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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 14

O grande acontecimento do dia realizava-se enfim.

Pelas cinco horas da tarde, parava à porta de José das Dornas a mais vigorosa e anafada das suas éguas, e dela se desmontava Daniel, em trajos de jornada e com a clássica caixa de lata ao tiracolo, sinal evidente de formatura completa.

A vizinhança toda afluiu curiosa às portas e às janelas para ver o facultativo novo e julgar dele pelas primeiras impressões. Era uma coleção de olhos arregalados e bocas abertas, a convidar o lápis de um artista.

- Ainda é tão novinho! - dizia uma mulher.

- Não sei o que me parece um cirurgião sem barba - observava um velho filosoficamente. - Parece um estrangeiro.

- Lá bonito é ele - notava uma rapariga.

- Olhem que boniteza! Um homem quer-se um homem - argüiu um alentado rapagão ao ouvi-la.

Neste tempo, porém, já Daniel estava rodeado pelo pai, irmão e criados de um e de outro sexo, em cujos semblantes luziam naquela ocasião sorrisos de júbilo não afetado.

Daniel era agora um esbelto rapaz de vinte e três anos, de aspecto mais varonil, mas conservando ainda a mesma delicadeza de organização, que o caracterizara na infância, e que tantas apreensões fizera conceber ao pai.

No meio daqueles homens do campo distinguia-se singularmente o seu tipo quase setentrional, e com grande vantagem para ele no conceito das mulheres, que umas às outras faziam baixinho esta observação, traída, porém, pelos olhares que lhe lançavam.

Trocaram-se cordiais abraços, baratearam-se parabéns e cruzaram-se perguntas, às quais era quase impossível responder de pronto, tantas e tão simultaneamente se faziam.

Enfim entraram para a sala.

O leitor concordará comigo, decerto, que será melhor deixar passar estes momentos de expansões e retirarmo-nos discretamente, como hóspedes importunos sempre nestas cenas de tanta alegria doméstica. Deixemos Daniel gozar-se à vontade dos abraços da família, e preparar-se para sofrer, como puder, os apertos de mãos oficiosos de amigos e conhecidos, que não tardarão a vir cumprimentar o zelador de suas importantíssimas saúdes.

Entremos, pois, com estes. que é a companhia que melhor nos convém. Entre os primeiros encontramos logo o reitor.

O bom pároco caminhou para Daniel com os braços abertos e lágrimas de alegria a bailarem-lhe nos olhos, Ficara com afeição ai rapaz, desde que o tivera por discípulo.

Falou-lhe desses tempos com saudades e perguntou-lhe se ainda se lembrava do latim.

Daniel, em resposta, declinou-lhe, sorrindo, hora, horae, e até ao ablativo do singular, com grande satisfação do velho que, em paga,. terminou com uma prática sobre os deveres do médico na sociedade, recheada de preceitos de excelente moral. Daniel escutou-o com fisionomia atenta; mas, diga-se o que é verdade, com o espírito um tanto distraído.

Veio também João Semana - João Semana, o velho cirurgião, de quem já temos falado, homem rude, franco, jovial, que apertou a mão de Daniel, pondo em exercício uns músculos de oitenta anos, que fariam a vergonha dos nossos rapazes de vinte.

Apesar dos seus muitos anos, tinha ainda João Semana hábitos de atividade, a que não sabia fugir.

Erguia-se com estrelas, almoçava com luz e montava a cavalo, para começar o giro clínico, que lhe tomava o dia quase todo, e nunca reprimia a velocidade de sua pacífica e bem intencionada azêmola, para gozar por mais tempo de um ponto de vista pitoresco, para escutar o gorjeio de alguma ave oculta na folhagem, nem para cortar a flor desabrochada à borda dos caminhos, ou de entre a relva dos campos. Nada disso; se abrandava o trote da égua, era nos sítios mais azados a quedas, se parava, era à porta dos doentes ou a ouvir alguma consulta, à qual, até a cavalo, respondia, e nos mais lacônicos termos possíveis.

Dava-se nele uma necessidade de movimento e de agitação, à qual em vão fora resistir. Quem o quisesse ver morto, era condená-lo à inação, privá-lo daqueles sóis ardentíssimos e chuvas excessivas a que, havia mais de meio século, andava sujeito.

Viam-no sempre alegre, da mesma alegria de José das Dornas, a alegria sem sombras.

Era perdido por anedotas, das quais podia dizer-se um repositório vivo. Os frades era ordinariamente os seus heróis preferidos; contra eles tinha sempre um gracejo aparelhado e pronto a correr caminho.

Esta bossa anedótica é sempre de grande valor para o facultativo que aspira à vida clínica. Uma história contada a tempo, e com graça, vale bem três récipes, pelo menos.

Cirurgião dos pobres, por encargo oficial, era-o João Semana também, e sê-lo-ia sempre, por impulsos do coração, que lhe não deixava presenciar um infortúnio qualquer, sem simpatizar com o que sofria, e sem empregar os meios para o aliviar.

Muitas vezes, na mão, que estendia ao pulso dos seus doentes, ia escondida a esmola, que manifestamente se envergonhava de dar, por aquela repugnância a ostentações de todo o gênero, que constituía um dos distintivos do seu caráter.

A conversa de João Semana com Daniel, não entendida, e por isso admirada pelos circunstantes, versou sobre medicina. As exaltadas crenças teóricas de Daniel, e a casuística inflexível e fria do velho prático acharam-se em conflito.

João Semana era céptico em relação à ciência moderna. Quando Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma descoberta notável, a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros, sorrindo.

- Tudo isso é muito bonito - dizia ele, com poucas contemplações para com a impaciência do seu jovem colega - mas não me serve para nada. Era o que me faltava se eu, que não tenho tempo para dormir, me punha agora a ler essas coisas todas. Que nomes! que moléstias que eu nunca vi, em sessenta anos de prática! Sabe você, Daniel? Eu penso que lá por fora, nessas terras grandes, há fábricas de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também; cá à aldeia não chegam; é o que sei lhe dizer. Você para cá virá, você para cá virá - há de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco, mais gástricas, menos gástricas e disse.

Daniel falou em mil assuntos: nos aperfeiçoamentos da análise médica, no microscópio, na eletricidade, na química, na anatomia patológica, com um ardor de proselitismo, próprio da idade; chegou a persuadir-se que sua eloquência conseguiria, enfim, vencer o indiferentismo teórico do clínico.

Recebeu, portanto, uma impressão desagradável, quando ao terminar um bem elaborado período em honra da ciência moderna, obteve em resposta a frase do costume:

- Isso é tudo muito bonito, mas você para cá virá, você para cá virá, e então falaremos.

Nesta parte, tornava-se, pois, impossível a conciliação. Era o antagonismo permanente entre a teoria e a prática, revelado em uma das suas multiplicadíssimas manifestações.

Mais arrojado do que o empirismo de João Semana, era, sem dúvida, o sistema médico do barbeiro, que também tinha uma clínica na aldeia, à qual, para maior exemplo de observância à lei, pertenciam duas autoridades: o regedor e o presidente da câmara.

O barbeiro entrou risonho, cerimoniático, afável, modesto, penteado, felino - perfeita personificação do ideal do barbeiro, todo mesuras, todo senhorias, todo humildades, todo delicadezas velhacas.

E quantos estavam na sala o rodearam de atenções, e o próprio João Semana, com grande espanto de Daniel, o interrogou com referência a uma doente, de quem tratavam juntos.

Com audácia, mal encoberta por transparente modéstia, o barbeiro expôs assim a sua opinião.

- Enquanto a mim, e até onde chegam as minhas fracas luzes, aquilo é o flato que lhe subiu ao coração. Por isso a doentinha tem aqueles pasmos, que se vêem. Ora os sinapismos, puxando-lhe os humores para os pés, algum bem lhe podem fazer. Mas eu por mim, Senhor João Semana, penso que nestas doenças de retrocesso a matéria reimosa não sai sem sedenho. E que ali há matéria reimosa, - e fel, que é ainda pior - isso é que há. Já vê então... mas isto digo eu; agora lá os senhores que estudaram... - acrescentou humildemente, mas obliquando para Daniel um olhar, de quem estava satisfeito de si.

Daniel tratou senhorilmente este colega de contrabando, e na ocasião em que ele se entranhava, mais entusiasmado, na exposição de uma teoria sua, na qual ferviam os humores, os flatos, as matérias reimosas, os postemas e não sei que mais, em indigesta caldeirada, interrompeu-o, perguntando-lhe secamente:

- Teve hoje muito que fazer, mestre?

O barbeiro acolheu a pergunta com um sorriso e uma mesura.

- Está feito. Apenas fiz três visitas.

- E quantas barbas?

O mestre mordeu os beiços antes de responder:

- Nenhuma.

Este colega do célebre Oliveiro - o gamo - não gostava que lhe falassem na única das coisas em que era eminente.

É uma fraqueza esta mais comum à humanidade, do que talvez se julga.

João Semana reparar nesta curta cena, e tomando de parte Daniel, aconselhou-o a que poupasse o barbeiro, e o aceitasse como colega, sob pena de indispor contra si a mesma gente da terra.

- Meu caro amigo - concluía ele - quem quiser viver bem neste mundo, faz vista grossa a muita coisa. Está bom, está!

E, como para não perder um hábito antigo, acrescentou:

- Você quer saber? Quando eu andei no Porto, conheci um frade, que era pregador de nomeada. Pois não havia outro passa-culpas como aquele; não gostava de meter medo a ninguém com as penas do inferno. O prior do convento chegou um dia a dizer-lhe que ralhasse mais contra o pecado, que não fosse tão bom de contentar; respondeu-lhe o frade: "Não que, reverendíssimo padre, é preciso tento; nem o diabo se deve tratar muito mal, porque ele tem por aí muitos amigos". Ora pense nisto, e adeus, que vou à minha vida.

E saiu.

O resultado de tudo foi uma grande depressão no entusiasmo de Daniel, pelo modo de vida que adotara.

Finalmente retiraram-se as visitas.

São quase trindades; a família toda, incluindo os criados, que na aldeia fazem quase parte dela, está reunida em conclave na eira, a experimentar cada qual, como à porfia, a sagacidade e ciência do novo facultativo, interrogando-o sobre todos os pequenos incômodos sentidos, de que a memória lhes pode sugerir ainda notícia. É esta a prova tremenda, que espera o estudante de medicina em tempo de férias, ou ao terminar a formatura - prova mil vezes mais decisiva para o seu futuro, de quantos diplomas lhe possa dispensar a douta corporação, da qual recebe os títulos profissionais.

Um perguntava a Daniel se a grama era mais fresca do que a cevada; outro qual a razão porque os pigmentos da conserva nunca lhe faziam mal enquanto a salada de alface lhe causava uma irritação no estômago infalível; vinha outro que desejava saber se seria melhor purgar-se no quarto crescente, se no minguante da lua; queixava-se um de arrepios, que sentia ao deitar-se na cama, e principalmente no inverno; outro do muito que suava no verão; um velho criado da casa, viúvo inconsolável, fez-lhe a história circunstanciada da doença de que morrera a mulher, havia dez anos, pedindo a Daniel que a diagnosticasse, e lhe expusesse o tratamento que a devia ter salvo; em contraste com esta medicina retrospectiva, vinha uma rapariga perguntar, muito ingenuamente, se lhe poderia fazer mal ir a uma romaria de aí a oito dias: José das Dornas também quis saber se o caldo de abóbora era melhor para a saúde do que o de nabos. Uma velha interrogou Daniel sobre a doença das galinhas, e o próprio Pedro, tentado por este exemplo, fez algumas perguntas sobre a dos perdigueiros.

Daniel via-se em talas para satisfazer a tantas exigências, que não timbravam de racionais, e procurava deslindar-se airosamente delas com aquele desculpável grau de charlatanismo, mais ou menos correto e disfarçado, que todas as sociedades do mundo, rústicas e urbanas, são as primeiras a exigir aos médicos. Querem elas que se lhes responda sempre, e com desaforada segurança, às suas interrogações absurdas, preferindo serem iludidas, a ficarem sem resposta, a qual muitas vezes, em consciência, medicina alguma do mundo lhes poderia dar.

Peço, portanto, um bill de indenidade para Daniel.