NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


powered by FreeFind

.

NATUREZA E ARTIFÍCIO NA HISTÓRIA DA ARTE E DA LITERATURA:
A POESIA DE LUIS DE GÓNGORA

Rodrigo Petronio

...

REVERSIBILIDADE INTEMPESTIVA
.

Se o caráter convencional, genérico e performativo de um discurso poético é valorizado, temos aqui uma refutação de sua exterioridade como terminus ad quo de seu percurso de sentido, seja ela cultural, social, étnica, geográfica, psicológica, contextual, econômica, e toda uma longa lista de adjacências. O que não quer dizer que não possamos nos reportar a elementos constitutivos do tempo em que esse discurso foi produzido, mas apenas que não veremos entre o efeito retórico gerado e o elemento agenciado no interior desse efeito uma continuidade de mão única e uma complementaridade inequívoca. Se quero estudar a poesia dos trobadours provençais, dificilmente conseguirei fazê-lo sem recorrer à práticas amorosas, de corte e de guerra que se descortinam em seus poemas. Diferente, porém, é, para tanto, conceber uma realidade de amor, corte e guerra anterior à construção poética, e que pudesse ser facilmente deduzida dela. Se a arte é, em primeiro lugar e acima de tudo, um mecanismo ilusionista e uma máquina de gêneros, posso muito bem, junto à comunidade de leitores e estudiosos à qual pertenço, me deixar iludir por isso, crendo que o que capto nos poemas é o mais puro e cândido real. Ainda assim estaremos girando no âmbito das convenções, se não do passado, do presente, e, se já não pertencemos a uma liga de poetas-soldados, com armadura e tudo, somos integrantes de um grupo de estudiosos situados no interior de uma abstração chamada comunidade acadêmica, e que também não deixa de ser, nos dias de hoje e a seu modo, guerreira. Entender que a ilusão precede e molda a minha crença pia de que o século XII era de fato assim, entender que a política é anterior ao ser, para usar uma inversão estratégica de Deleuze, se não chega a constituir um método, é, no mínimo, uma atitude prudente. Isso não quer dizer que abolimos a história, mas sim que lhe devolvemos à sua complexidade de origem, inscrita em filigranas. Por mais convencional que seja uma forma poética tanto mais histórica ela é, porque gerada dentro do complexo de forças em que foi produzida sem, contudo, referir nenhuma delas como uma hipotética realidade extrínseca, senão quando o conjunto de leitores reconhece tal realidade como convenção e verossimilhança, nunca como fato e realidade objetiva. Nesse sentido são sábias as palavras de Alcir Pécora, ao dizer que o discurso historiográfico negou a transparência da linguagem e nela projetou a opacidade das coisas, tidas como razão última dos enunciados (1). Assim, fomos paulatinamente educados a reconhecer nas obras literárias uma série de valores que não são concernentes à sua performance, que seria a sua natureza e função elementares.

Este trabalho pretende ser, portanto, em primeiro lugar, uma crítica imanente da produção do texto poético e de seus valores, bem como a sua inserção dentro de uma tradição poética. Derivados dessa primeira etapa, que nos vacina contra a leitura positiva do construto artificioso da poesia, podemos muito bem recorrer a aspectos políticos, metafísicos, culturais, econômicos, históricos, biográficos. Com a diferença fundamental de que, ao fazê-lo, estaremos afirmando-os pela sua negativa e assim nos imunizando. Não se trata de um novo nominalismo, por mais que os críticos queiram em vão perpetrar esse anátema. A palavra aqui não é vista como partícipe da razão essencial que conforma as coisas como signos indicativos da presença sobrenatural de Deus no mundo, ambos, signos e coisas, passíveis de serem lidos e decodificados, e a sua transparência não reside em sua incapacidade de predicar aquilo que lhe transcenda, recolhendo-se assim ao silêncio de sua origem. Estamos diante de uma redução de seu caráter substantivo à transitividade de seus efeitos de sentido. A linguagem não quer mais descrever um estado de coisas mundano, mas sim produzir uma condição de realidade e, podemos dizer, gerar o real, esgotando-se tão logo se esgote sua performance. Entretanto, por mais rica e pertinente, acredito, porém, que há um ingrediente a mais, necessário a essa perspectiva. Mais do que uma crítica ao barroco, cabe-nos dar o golpe de misericórdia em toda e qualquer positividade, verdadeiro cancro do pensamento. Mais do que uma crítica ao anacronismo que toda a positividade produz, cabe também criticar a neutralidade da recepção que legitima essa leitura crônica e se propõe como grau zero de leitura dos textos e de escritura da história, pois essa ambição, embora não se pretenda, também é interessada política e ideologicamente. Além do quê, a produção do anacronismo talvez não seja o maior perigo que possa ter uma leitura. Para um filólogo mais exigente os gregos de Nietzsche são um completo disparate; o próprio Nietzsche deveria saber disso na sua condição de filólogo. Mas é essa construção dos gregos que lhe possibilitará atingir objetivos mais importantes para ele do que a adequação arqueológica, a saber, a possibilidade de dinamitar a metafísica de extração platônica e destruir os três inimigos de sua vida, nomeadamente o cristianismo, a modernidade e a democracia. Por seu turno, se as figurações nascem do e no tempo, mas não se radicam no seu solo histórico como documento, e sim se alimentam de um vasto horizonte temporal anterior, como imitação, e posterior, como conjectura e prospecção, o seu domínio é o da virtualidade e da potência, mais do que das atualizações e dos atos. Relendo Luis de Góngora, somos partícipes dessa invenção, e não podemos obliterar esse fluxo de sentido sem comprometer a própria historicidade da obra que pretendemos iluminar. Por outro lado, a leitura de Góngora no século XXI reformula a nossa percepção em seu todo, o que afeta também o teor de associações e o tipo de discurso histórico que possamos urdir sobre as coisas findas e acabadas. Assim, egresso da virtualidade histórica, como homem concretamente situado, mas sempre nela presente como autor de uma obra que lança seus domínios além da circunferência onde nasceu, como a luz da lua transcende a clareira pelo concurso da qual ela se permite ser reconhecida, é impossível ler o passado sem se imiscuir nele e sem nos transformar, transformando-o. Ao alterar o presente, o próprio passado se altera e, ao fim, nos altera, pois se ele nos constitui como somos, é em função do nosso auto-reconhecimento nele que viremos a ser o que queremos. Somos produtos de um duplo movimento, e a reversibilidade entre o que é manifesto no passado e as suas zonas de silêncio que preenchemos trá-lo de novo sem esgotar o que ele poderia ter sido, senão naquela pequena parte que dele retemos e na qual mergulhamos, glosando-o no limite do nosso provável e do seu possível. Não por outro motivo, Heidegger classifica a importância de um filósofo, não tanto pelo que sua obra diz e enuncia, mas sim pelo que ela deixou indicado, sinalizado, sugerido ou até mesmo silenciado. Essas zonas em branco também são partes de seu pensamento. Aliás, poder-se-ia dizer com algum exagero, que são o seu pensamento, já que é para elas que o manifesto todo o tempo nos remete, como se subentendesse nelas a matéria-prima volátil que o anima.

Quando nos embrenhamos no devir das formas, nós também estamos implicados nele. Se a poesia do Homero espanhol revive a dos gregos e latinos, ao lê-lo, lemos todos eles em uma outra chave, e compomos, no presente, para usar os felizes conceitos de Gilles Deleuze, um evento poético e uma singularidade que congrega, em um único acorde, todos esses tempos. Aqui se faz premente invocar outro conceito que Deleuze colheu em Nietzsche: o intempestivo. Trata-se daquela zona do pensamento que não se projeta nem como eterno nem como histórico, que renega o duo de alternativas temporal e intemporal, histórico e eterno, particular e universal, porque acredita que esta polaridade é fruto de uma visão essencialista, aguilhoada às masmorras do pensamento metafísico, e considera o intempestivo como mais profundo que o tempo e a eternidade, pois perfaz o desenho de um pêndulo em constante oscilação entre as margens postuladas. É a configuração de um espaço ideal, campo de indeterminações e lapsos propícios ao pensamento, a contaminação e a reversibilidade de diversos produtos e agentes e, dessa forma, de diversos tempos e quadrantes, unidos em contigüidade, já que perderam o caule essencial que os elegia como corpos incomunicáveis e como entes que remetiam apenas e tão-só à origem essencial que lhes projetava e conformava. Não há início, termo, fim, origem, centro, propriedade ou meta nesse itinerário, já que sua razão de ser é um desmanchar contínuo de toda a centralidade e o transbordamento de todo o limite previamente deduzido pelas visões descritivas, bem como uma crítica a todo pensamento calcado na representação. Pressupor que há um eixo de gravitação para a crítica é imaginar que há um fim e um começo para a literatura. Para lembrar Borges, a literatura talvez seja esse tecido infinito, e os autores, apenas pontos que a retrabalham em seu anonimato essencial para além deles próprios e, mais, em detrimento deles próprios. Estaríamos aqui não mais no conceito de história, de poesia, de passado, de presente, de fato, de ficção, de realidade, de autoria, de criação e tantos outros que servem apenas para dar uma coerência didática ao sopro transcendental que os anima, mas sim no domínio da escritura, para falar com Roland Barthes: recolocada a transparência da linguagem e do pensamento em seus lugares, resta vivê-los em sua potência e em sua virtualidade, não recalcá-los em sua adequação, fidelidade ou justeza conceituais.

Se não é essencial a exatidão, o é saber o que a ação deste discurso histórico produz no presente. Lezama Lima escreveu em algum lugar que a claridade é um valor burguês. No entanto, o projeto de uma história triunfante e o conteúdo escatológico e soteriológico presente nessa concepção evolutiva têm servido de alimento ao ideário hegemônico, tanto da esquerda, com vindicações de burocracias de Estado e atestados claros de fisiologismo partidário, quanto da direita, com a otimização dos recursos materiais em função de uma pureza biológica futura e da religião da técnica, ambas entorpecidas pelo demônio da teleologia e do finalismo causal. Não por acaso o sociólogo francês Jacques Rancière chegou a conjeturar uma distopia onde o projeto progressista, advindo do iluminismo e do idealismo alemão, encontraria sua concretização cabal: uma cidade que funcionasse diuturnamente, sem nenhum tipo de interrupção, onde se trabalhasse dia e noite, e na qual não houvesse um instante sequer de descanso ou sono. A encarnação física e concreta dessa ideologia ilustrada seria evidente, com luzes fluorescentes que nunca se apagassem, iluminando a gestação do mundo futuro, sem um ínfimo espaço ao sonho, ao devaneio, às sombras, ao breu, à privacidade, à sexualidade, à morte, à doença, à decrepitude, à passagem do tempo, e toda essa série de coisas menores e contraproducentes. Se o sonho da razão produz monstros, como bem definiu Goya, a sua insônia também os produz, talvez até em maior escala e mais perigosos. Porém, tendo em vista essas questões impertinentes e em se tratando de um estudo de um autor do século XVII, para sermos, também nós, objetivos e técnicos, como nosso tempo nos quer, cabe interromper a divagação aqui. Entrementes, para falar com Gilles Deleuze e Jacques Derrida, como potência, a reaparição fenomênica de dom Luis em um discurso produzido hoje não é um retorno da identidade sob o signo da semelhança e da equivocidade do ser, que foi durante tantos séculos o coração da metafísica e a origem de nossa inexorável fraqueza e anulação diante de Deus e também de toda a ética do ressentimento, segundo Nietzsche, mas sim da diferença e da vontade de poder, que estrangula a metafísica e se inscreve no mundo como escritura, singularidade, rizoma, assinatura, contrafacção e refutação da estupidez de uma vida regrada pela funcionalidade, o cálculo, as superfícies, a transitividade, a rapidez, a higiene, a impessoalidade, a clareza, a assepsia, a eficácia, a volatilidade e a horizontalidade, em seu nível prático, e pela ditadura do ramerrão dialético de intelectuais consuetudinários que, sob o pretexto inopinado de serem espíritos críticos, fazem sim é endossar o ideal de progresso indefinido e de iluminação, entronizado na nova ordem político-econômica mundial. Gerard Lebrun, com a lucidez necessária, já revolveu e trouxe à tona a sujeira camuflada sob esse discurso triunfalista, sujeira que a exaltação cega da dialética tratou de varrer para os subterrâneos da história (2), e a única coisa que me caberia fazer nesse caso é aconselhar a sua leitura ou releitura a quem melhor conviesse, ou seja, àqueles intelectuais que, em seu conjunto, cumprem hoje a vaidade, o proselitismo, a inveja, o parasitismo, a pusilanimidade, a demagogia, a falsidade, a dissimulação e toda uma lista imensa de adjetivos, outrora glosados e refutados pelas Soledades , com fito de, por meio da invenção engenhosa da Idade de Ouro, repor os valores e vilipendiar o vício.

Levando-se em consideração esses aspectos, um dos objetivos deste trabalho, por fim, é a destruição sumária de toda e qualquer possibilidade de teleologia, conduzida a marteladas ao limite de seus próprios paroxismos. Contra a seta de tempo em direção ao futuro, que, sob o pretexto do progresso, já legitimou tantas ideologias obscurantistas, e contra a espiral providencialista que repropõe a Identidade divina sob a lógica das recorrências e das semelhanças, o império da Diferença em si mesma, entendida como emanação da univocidade do ser, pura imanência e descontinuidade, no interior da qual o processo de diferenciação se movimenta à superfície dos fenômenos, como o Uno de Plotino, o Ser de Parmênides, a estidade ( haecitas ) de William de Ockhan ou o eterno retorno de Nietzsche galgam sua especificidade história junto à luz, rebeldes a qualquer tipo de domesticação e avessos a quaisquer regimes de identidade prévios. Para tanto, será bastante útil para esse fim obras como Diferença e Repetição e Lógica do Sentido , de Gilles Deleuze, obras estas que já contam entre as pedras-de-toque da filosofia do século XX. Não se trata de mero preciosismo terminológico. Pois com base na teleologia têm se operado as maiores falsificações da história, subsumida a leituras evolucionistas e a concepções excludentes das obras, tidas como objetos que necessariamente têm que representar as abstrações, penumbristas e sem qualquer valor empírico, da positividade histórica à qual estão circunscritas, positividade esta, diga-se, curiosamente ditada e premeditada pela própria crítica, que, produzindo deformações conceituais de várias modalidades, pretende criar um ideal absoluto de modernidade sob a tirania de um conceito dos mais frágeis e discutíveis: o contemporâneo. Aqui, seria frutífero perguntarmos aos ilustres companheiros e cara-pálidas: contemporâneo de quem, de quê e em relação a quais critérios? Não é preciso lembrar os traços de irmandade que unem esse afunilamento da história, gerador de um mecanismo perigoso de exclusão artística, além de inúmeros e irreparáveis equívocos interpretativos, aos arcabouços teóricos e ideológicos da história dos estilos e de sua visão dialético-material, geralmente de extração hegeliana. Se há um renascimento, um maneirismo, um barroco, um rococó, um neoclassicismo, um romantismo, um simbolismo e um modernismo, sustentados como totalidades transparentes e cristalinas, é natural e inquestionável que vivamos, hoje, a contemporaneidade, ou o pós-modernismo, como querem alguns, não só homogênea e empiricamente verificável como sendo algo auto-evidente, como passível de ter suas produções criteriosamente discriminadas e valoradas a partir desse apriorismo crítico. Por esses e outros motivos, a reversibilidade se cumpre no ponto de partida e de chegada dessas estórias de Luis de Góngora y Argote, e o findo e distante Siglo de Oro ocupa, aqui e agora, função idêntica à da ilha desconhecida, onde o nosso pobre peregrino foi arrojado e, felizmente, encontrou paz, em meio à simplicidade rústica dos serranos que o acolheram, com colo igual ao do candor primeiro da humanidade, que não se encontra mais nas cortes. Sua reaparição é fruto da alteridade, e, mais, da radicalização do mergulho no Outro e de um deslocamento de toda a centralidade, portanto, ambos os momentos, os nossos pontos de partida e de chegada, são iguais, não mais na semelhança, mas na Diferença que os produz, o que é uma inversão absoluta dos vetores e, com ela, de seus respectivos sentidos. Esse acontecimento, essa intersecção, só acha seu prumo numa conjunção dos tempos históricos que lhe sejam afins. Parte-se assim do pressuposto de que um acontecimento não é um acréscimo, mas uma limitação: sugere à inteligência as infinitas maneiras pelas quais ele poderia ter se dado além da única maneira pela qual ele efetivamente se deu. O espaço do não-ser é um oceano onde o ser está ilhado. Cada coisa que é pode funcionar como índice desse horizonte transcendental que lhe arrebata o próprio domínio e lhe arroja para fora da órbita de sua própria autonomia e de sua verdade.

 
(1) PÉCORA, Alcir. "À Guisa de Manifesto" in Máquina de Gêneros . São Paulo, Edusp, 2001, pág. 3 a 15.

(2) LEBRUN, Gerard. O Avesso da Dialética - Hegel à luz de Nietzsche . São Paulo, Companhia das Letras, 1989 .

.