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:::::::::::::::::::::::::Marcelo Lachat::::::::::::
Montando o quebra-cabeça

É meu pai este homem, esse homem que monta o quebra-cabeça. A desgraça recaiu sobre ele numa tarde (é sempre à tarde que sobra espaço) lá depois daquele dia, e agora desperdiça peça ante peça. Como descrevê-lo se estou a 3000 peças de distância? Não sei se seus olhos são verdes ou azuis - suas mãos são grandes - nem sei se usa bigode, mas no desenho da caixa há verde e azul e também uma montanha. A cada movimento das mãos, o encaixe é procurado nos pequenos espaços da incerteza de achar ali o lá antes daquele dia. E os dias seguem roendo os anos, sem nenhuma fruta para ser mastigada; apenas um copo que é levado lentamente até a boca (não sei se há bigode) e seu líquido transparente queima opaco. Entre a dificuldade da cena e a persistência do homem vai se refazendo a imagem do tempo perdido à beira de um abismo; abismo ou montanha, cercados de árvores e riachos, mas sem frutos ou animais. Distante, é meu pai que bebe e constrói, que permanece procurando quando não acha o lugar adequado de uma peça. Cabeça baixa, mesa marrom e um silêncio agudo - a desgraça deixou-o assim, montando a figura esquecida. As possibilidades são muitas e as horas limam os dias e esculpem a imagem; é tudo uma questão de encaixe, das mãos e das peças, reencontrando por acaso. Só resta aguardar que a mesa se torne quadro e meu pai, pintor sem mãos. Ainda assim, há esperança enquanto houver morte. Pois desde aquele dia ele conheceu o fim: desceu a ladeira e se deparou com a menininha dizendo séria que era Deus e insistindo que na imagem do espelho estava a origem das coisas; refletidos, ele era a mulher-atriz e ela, a adolescente, sua filha, de mãos dadas sobre o abismo; era o brinquedo do mundo que se lhe oferecia sem solução. Foi isso o que ele me contou antes do quebra-cabeça. Agora seu rosto é pedaço de escultura antiga encontrada em partes sobre o tabuleiro.

Mas o jogo não acaba, embora meu pai já conheça o fim; se as peças certas preencherem os espaços adequados, a montanha surgirá e os riachos passarão a correr em volta dela, como antes, umedecendo as raízes das árvores sem frutos, como antes, sem cantos de pássaros, como antes, sem esperar que a vida se complete na mais completa imperfeição. Cada espaço, perfeito, tem sua peça, que somente existe para seu espaço naquele preciso momento da descoberta do encaixe; não mais que o tempo de um nariz comprido, que talvez carregue uns óculos, se curvar para farejar a figura na mesa. Este é meu pai, sentado na cadeira, apoiado numa das mãos e mexendo nas peças com a outra; se a dificuldade aumenta, ele se levanta e busca na parede branca o desfecho do enigma.

Sou seu espelho que, incapaz de refletir, refrata a imagem perdida, como uma explosão de luz muito acima da montanha ou muito abaixo do abismo. Sou incapaz de ouvi-lo, ainda que ele dissesse algo, pois o cala meu noturno Chopin, como uma incompreensão de sons muito além de sentidos, mesmo aquele do quebra-cabeça. E o que resta é peça ante peça, desperdiçada ou não; por isso há sobriedade neste desmontar o desfeito até que se desate algo da mesa - um buraco se abre, ao lado do copo, e logo surge altiva uma árvore. Porém, é nos riachos que se esquece a dor, no alto da montanha que se perde o medo e no plano que se amontoam as peças. Precisamente no amontoar-se das peças, esperando sempre o artífice, está a beleza do desenho, informe sob os poucos cabelos; talvez seja o cansaço do homem ao se deparar com a inútil máquina do mundo, desmontada por mãos de criança - ángel fieramente humano sem setas. Apenas a criança dorme debaixo da água, coberta de penas de patos selvagens abatidos por arqueiros do exército de Sebastião.

Não há patos no quebra-cabeça e a criança se escondeu no abismo depois do fim da ladeira. Lá antes daquele dia eu nasci, mas não podia falar, porque minha língua ainda não era de fogo roubado; vivi mudo até o quebra-cabeça, até meu pai se calar; desde então, canto cegamente e ouço a música dos famintos, sussurrada por uma miscelânea de pessoas. Assim é que foi que o palco se armou com coro e cortina, e sem tragédia para ser encenada. A máscara de meu pai são os óculos (agora posso ver: ele usa óculos) que escondem a cor de seus olhos; sua boca é pequena e sobre ela não há bigode, somente uns duros fiapos que se misturam com a penugem do comprido nariz. Tarefa heróica para um homem, inábil deus ex machina, é construir seu teatro; montar, peça por peça, é trabalho árduo, mesmo para mãos grandes; por isso meu pai sua e bebe - numa confusão de cristais, os riachos correm e já umedecem as raízes das árvores, mas ainda distantes da montanha. Saber que há fim é o que reanima a esperança; no entreato, a angústia adolesce; só no cimo da montanha é que o remate se desnovela para refazer do novelo renovada mortalha. A ordem está nos fios de cabelo caídos; nos raros que resistem, prevalece o desalinho.

Com cuidado, movem-se as peças para que escapem do redemoinho infernal e se alinhem em novo Parnaso, onde se prediz o passado inscrito nas tripas dos patos - não há patos, apenas suas tripas; e o conhecido se mostra em meio ao sangue, que se confunde com o óleo derramado pelos fragmentos da máquina do mundo. Os pedaços parecem ser todos iguais e seus encaixes tão diferentes, tudo se unindo para calar o abismo ou espicaçar a montanha; mudo ou instigado, é o sentido que aguarda a solução, inútil que seja, temporária ou fingida, que resolva o problema da luz débil da sala em que meu pai monta o quebra-cabeça. No quase-breu me perco à procura da desordem do semicaos e temo que a vela, já fraca, se apague; porém, logo ao meu lado, está o interruptor; agora é o medo que se perde na busca surda de um canto meio sombrio. No alto da montanha não existe medo; lá, ele se dissipa no vento e queima no sol; aqui, sopra frouxo e ferve opaco, mesmo perto da janela ou debaixo da lâmpada. É lá que tudo falta sentido, como no tempo remoto de então, embalado pelo silêncio do noturno Chopin tocado no cravo colhido com a ponta dos dedos. São coisas construídas que brotam do chão, como esta casa com janelas e lâmpadas; mas as coisas construídas se desfazem com os anos e a imagem flutua no plano; é lógico, portanto, ter medo do vento das janelas e da luz das lâmpadas; ainda mais lógico, portanto, é observar, em segredo, o corpo da deusa nua boiando no líquido do copo; ilógico apenas é não montar.

Nada é mais belo do que a figura da caixa, nada é mais belo do que meu pai sem mãos. Eu só descrevo o que não vi no espelho. A desgraça é comum e recai sobre todos, todos que viram a imagem no espelho, fim único que permanece sempre, e que silencia qualquer outro som. Não me calo porque não vejo que roupa descobre meu pai, muito menos a cor dos olhos; vejo que é função deste homem montar, encargo de pedras muito mais leves que penas de patos. Questão de escolha ou de sorte, enfim, é a mesma diversa desgraça pesando sob uns muitos poucos eleitos. Arrumar a bagunça é uma necessidade de reorganizar o nunca feito, como o pastor que conta seu rebanho de grifos; antes, são as coisas que assim se fazem a despeito da ordem e em respeito à posterior prefiguração. Cada peça deixa sua marca na memória do sentido encaixado; cada passo dado poupa areia da ampulheta; e meu pai ergue a montanha no tempo perdido; sua cabeça se esconde entre as orelhas, paredes com buracos em que minha voz se desperdiça. As peças foram lançadas e alguém tem que juntá-las, sendo o desenho da caixa modelo esquecido na descida do abismo ou buscado na subida da montanha, o que dá no mesmo desencontro de mãos - esperança de arremate.

Enquanto espero, corto o mato das minhas pernas à procura da relva desfeita pelo ruído da chuva lá fora. Aqui é sempre à tarde, e a luz não basta para preencher os espaços nem falta para engolir a mesa; noturno é só meu Chopin, que contrasta com as paredes brancas, ainda mais brancas à tarde. Antes fosse noite e o problema das mãos estaria resolvido, como num sonho acordado, tão nítido como a tarde indecisa, tão precisa como o sono inventado pelo vento desperto. O animal só pode ser morto para ser comido, a culpa é o resto; isso se aprende numa boa caçada. Peça ante peça, os dentes, embora gastos, enchem a boca, que sopra cinzas. O copo se esvazia aos poucos, pois o homem não tem pressa - bebe e constrói; e a base da montanha, subindo em direção ao abismo, toma o plano, cheio de árvores, riachos e relva. Subir é cansativo e animador, calmo, como a caminhada dos aposentados, retiro com objetivo sem fim ou do fim à esperança. Meu pai conheceu o limite da ladeira, por isso agora escala as peças e tenta ignorar o segredo da menininha à tarde, que nem revela nem esconde o que não se vê em espelho e o que não se escuta em Chopin. O dedo toca a peça que desliza sobre a mesa, num ato sereno de cobrir espaço e de montar o drama, aguardando que a trama se arremate com as tesouras cegas das Parcas. Exausto e tranqüilo, o homem insiste, sem pressa, no trabalho altivo, quase desumano trabalho de balistas na guerra. A desnecessidade disso tudo é o que deixa tudo isso tão perfeito e preciso, como a beleza inútil da atriz com máscara, ainda mais bela quando o lençol a cobre e a luz se apaga, ou como o filho na barriga da adolescente nua que chora diante do espelho. E a harmonia disso tudo está na folha solta que voa na rua. Na sala, só a imagem, incompleta, paira na mesa; o copo, praticamente vazio, é conduzido, mais uma vez, até a boca; no adensar-se da barba, o tempo se conta no número de pêlos. Os espaços são inacessíveis às peças; eles subsistem, elas preenchem, e a montanha está na metade do caminho da mesa.

As pás do ventilador giram sobre a cabeça e, em volta dos pés, giram círculos concêntricos. Meu pai faz movimentos circulares com as peças até que encontrem o repouso do encaixe, para descanso das mãos, que logo voltam a trabalhar em nova roda sem fortuna; assim, vai se erguendo a montanha e é apenas montando que a roda não pára. A imagem prometida está a poucas peças de distância; mesmo um homem como este, agita-se um pouco com a proximidade do fim, enquanto descem, aos poucos, as parcas cortinas da janela. O frio na barriga adolescente é razoável neste momento de expectativa, até para meu pai, que constrói constante há tantos pêlos. Em mim se funde o gelo, nas minhas mãos pequenas, que nunca caçaram patos nem antes nem depois daquele dia; durante, não vivo, somente descrevo o que não vi; o que vejo é um homem, cujos olhos não têm cor, cujos olhos são dois abismos, protegidos por espelhos que não refletem coisa alguma, alguém que não se vê face a face. Só é possível se encarar com a voz, embora ressoe instrumento alheio. Meu pai sua e seca o copo, onde o líquido agora é eco, repercutindo os sentidos que o ventilador destrói. Quieto, ele monta o quebra-cabeça. Peça ante peça, cresce a montanha e a imagem plana, mas ainda falta o desfecho. A falta que se sente do que nunca foi possuído é melhor que a presença do que sempre foi desejado; pior é a ausência de sentido, verdadeiro mal almejável.

A cortina grossa vela a mulher na cama; se a mulher não estiver ali, então o desejo se prolongará. Já meu pai se revela nos pêlos da barba e tenta construir o sentido completo, verdadeiro bem detestável, objetivo único após a desgraça. Eticamente, a moral é desperdício de peças e a verdade, encaixes bem-sucedidos. Antes de agora, houve uma mulher que gerou um filho - barriga redonda, giro do mundo; a partir daí, a desgraça rolou ladeira abaixo e montanha acima. Esse filho dorme imerso numa cama de penas que balançam leves enquanto o peito se esvazia e os patos voam; a mãe se maquia ante o espelho com o óleo derramado pela máquina. Assim escorregam os dias.

Olho para meu pai e vejo que sua barba cresceu, mas não o bastante para ser barbante seguro no labirinto. Depois de agora, haverá a asa negra do pato imóvel girando sobre todo o construído; o vento desarranjará as peças em infinitas possibilidades; e a figura será fuligem. Porém, noto que a imagem está quase completa - este homem é muito forte, suas mãos são enormes, sua dedicação é incansável e sua esperança, ilimitada. Ele pára; talvez para apreciar o trabalho, como quem sobe na pedra para vislumbrar a recém-cortada grama do jardim. Meu pai parece querer escalar a montanha, embora ainda faltem algumas pedras. Orgulho igual, só mesmo o daquela mulher ao gerar seu filho, comovida com a imagem brotada de seu próprio corpo.

Montar quebra-cabeça é ofício desumano, trabalho divino de criança cega. Mas talvez pare para não terminar, pois os espaços estarão repletos e continuarão vazios, as peças estarão unidas e continuarão isoladas, a figura estará completa e continuará fragmentada, pois à tarde sempre sobra espaço, não sobeja nem falta luz, não dá coragem nem medo (os dois se perdem em busca surda de claro-escuro), é sempre à tarde que não se vê nada direito, que não há verdade ou segredo, que o dia já foi e a noite não chega.

O homem retoma a montagem, sem copo, seu suor é o único líquido. Nada mais pode distraí-lo. Sentido único, preencher a mesa, aprofundar os olhos, construir a imagem. Peça ante peça, relva, riachos, árvores, quase-montanha. Então, acabam as peças e ainda não vejo a cor dos olhos. Sem desespero, falta uma peça no alto da montanha. A procura é cega e o abismo na mesa eloqüente. Meu pai não se mexe, eu não me mexo; nossa ausência de movimento é o sentido ileso, é o castelo do conde Westwest que desaba intocável. Ninguém desmonta nada; o homem poderia construir a peça perdida, mas a imagem jamais ficaria igual ao desenho na caixa. A caixa se fecha e o abismo aberto reflete a imagem no espelho, absorve a figura na mesa. Não me calo, pois só aprendi a narrar a desgraça, foi meu pai que me ensinou ao se emudecer.

É fim de tarde - a tarde não acaba nunca; o quebra-cabeça se encerrou, incompleto, perfeito guia na floresta alheia que nenhum homem desbravou, onde a mulher gerou sua filha já grávida diante do espelho. Descerra-se a cortina para que não entre a luz nem fique escuro, para que nada aconteça e seja visto, para que a atriz represente coberta sobre a cama. Teatro mundo, atriz menina, personagem Deus. Minha voz não chega ao enredo, som ante som se perde surda, se reencontra muda, se satisfaz no eco. Meu pai é enigma, eu sou irresolução.

As pás do ventilador aceleram cada vez mais seu giro e nós não nos movemos cada vez mais lentos; também sob meus pés giram círculos concêntricos. A mulher está nua e inacessível debaixo do lençol, vespertina deusa sem roupa. Eu estou coberto, ainda que não faça frio neste fim de tarde; meu pai se descobre. Este homem percebeu que os pêlos o acobertam do sentido negado ao menino imerso na lagoa dos patos, mas os pêlos caem e os patos restam; as penas voam sobre a lagoa e o corpo afunda. A mesa é abismo que recobre a imagem, é buraco que suga os fios de cabelo. O fogo queima lá embaixo, lá está todo o conhecido, no fogão que aquece o pato assado, despenado por mãos seguras. Aqui, apenas sinto o cheiro que repercute branco, como o barulho do trovão que sinaliza a chuva lá na altura das nuvens cinzas. Dentro, tudo desconheço que ocorre durante e, aqui, não vivo, somente vejo e descrevo que é meu pai este homem sob o ventilador que gira, cujos olhos perdi a cor, esse homem que coloca a cadeira sobre a mesa, que sobe e senta, sozinho, com as mãos abandonadas entre as pernas e que olha, sem óculos, para a parede branca, esperando que o corpo se cubra de peças.

 
Marcelo Lachat é um brasileiro nascido em 1981, na cidade de Campinas, onde reside até hoje. Formou-se em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puccamp) e em Letras na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, faz mestrado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Além de teoria e crítica literárias, gosta também de escrever suas próprias ficções.