Almeida Garrett........................Almeida Garrett......

VIAGENS NA MINHA TERRA

Capítulo XXXIX
Processo de cepticismo em que está o Autor. — Moralistas de requiem. — O maior sonho desta vida, a lógica. — Diferença do poeta ao filósofo. — O coração de Horácio. — O Colégio de Santarém. — Jesuítas e templários. — O aliado natural dos reis. — "Ficar na gazeta', frase muito mais exata hoje do que “ficar no tinteiro". — S. Frei Gil e o Doutor Fausto. — De como o A. foi ao túmulo do santo bruxo e o achou vazio. — Quem o roubaria?

O final do capitulo antecedente é, bem o sei, um terrível documento para este processo de cepticismo em que se mandaram meter certos moralistas de requiem de quem tenho a audácia de me rir, deles e da sua querela e do seu processo, protestando não me agravar nem apelar, nem por nenhum modo recorrer da mirifica sentença que suas excelentíssimas hipocrisias se dignarem proferir contra mim.

Feita esta declaração solene, procedamos.

E quanto a ti, leitor benévolo, a quem só desejo dar satisfação, a ti se ainda te cansas com essas quimeras, dou-te de conselho que voltes a página obnóxia, porque essas reflexões do último capitulo são tão des­locadas no meu livro como tudo o mais neste mundo. Dorme pois, e não despertes do belo ideal da tua lógica.

É uma descoberta minha de que estou vaidoso e presumido, esta de ser a lógica e a exação nas coisas da vida muito mais sonho e muito mais ideal do que o mais fantástico sonho e o mais requintado ideal da poesia.

É que os filósofos são muito mais loucos do que os poetas; e de mais a mais, tontos; o que estoutros não são.

Voltemos, voltemos a página com efeito, que é melhor.

Amanheceu hoje um belo dia, puro e sublime. Dorme nas cavernas do padre Éolo aquele vento seco e duro, flagelo dos estios portugueses. Suspira no ar uma viração branda e suave que regenera e dá vida. Mal empregado dia para o passar a ver ruínas! No seio da sempre jovem natureza, sob a remoçada espessura das árvores, sobre a alcatifa sempre renovada das gramas verdes e variegadas boninas, queria eu que me corresse este dia em ócio bem-aventurado de corpo e de alma, sentindo pulsar lento e compassado o coração livre e solto de todo empenho, o verdadeiro coração de Horácio.

Solutus omni foenore!

Tomara-me eu no vale outra vez, com a irmã Francisca a dobar à porta, a nossa Joaninha a deslindar-lhe a meada, e embora venha o terrível espectro de Fr. Dinis projetar sua funesta e trágica sombra no idílio deste quadro suave, que não pode destruir-lhe toda a amenidade bucólica, por mais que faça.

Lá voltaremos ao nosso vale, amigo leitor, e lá concluiremos, como é de razão, a história da menina dos rouxinóis. Por agora almocemos, que é tarde, e terminemos os nossos estudos arqueológicos em Marvila de Santarém.

Cá estamos no Colégio, edifício grandioso, vasto, magnífico, pró­pria habitação da companhia-rei que o mandou construir para educar os infantes seus filhos.

Creio que esta e a de Coimbra eram as duas principais casas que para isto tinham os jesuítas em Portugal.

Foram os templários dos séculos modernos, os jesuítas. A potência formidável e quase régia que aqueles levantaram com a espada, tinham estes fundado com a doutrina. Riqueza, poder, influência, uns e outros as tiveram com aplauso e aquiescência geral; uns e outros as perderam do mesmo modo.

Extintas e perseguidas, ambas as ordens renasceram no mistério, e se converteram em associações secretas para conspirarem; ambas toma­ram diversos nomes e variadas máscaras para o fazerem mais seguramente.

Ambas em vão!

O predomínio, crescente há séculos, do elemento democrático, anula todas essas conspirações. Sós e sem ele, os reis tinham sucumbi­do... É a aliada natural dos reis a democracia.

O edifício do Colégio é todo filipino, já o disse: a igreja dos mais belos espécimes desse estilo, que em geral seco, duro e sem poesia, não deixa contudo de ser grandioso.

Aqui esteve depois muitos anos o seminário patriarcal, cujas aulas freqüentava a mocidade do distrito, Hoje lêem-se ali outras palestras da cátedra administrativa. É a sede do governo civil chamado: corromper a moral do povo, sofismar o sistema representativo é o tema das lições.

Todo outro ensino se tirou de Santarém. Fala-se num liceu e não sei em que mais "que ficou na gazeta": frase portuguesa moderna que deve suprir a antiga e antiquada de — "ficou no tinteiro" — por muitas razões, até porque hoje não fica nada no tinteiro senão o senso comum, tudo o mais de lá sai, tudo. E muitas graças a Deus quando não passa às balas do impressor para dar a volta do mundo! Santarém é das terras de Portugal a melhor situada e qualificada para um grande estabeleci­mento de instrução e de educação pública. Por que não há de estar aqui o Colégio Militar ou a Casa Pia, ou outra grande escola, seja qual for? Por que há de ser esta centralização de ensino em Lisboa? Em que se funda um privilégio dado à capital em prejuízo e à custa das províncias?

Saímos do Colégio, fomos direitos a S.. Domingos, um dos mais antigos estabelecimentos monásticos do reino e que eu tanto desejava visitar. Não sei descrever o que senti quando a enferrujada chave deu a volta na porta da igreja e o velho templo se patenteou aos nossos olhos. Acabara de servir, não imaginam de quê... de palheiro!

A derradeira camada de palha que apodrecera aderia ainda ao la­jedo úmido, e exalava um forte vapor mefítico que nos sufocava. Mal pudemos ver os túmulos dos Docens e tantos outros interessantes mo­numentos que abundam na parte superior do templo. A inferior, ou corpo da igreja como dizem, é de um miserável e moderno anacronis­mo­

Respirando a custo aquele ar infecto, todo o tempo que lhe pu­desse resistir, quis aproveitá-lo em examinar a principal e mais interes­sante relíquia da profanada igreja a capela e jazigo do grande bruxo e grande santo, S. Frei Gil.

Algures lhe chamei já o nosso Doutor Fausto: e é com efeito. Não lhe falta senão o seu Goethe.

Vixere fortes ante Agomemnona multi.

Houve fortes homens antes de Agamemnão, e fortes bruxos antes e depois do Doutor Fausto. Mas sem Homero ou Goethe é que se não chega à reputação e fama que alcançaram aqueles senhores. Nós preci­samos de quem nos cante as admiráveis lutas — ora cômicas, ora tre­mendas — do nosso Frei Gil de Santarém com o diabo. O que eu fiz na Dona Branca é pouco e mal esboçado à pressa. O grande mago lusi­tano não aparece ali senão episodicamente; e é necessário que apareça como protagonista de uma grande ação, pintado em corpo inteiro, na primeira luz, em toda a luz do quadro.

Então o seu ardente e ansiado desejo de saber, os seus vastos es­tudos, os recônditos mistérios da natureza que descobriu até penetrar no mundo invisível — a sede de oiro, de prazer e de poder que o perse­guia e o fez cair nas garras do espírito maligno — o fastio e saciedade que o desencantaram depois, o seu arrependimento enfim, e a regene­ração de sua alma pela penitência, pelai oração e pelo desprezo da vã ciência humana, — então essas variadas fases de uma existência tão extraordinária, tão poética, devem mostrar-se como ainda não foram vistas, porque ainda não olhou para elas ninguém com os olhos de grande moralista e de grande poeta que são precisos para as observar e entender.

Lembra-me que sempre entrevi isto desde pequeno, quando me faziam ler a História de S. Domingos, tão rabugenta e sensabor as ve­zes, apesar do encantado estilo do nosso melhor prosador; e que eu deixava os outros capítulos para ler e reler somente as aventuras do santo feiticeiro que tanto me interessavam,

Com todas estas reminiscências que me reviviam na alma, com os admiráveis versos do Fausto a acudir-me à memória, e com uma infini­dade de associações que essas idéias me traziam, caminhei direito à capela do santo, cheio de alvoroço, e como tocado, para assim dizer, da sua mágica vara de condão.

A capela - ó desapontamento! - a capela de S. Frei Gil é um mesquinho rifacimento moderno, do lado esquerdo da igreja, sem ne­nhum vestígio de antigüidade, nenhum ornato característico, pesada, grosseira, velha sem ser antiga - um verdadeiro non-descriptum de mau gosto e sensaboria. Quem tal dissera?

O túmulo do santo está elevado do altar numa espécie de mau trono. Subi acima da degradada e profanada credência para o examinar de perto.

É de pedra o jazigo; mas ultimamente vê-se que tinham pintado a pedra; não tem lavor algum. — E estava vazio, a loisa levantada e quebrada!...

Quem me roubou o meu santo?

Quem foi o anátema que se atreveu a tal sacrilégio?...