NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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Híbridos pós-humanos:
A inteligência artificial implantada nos humanos como corpos expandidos
João Baptista Winck

3- O ser tripartido: a inteligência multiplicadora do natural em artificial

Enquanto que nas outras espécies vivas, até onde se pode deduzir, a natureza genética (concreta) e a natureza cultural (abstrata) têm hábitos semelhantes, pois são tendentes ao imutável, susceptíveis apenas às contingências, na espécie humana algo de mais complexo ocorre, que nos coloca para além do topo da cadeia alimentar. Em nossa natureza cultural o acaso é um hábito que tende ao autocontrato. Diferente das outras espécies vivas, o ser humano é autofágico porque é um eterno mutante dos seus próprios hábitos alimentares. Além de onívoro, nos alimentamos de idéias provindas do semelhante e do entorno. Nos alimentamos de narrativas.

Enquanto que em nossa natureza biológica as alterações são raras, a translação da nossa herança simbólica é irreversivelmente susceptível as variações de grandeza e beleza promovidas pela contingência. Em nós o processamento da informação cultural abstrata é transformado em autoconsciência e, por outro lado, fica armazenado e disponibilizado no que se poderia chamar de inconsciente coletivo. Na inteligência biológica a geração espontânea é determinada pelo acaso bruto. Na natureza cultural a autogênese é induzida pela sutileza da volição do autocontrole da reprodução de idéias e pensamentos, consubstanciada em objetos manufaturados com este propósito. A cultura é, simultaneamente, projeto, processo e produto dela mesma.

A transmissão da inteligência, até onde se consegue compreender, é constituída de três grandezas informacionais. A primeira é a "contingência", a qual nos coloca à deriva no desenho do mundo como produto portador e signatário de herança; a segunda é a "reprodutibilidade", que acelera o processo de crescimento e a multiplicação das informações herdadas como desígnio. A terceira grandeza é a "tradição", conjunto informacional de manutenção da herança, que padece do rigor da falha, da incompletude e do mistério, na interface com as duas primeiras grandezas, como design ou projeto social de inter-relação.

É o equilíbrio entre o projeto, o processo e o produto, enquanto grandezas, que abona a perpetuação da espécie e do planeta. Entrementes, a reprodutibilidade informacional na natureza tende ao fracasso, pois o corpo biológico, ao se auto-reproduzir, perde a originalidade, envelhece e desaparece nas sucessivas gerações de mesclas e interfaces porvir. O que assegura a aparente estabilidade da reprodutibilidade orgânica é a tendência à alteração de hábitos. Eles se alteram somente quando a contingência intervém, causando mutação biológica ou falha genética. As características do indivíduo são mantidas na espécie, garantindo a tradição biológica. O particular é preservado apenas no geral. O indivíduo particular padece do fracasso enquanto que o indivíduo genérico permanece vivo na próxima geração. O eu desaparece entre nós.

Na reprodutibilidade cultural, ao contrário da reprodução biológica da inteligência, as regras são flexíveis, os hábitos voláteis, as mudanças são provocadas por estratégias artificiais em parte controladas e as circunstâncias decorrentes são produto da volição, da decisão e do consenso. O eu está sobre nós.

Na cultura, ao contrário da biologia, o banco de dados é armazenado numa tripla hélice. Na cultura, à reprodutibilidade genética são agregados os valores abstratos da vontade, da decidibilidade, do consenso como somatória de individualidades. À cultura somam-se as dimensões da intuição, da dúvida, e das certezas. Diferente da genética, a cultura é capaz de promover novas estratégias de auto-reprodução, incorporar antigas estratégias a novas táticas de persuasão e implantá-las no indivíduo porvir. A hélice do abstrato é incorporada às hélices do físico e do ficcional.

A esta capacidade da inteligência abstrata de multiplicar-se dentro e fora dos cérebros futuros chamamos de inteligência artificial, cuja natureza é estratégica como projeto, social como processo e tecnológica como produto, isto é, a lógica aplicada à ética de reprodução induzida e assistida de um hábito não natural.

Aqui cabe uma hipótese: a grandeza informacional da reprodutibilidade, quando se trata da inteligência artificial, se multiplica por meio de três outras grandezas: a física, a ficcional e a factual. O campo da inteligência física está ligado à presença material, à existência concreta, à reatividade, à interação da matéria inteligente herdada em convívio. Este campo está em perpétuo estado de miscigenação biológica e cultural. É o campo do idioma natal, dos hábitos alimentares, das estratégias de sobrevivência e convívio apreendidas por herança cultural; dos sentimentos e sensações em relação à presença do outro, adquiridos por contágio... Refere-se à existência daquilo que nos envolve e nos limita ao repertório cultural de partida.

O campo da inteligência ficcional está ligado à noção de complexidade para além do sensível, do sensório. Está conectado à volição possível, ao potencial lógico de decidir sobre a transformação de uma idéia num fato ou não. Na interação com a inteligência física, a inteligência ficcional é o campo de possibilidades de ação e reação para além do repertório promovido pelos cinco sentidos. É o campo tradutório em perpetuo estado de ampliação e distensão, que soma mais uma informação ao conjunto de saberes e práticas. Enquanto a inteligência física está ligada ao real, a inteligência ficcional está ligada ao imaginário, ao delírio, ao sonho, à contingência de somar duas idéias vindas de fora e originar uma terceira, provinda de dentro. A inteligência física trata da aquisição de repertório. A inteligência ficcional trata da multiplicação da informação num dado repertório.

O campo da inteligência factual está vinculado à tradição cultural herdada em sociedade. Enquanto a inteligência física está em nós como fato, a inteligência ficcional está (ou não) como possível fato. A inteligência factual é implantada em nós como balizas, margens ou tapumes que nos coloca em movimento dentro do vetor da cultura. A inteligência factual é o conjunto de regras, estratégias e equipamentos lógicos que subjazem ao pensamento organizado. Está no campo do inconsciente coletivo enquanto banco de dados de todos e de nenhum em particular, simultaneamente. Delimita e direciona o idealizar, o delirar e raciocinar numa dada configuração ao mesmo tempo fixa e volátil. É o conjunto mutante de crenças, portador da tradição dos modos e meios de se articular a inteligência artificial numa dada sociedade em perene interação com todo e mais um: o outro.

Numa metáfora da terminologia computacional, a grandeza física da inteligência diz respeito ao hardware, a grandeza ficcional refere-se ao software e a grandeza factual vincula-se às matemáticas, isto é, ao conjunto de conhecimentos abstratos que animam os conceitos da informática.

A grandeza informacional da tradição também se pode subdividir em outras três: a unidade, a diversidade e a generalidade. A unidade é o campo do indivíduo como produto. A diversidade refere-se ao processo coletivo da construção das individualidades e a generalidade diz respeito ao campo do projeto de relações que formata unidade. Amalgamadas na origem, a unidade, a diversidade e a generalidade atuam de forma desigual, porém combinadas no sincrônico da inteligência artificial. O indivíduo se conecta ao social quando é posto à deriva no mundo, por meio do autocontrato. Amplia seu repertório por meio da volição e ordena o pensamento por meio da autofagia, alimentando-se do outro que há em nós e na rede informacional que nos engolfa e formata.

A grandeza física diz respeito ao planear o indivíduo como produto; a grande ficcional refere-se ao processo de urdir a multiplicação do mesmo no diverso. A grandeza factual é o projeto que articula a igualdade na diversidade.

A inteligência, assim, seria como uma fina película ou membrana que nos torna humanos, um esqueleto abstrato, aparelho ou étimo que nos aparta do reino animal visando nos informar nos entrechos da cultura.

A manipulação dos processos de autogênese da informação e a interação coletiva à distância por meio do simbólico têm sido possíveis desde o instante da separação definitiva, no ser humano, entre a natureza biológica e a natureza cultural das inteligências na mente humana. Somos cindidos na origem em duas partes distintas e intercambiantes.

Uma segunda natureza - a natureza artificial - desenvolveu-se sobre o planeta criando uma camada de objetos manipulados diretamente a partir do progressivo acúmulo da compreensão da suas estruturas físicas, ficcionais e factuais.

Uma classe de objetos novos, rigorosamente naturais, porém mutantes, criados a partir de sua representação totalmente idealizada pela mente humana vêm recamando o globo, intervindo no ecossistema , alterando a natureza, ao sabor das demandas, sempre crescentes, da precária gnose da inteligência artificial em perpétuo estado de autogênese, autocontrato e fagocitose simbólica.

Por fim, uma terceira natureza - a narrativa - desenvolveu-se sobre a crosta de objetos artificiais fazendo misturar realidade e imaginação ao enredo da história das civilizações, as culturas, as etnias, os credos, os mitos, as opiniões, do pretérito, do devir, dos sentimentos e dos desejos maquínicos.

Meio animais e meio humanos, a inteligência artificial nos fez trans-gênero! Nos tornamos, ao longo da passagem no planeta, criaturas híbridas capazes de interagir com a informação, nos transladando, à deriva, de um pensamento ao outro, hora como sujeitos, hora como objetos da imagem de sujeito que idealizamos para si, para o diverso e para o ulterior. Evoluímos de bípedes para trípedes.

Tradição e novidade são complexidades de um trinômio que inclui o artifício estratégico como terceiro fator que acelera e valora o estar humano, desenhando a lógica do design de relações.

O pensamento sistemático contemporâneo vem constatando que a vida inteligente, seja a biológica, seja a cultural, ecoa no sincrônico, no multidimensional, no ocasional fortuito, no destemperado, no dobrar e desdobrar contingente do mesmo - a energia codificada - que reverbera na polifonia da biodiversidade como inteligência artificial ou a mescla fértil entre os seres, as linguagens, as coisas e o inteiramente outro na mente humana como design de relações.

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