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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 10

Foi por isso que o reitor, ao perceber um dia a inclinação recíproca de Clara e Pedro das Dornas, exultou com a descoberta.

Amigo das duas famílias, e conhecedor da boa índole de Clara e dos sentimentos generosos de Pedro, ele só antevia ventura na projetada união.

Em relação aos dotes, não havia entre os noivos grande desigualdade, e, em vista disso, não era provável que, da parte de José das Dornas, surgissem dificuldades sérias.

Por outro lado, a boa alma do noivo tranqüilizaria o reitor, em relação à sorte de Margarida: ele a saberia estimar como ela merecia. Esta consideração, sobretudo, fazia o contentamento do padre. Daí, aquele conselho dado a Pedro - conselho que encontrou este em muito boas condições de o observar.

Passados dias, procurou o reitor o seu amigo José das Dornas e comunicou-lhe que Pedro estava resolvido a casar, e lhe pedira para servir de embaixador em solicitar o consentimento paterno.

Como tinha conjeturado, o projeto passou sem oposição da parte de José das Dornas, que antes ficou muito contente com a novidade. Somente pediu o adiamento da época dos esponsais, para quando chegasse do Porto, Daniel, que devia, naquele ano, terminar a sua formatura na escola de medicina na cidade invicta.

Clara tinha, antes disso, respondido ao pároco, perguntando-lhe este se aceitava o pedido de Pedro, que desejaria consultar a irmã. Aprovou o Padre esta atenção delicada, e esperou-se pela resposta de Margarida, de quem não havia grandes impedimentos a recear. Estava Margarida a ler, quando Clara foi ter com ela.

Era já então uma simpática figura de mulher a de Margarida. Não se podia dizer um tipo de beleza irrepreensível, mas havia em toda aquela figura um ar de afabilidade e de meiguice tal, que nem avultavam essas pequenas incorreções, só reveladas a um exame minucioso e indiferente; mas a primeira, a grande, a invencível dificuldade era conservar esta precisa indiferença ao vê-la. Os olhos, sobretudo, negros como poucos, sabiam fixar-se com tanta penetração e bondade, que só a contemplá-los, esquecia-se de tudo o mais. Não possuía uma desses tipos fascinantes que atraem as vistas; era fácil até passar por ela, desatendendo-a, mas fitada uma vez, o olhar deixava-a com pena, e a memória conservava-a com amor. A boca tomava-lhe naturalmente uma expressão de triste meditar, entreabrindo-se-lhe, de quando em quando, os lábios por uma dessas mais profundas inspirações que dissimulam um suspiro,

Clara aproximou- se da irmã sem ser pressentida e sentou-se junto dela.

O grupo graciosos, que ambas formavam assim, tentaria qualquer artista que o visse.

A aparência jovial de Clara fazia realçar, pelo contraste, o vulto melancólico de Margarida. Naquela tudo era reflexos de desanuviada alegria interior, nesta difundia-se incessantemente uma dessas meias sombras, como as que produzem as pequenas nuvens brancas que, sem ofuscar inteiramente a luz do sol, lhe mitigam contudo um pouco o resplendor dos raios.

Clara tomou as mãos da irmã, sem romper o silêncio.

- Que tens tu, Clara? - perguntou-lhe Margarida - Não sei que te leio nos olhos. Desconfio que me vais dizer alguma coisa.

- E vou.

- E parece ser de importância, ao que vejo; estás tão séria! - acrescentou Margarida sorrindo.

- É que é deveras sério e muito sério o que te vou dizer.

- Então?

- Querem-me casar.

- Ah!

- E olha, Guida, eu julgo que o meu noivo é um bom rapaz... mas... sempre queria saber o que tu pensas dele, e se merece a tua aprovação.

- A minha!? E também te é precisa, filha?

- É, sim; pudera não. Já o disse ao Senhor Reitor e ele concordou.

- Sois todos muito bons para comigo. Mas que te hei eu de dizer! Que te diz o coração?

- Ora, o coração...

- O coração, sim. Por que não? Quando é bom, como é o teu, deve-se sempre ouvir, e ... quer-me parecer que já o consultaste, antes de mim...

- Falo a verdade. É certo que já.

- E que te disse ele?

- Aconselha-me... que sim.

- Que mais queres?

- Que também me aconselhes.

- O mesmo que o coração, já se sabe.

- Não, senhora, com franqueza, aquilo que pensares.

- E quem é o noivo?

- O Pedro do José das Dornas.

- Ah!... Por certo que é um bom casamento. Conquanto pouco conheça ainda esse rapaz, ouço dizer que é honrado, trabalhador, e ... de mais a mais, está bem.

- Então, aprovas?

- Se te fosse necessária a minha aprovação, dir-te-ia que estimo até muito que se faça esse casamento, e que sejas feliz.

Clara abraçou-a com efusão, e correu a dar parte ao Reitor do resultado da entrevista.

Margarida ficou só.

O que acabara de ouvir da boca da irmã deixava-a pensativa. A idéia de que a vida de Clara em breve se ia associar a de uma pessoa estranha, não podia deixar de lhe fazer sentir graves preocupações pelo destino dela e seu.

Era um problema proposto à solução do futuro, e Deus só sabia como o futuro o teria de resolver. Clara ia entrar na vida de família; ia cedo transformar em amor de esposa e de mãe todos aqueles tesouros de sentimentos que, até então, a ela só confiara, a ela, Margarida, à desvalida da sorte, à órfã e esquecida sempre, e talvez dali em diante, ainda mais esquecida e mais desamparada de afetos! Ao pensar nisso, não podia evitar certas angústias de coração. Era mais uma afeição que lhe roubavam! Pois nem esta lhe pertencia? E depois, como seria considerada pelo marido de Clara? Humilhações, pudera-as suportar de sua madrasta , mas receava não ter já resignação bastante para as receber de mais ninguém.

É certo que o bom nome de Pedro a tranqüilizava; mas quantas decepções sobre os melhores caracteres humanos nos prepara uma íntima convivência com eles? Quantos defeitos ocultos, ignorados do mundo, a vida de família faz evidentes, a ponto de tornar inevitáveis, discórdias, que aos olhos do vulgo nunca se justificam?

A corrente destes pensamentos tomou, porém, de uma maneira gradual, diverso curso. O nome da família de Pedro não era desconhecido para Margarida.

Andava-lhe associada à mais grata recordação da amargurada infância da órfã. Quem em tão pequeno número contava os corações que haviam simpatizado com o seu, que muito era que se recordasse com saudade do pequeno estudante de latim que, de tão longe, vinha sentar-se ao pé dela e falar-lhe com um afeto que até então desconhecera?

Desde que as apreensões do reitor haviam ocasionado a partida de Daniel, nunca mais Margarida lhe falara. Via-o todos os anos, quando ele vinha passar as férias à aldeia, e não podia ocultar a si própria a afetuosa atenção com que ainda então o observava.

Mas, pelos seus novos hábitos de vida, Daniel distanciara-se daquela que conhecera em criança; nem dela talvez se lembrasse já. Margarida pensava agora no caso, que os aproximava assim, e não podia, sem uma vaga inquietação de espírito, ver, no futuro, a possibilidade de uma entrevista com ele.

Os caracteres concentrados como o de Margarida alimentam-se ordinariamente de uma idéia fixa... - quantas vezes de uma ilusão? - que forma o segredo inviolável da sua existência inteira. Abre-lhes ela as portas de um mundo imaginário, para onde se refugiam dos embates do mundo real, que impressionam dolorosamente a sua delicada sensibilidade. Quando os encontramos sós, estes melancólicos devaneadores, acreditemos que lhes povoam a solidão formas invisíveis, criadas à poderosa evocação da sua fantasia; o silêncio em que o virmos cair, dissimula-lhes os misteriosos diálogos na linguagem desconhecida e intraduzível desse fantástico mundo. É uma singular loucura procurar distraí-los, chamando-os à consideração das coisas reais. A mais doce consolação, a mais festiva alegria daquelas almas, é aquilo mesmo que se nos afigura tristeza.

Deixem-nos assim. Não queiram erguer-lhes a fronte que involuntariamente se inclina, não tentem iluminar-lhes com sorrisos a fisionomia, sobre a qual se derrama uma severa gravidade; não se esforcem por lhes tirar dos lábios comprimidos uma palavra qualquer, o fogo da vida, que parece tê-los abandonado, deixou somente a superfície, para mais intenso se lhes concentrar no coração.

Margarida tinha também o seu pensamento secreto que, em momentos assim, acariciava com amor.

Esse pensamento de longe lhe viera; há muito lhe era companheiro. Assim como nas trevas da noite os olhos involuntária e quase irresistivelmente se fixam no mais pequenino ponto luminoso, que lhes surja na obscuridade, assim se voltava o pensamento de Margarida para o último raio, que lhe luzira débil de entre as sombras da existência passada. A cândida afeição de Daniel era esse raio; através das diversas fases da sua vida a acompanhara sempre a imagem dele, modificando-se conforme a natureza dos sonhos em cada uma. Aos vinte e dois anos, que Margarida contava agora, recebera essa imagem toda a vida, de que um coração juvenil anima as suas criações queridas.

De fato, não fora sem comoção de suspeitosa natureza,. que a imagem de Daniel adolescente viera, por mal percebidas gradações, afugentar das reminiscências da boa rapariga e do pequeno Daniel, que ela conhecera outrora; não foi sem íntimas turbações de ânimo que, de envolta com as memórias suaves desse curto passado, a fantasia lhe começou a misturar vagas aspirações para um futuro que, agradavelmente e melancolicamente também, agitava o coração da ingênua cismadora.

Era bem triste, depois de sonhos assim, acordar na amarga realidade do presente desencantado; mas era inevitável. O destino decidira de outra sorte.

- Vamos - dizia Margarida a si mesmo - Que mulher sou eu? Quando precisava de dobrada força para o trabalho, ainda me ponho a pensar... não sei em quê. Pensar!... É um luxo, com que não podem os pobres - acrescentava, sorrindo amargamente - É um prazer de ricos e ociosos. A nós, sai-nos muito caro cada minuto desperdiçado a pensar assim. Clara vai casar - cismava ela depois - É forçoso que me separe dela. Bendito seja Deus, que me inspirou esta divina idéia de viver pelo trabalho; dele só e com ele deve ser agora principalmente o meu viver. É custoso, porque querias devera a esta pobre criança, mas é necessário. Um dia podia causar-lhe involuntariamente mal, se ficasse. Hei de partir.