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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo 3

No dia seguinte deu Daniel a lição de costume, e às cinco horas recebeu ordem de se retirar, - ordem cuja execução, como era natural, não se fez esperar muito.

Ele a voltar costas, e o reitor a pôr o chapéu na cabeça para lhe ir na pista.

A tarefa não era fácil; basta lembrar-mos da agilidade de Daniel, natural à sua idade, e compará-la com os já trôpegos movimentos do velho padre, que, com a pressa que levava, impelia diante de si todas as pedras soltas do caminho.

Foi seguindo direito pelas ruas que o conduziam a casa de José das Dornas e perguntando a quantos conhecidos encontrava, sentados pelas portas ou debruçados nas janelas, se tinham visto passar o pequeno. Por muito tempo foram as respostas afirmativas, o que satisfazia o reitor, pois indicavam-lhe que, até aquele ponto, o rapaz não se havia extraviado, deixando de seguir o caminho de casa.

Chegou, porém, a um largo, onde desembocavam diferentes ruas e azinhagas, e as coisas mudaram então de face.

O reitor continuando a seguir seu sistema de indagações, tomou a direção que devia ser mais prontamente o pequeno Daniel aos lares paternos.

A porta duma casa térrea, que havia na esquina, dobava uma velha, a qual, ao ver aproximar-se o reitor, ergueu-se, com toda a cortesia da cadeira em que estava sentada.

- Muito boas tardes, tia Bernarda. Diga-me, viu passar por aqui o pequenito do José das Dornas?

- Nosso Senhor venha na companhia de Vossa Senhoria. Pois nada, não senhor, Senhor Reitor. O rapazito passava dantes por aqui todas as tardes; mas haverá coisa de quinze dias, ou três semanas, que já o não tenho visto.

O reitor pôs-se a coçar na orelha. O delito começava a fazer-se evidente.

- Esta agora - murmurava ele deveras zangado, e depois acrescentou mais alto: - E eu que me esqueci de lhe dar um recado para o pai! Diacho!

- Se Vossa Senhoria. quer, eu mando lá a minha neta.

- Nada, não; obrigado. A coisa também tem tempo. Fique-se com Deus, tia Bernarda, e agradecido.

- Nanja por isso, meu senhor - E a velha fez reverência.

- Temos história - dizia o reitor, franzindo o sobrolho e tomando por outro dos caminhos que comunicavam com o largo. - Perguntemos aqui - e parou junto dum alpendre rústico, debaixo do qual estava sentado um velho quase paralítico, que procurava nos raios do sol o calor que lhe escasseava nos membros, já regelados pela idade.

- Boas tardes, tio Bonifácio - disse o reitor, elevando a voz e parando defronte dele.

- Senhor Padre Antônio, um criado de V. Rev.ma.

- Sabe me dizer, tio Bonifácio, se o pequeno do José das Dornas passou há pouco tempo por aqui?

O velho, já meio surdo, fez repetir a pergunta em tom mais elevado, e depois dum momento de silêncio, durante a qual pareceu interrogar a memória, já perra e enfraquecida.

- Sim senhor, vi - respondeu, acenando afirmativamente com a cabeça - Vi sim senhor. Passou aqui com os bois, há meia hora.

- Com os bois!... Aí, esse é o Pedro. Falo no pequeno: no Daniel.

- Ah!... nada... esse... ah! sim, sim... um que anda nos estudos?

- Esse mesmo.

- Sim, pelos modos que... agora neste instante passou ele a correr, para o lado dos açudes.

- Obrigado, tio Bonifácio.

- O mafarrico do rapaz que terá para fazer do lado dos açudes? - dizia o padre consigo, tomando a direção indicada. Efetivamente pelo novo caminho que seguia, iam-lhe dando informações de Daniel, acrescentando de mais a mais, que, havia coisa de duas semanas, era ele certo por ali todas as tardes.

O reitor dava-se a perros, para atinar com o motivo de semelhante rodeio.

- Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! Para que virá o rapaz dar esta esquisita volta?

De certo ponto por diante faltaram-lhe as informações, porque o sítio tornava-se quase despovoado.

A tarde ainda estava longe do seu fim; mas umas nevoazitas começavam a levantar-se dos campos e lameiros, e o reitor, que tinha o seu reumático a atender, já ia perdendo grande parte daquele fogo com que encetara a pesquisa.

No meio dum estreito e alagado caminho, que seguia tortuosamente por entre dois campos de centeio, parou e entrou a refletir:

- O rapaz sumiu-se. Para o ir procurar assim à toa e a estas horas do dia não estou eu. Vão lá atrás do homem da capa preta. Quem sabe onde o diabrete foi dar agora consigo? O pai que o procure que tem obrigação disso. O melhor é retirar em boa ordem, antes que venha o frio da noite.

Já se preparava para seguir o prudente conselho, que a si próprio acabava de dar, quando lhe despertou a atenção um assobio agudo e vibrante, cujo timbre lhe era tão conhecido como a toada da cantiga que executava.

- Olá - disse o reitor, parando equilibrado sobre duas alpondras no meio do lamaçal do caminho - Moiro na costa, ou eu me engano muito!

Pôs-se a escutar de novo, e cada vez mais parecia confirmar as suas suspeitas, acabando de se convencer de todo, quando, ao assobiar, sucedeu uma voz infantil, que ele logo reconheceu como a do discípulo, cantando, ainda na mesma toada, que era de uma música popular, as seguintes coplas:

Morena, Morena

De olhos castanhos

Quem te deu, morena,

Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos

Não vi nunca assim

Morena, morena,

Tem pena de mim

Morena, morena,

De olhos rasgados

Teus olhos, morena,

São os meus pecados.

São os meus pecados

Uns olhos assim

Morena, morena,

Tem pena de mim

Morena, morena,

Dos olhos galantes

Teus olhos, morena,

São dois diamantes

São dois diamantes

Olhando-me assim

Morena, morena,

Tem pena de mim.

Morena, morena,

Dos olhos morenos

O olhar desses olhos

Concede-me ao menos

Concede-me ao menos

Não sejas assim

Morena, morena

Tem pena de mim

- Temos o homem - disse o reitor, depois de ouvir a cantiga, e enfiou resoluto pela rua adiante. Mas tendo dado alguns passos mais, parou como se mudasse de tenção. - Nada, não convém que ele me veja. É preciso espiá-lo sem que ele dê por isso.

Feita esta reflexão, passou um rápido exame ao terreno e retrocedeu. Dobrou novamente a esquina da viela em que se introduzira; costeou o campo do lado direito, até se lhe deparar uma cancela rústica, que não lhe opôs a mínima resistência, e oculto pelo centeio, caminhou, o mais prudentemente que pôde, até o lugar correspondente àquele de onde partia a voz e daí por diante até descobrir a caça que procurava. Não levou muito tempo a realizar o seu intento.

Eis a cena que viu o reitor, acocorado ente o centeio, com a bengala fixa no chão, mãos apoiadas na bengala, o queixo apoiado nas mãos.