-se a rir.

- De que se ri? - perguntou Daniel, voltando-se

- Está-me a lembrar, ao ver tremer-lhe a mão assim, que o João Semana costuma dizer, quando assina uma receita, que assina uma sentença de morte.

Daniel sorriu também, ou simulou sorrir.

- Isto é nervoso - disse ele, levantando-se.

- Nervoso? Então também é nervoso! Eu cuidei que isso era só das senhoras da cidade.

- Enganava-se.

- Então que é ser nervoso?

- É... por exemplo, não ter firmeza na mão ao escrever, quando nos seguem os movimentos com uns olhos assim como os seus Clarinha.

- Ah! Deve então ser má doença, que obriga os outros a andarem com os olhos fechados - redargüiu Clara, com certo tom de zombaria.

Daniel ia replicar, quando um gemido do enfermo chamou Clara à alcova.

Enfim, passados alguns segundos, Daniel muito a custo preparava-se para sair.

Clara voltou, trazendo-lhe água para as mãos; ato naturalíssimo e sem significação - porém Daniel era destes homens, para quem quase não há atos sem significação.

Lavando-se, e enquanto Clara sustentava a bacia, aventurou-se um olhar para a gentil rapariga, a qual o recebeu com firmeza.

Como este olhar se prolongasse, Clara disse com um sorriso de ironia aparente através do gesto de ingenuidade de que o acompanhou.

- Está tão distraído, a pensar... no seu doente talvez, que nem repara que se está a lavar em seco.

Daniel baixou os olhos e abreviou a operação.

Quando ia retirar-se, ouviu Clara que lhe diziam gracejando:

- Quando se lhe deve pela visita, Senhor Doutor?

A esta pergunta, esteve iminente de sair da boca de Daniel um galanteio, que ele susteve a tempo, por não sei que pressentimento, que lhe dizia que esse jogo podia ter seus perigos. Limitou-se a responder:

- Deve-se-me um pouco de afeição pela boa vontade, quando mais não seja.

- Já vejo que é fácil de contentar.

- Acha então de pouco valor a afeição?

- Como não pede muita...

- É que receio que já não tenha muita para me dar.

- Tão pobre me faz disso?

- Pois não dispôs já da melhor?

- A afeição de que dispus, não lhe podia servir.

- Acha?

Esta pergunta, ou mais do que ela, a inflexão de voz com que foi dita, o olhar de que foi acompanhada, era imprudente.

Clara desviou a vista diante deste olhar de Daniel.

- Ouça - disse ela, mais séria já do que até ali, - A gente tem sempre no coração duas afeições diferentes, penso eu; uma, que se dá toda a uma pessoa, e julgo que uma só vez na vida; outra que se dá às porções, mais a uns menos a outros, mas que nunca se acaba. Para querer a este pobre velho, que ali está dentro - e quero-lhe deveras - nada tive de tirar à afeição grande, que tinha a Margarida. Conte por isso que ainda tenho afeição - dessa - para lhe dar. A Guida não terá que sofrer com isso... nem os outros.

Havia uma delicada correção nestas palavras de Clara, que produziu efeito no ânimo de Daniel. Inclinou-se, e com sorriso não constrangido, replicou, estendendo-lhe a mão:

- Agradecido, Clarinha. Essa mesma é a que me deve; pois não seremos dentro em pouco tempo, irmãos.?

E separaram-se.

- Que diabo de homem sou eu? - dizia Daniel consigo. - Pois não ia principiando apaixonar-me por a mulher do meu irmão? Quando terei eu força para me vencer nestas coisas? mas é que tem uns olhos esta rapariga, e umas maneiras!...

E, sob o domínio destas novas impressões, a impressão que da carta de Margarida havia recebido, desvanecera-se de todo.

Não era, porém, esta a única mudança que se tinha de operar nele, aquele dia.