NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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NATUREZA E ARTIFÍCIO NA HISTÓRIA DA ARTE E DA LITERATURA:
A POESIA DE LUIS DE GÓNGORA

Rodrigo Petronio

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A ESTRUTURA AUSENTE
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Não sem a sua acidez peculiar, Gilles Deleuze diz, em algum lugar que não me recordo, que já passamos muito tempo criando conceitos, e já estaria na hora de começar a desmanchá-los. Talvez essa ainda seja a atitude mais interessante nos dias de hoje em relação às obras do espírito: uma negatividade que desmonte de cima a baixo todas as falsas convicções com as quais deliberadamente ainda nos entretemos.

Felizmente de tempos para cá tem surgido um movimento interessante de reformulação da hermenêutica poética e artística, agora calcada na análise do caráter artificial das obras e em uma arqueologia de sua constituição retórica, cuja tônica é remontar aos critérios epocais a partir dos quais elas foram concebidas e desvelar a articulação mútua existente entre artes distintas e naturezas diversas de artifícios, sobretudo entre a poesia e a pintura.

Um dos pioneiros nesses estudos foi o norte-americano Rensselaer W. Lee, com seu trabalho intitulado Ut Pictura Poesis: The Humanistic Theory of Painting, de 1967 (www. noteaccess.com/Texts/Lee/index.htm) , mas logo essa corrente ganhou desdobramentos em diversos países e vem se sedimentando, sobretudo no Brasil, associada à interpretação da obra de outros teóricos e historiadores, como Roger Chartier, Michel Foucault, Chaim Perelman, Norbert Elias e Frances Yates, entre muitos outros. Nessa visada, abre-se um campo de estudos fértil em direção a novas abordagens da retórica e da poética antigas, a partir da análise do discurso e dos tratados sobre argumentação. Cria-se o nexo entre a tradição de representação oficial e práticas tidas como heterodoxas ou oficiosas, como é o caso da magia, da alquimia, da tradição hermética e das escolas místicas, e começam a ser percebidas coisas evidentes que a historiografia sempre reputou como de segunda ordem. Exemplo: a importância dos códigos sociais e da etiqueta para a formação do sujeito, da sociedade e dos valores artísticos nas sociedades de corte dos séculos XVI ao XVIII, conjunto este que forma todo o ideal de civilidade, conceito-chave que está no âmago de todos os discursos ideológicos produzidos em âmbito político pelos Estados nacionais então emergentes e consecutivamente rebatido na literatura.

Graças ao trabalho de intelectuais de língua portuguesa como Leon Kossovitch, Angélica Chiapetta, Abel Barros Baptista, Ivan Teixeira, Alcir Pécora, João Adolfo Hansen, Marcos Martinho dos Santos, Adma Fadul Muhana, Luiz Costa Lima, entre tantos outros, que não cito por exigüidade de espaço nesse ponto, passou-se a averiguar esse aspecto central em toda a história da arte mundial, e, no entanto, relegado a um segundo plano pela tradição intelectual brasileira por questões ideológicas ou apenas por conveniência: a mimese. Grosso modo, ao recolocar essa questão, esses intelectuais retomaram o debate justamente onde ele silenciava em pontos delicados como os levantados por textos como o de Ceninni, que permaneciam um problema teórico mesmo para críticos de envergadura, embora de formação positivista, como Erwin Panofsky. Em verdade, ela não diz respeito somente ao século XV, mas a toda a tradição de figuração, seja ocidental ou não, na medida em que tenta propor esquemas não-naturalistas e não-positivos de pensar as formas, e, assim, desloca toda o centro de gravitação da tradição crítica para paragens não sondadas e horizontes inexplorados. Só nesse caminho poderemos ampliar a visada da arte no Brasil e transcender a visão provinciana que ainda vige, rumo a uma perspectiva milenar de compreensão da função, do sentido e do valor das formas.

Boa parte do rastro pegajoso de subjetivismo e de naturalismo, ou seja, da crença de que a arte é a expressão essencialista da psicologia de um sujeito monolítico e a representação de uma natureza, externa a esse mesmo sujeito, já vinha sendo varrida por tendências críticas do século XX. Em parte essa revisão se deu por meio dos formalistas e dos estruturalistas, mas, tudo bem meditado, e postos na mesa prós e contras, é forçoso pensar que esses teóricos com suas teorias prestaram mais um desserviço à literatura do que realmente abriram a inteligência à sua compreensão profunda. Afinal, é muito fácil devassar o sentido do nosso objeto de estudo reduzindo-o à condição de um arranjo floral de significantes, de funções poéticas, de sintagmas e paradigmas, de efeitos e pirotecnias superficiais de linguagem, como deve ser fácil a um médico diagnosticar um esqueleto. Da mesma maneira, é também bastante fácil reconhecer uma estrutura subjacente a um enunciado ou ver como vogais e consoantes se revezam na sua composição rítmica e semântica, mas para isso deixar de ser um exercício escolar, interessa saber o que vamos fazer dela depois. De fato, os nomes que contribuíram efetivamente para a erradicação desses vestígios psicologistas e naturalistas, erradicação ainda em curso no Brasil, foram Hugo Friedrich, René Wellek e Austin Warren, ao começar a propor a liberdade da poesia frente à representação da realidade, a desvincular a ordem da linguagem da ordem das coisas, e proclamar, assim, a autonomia formal do texto. Nesse influxo entra o new criticism , cujo mentor e teorizador mais famoso é T. S. Eliot, e o seu famoso close reading , a leitura fechada que valoriza os elementos eminentemente literários e formais das obras literárias, o que pode em um primeiro momento parecer um truísmo, mas que foi um passo decisivo para se restituir à literatura a sua dignidade alienada. Esses estudos tiveram repercussão e sucessão, e atualmente há outros estudiosos. Em outras chaves entram alguns filósofos, como Clement Rosset, na França, com seu clássico Antinatureza , onde traça uma espécie de história geral do conceito de artifício e localiza as possíveis filosofias naturalistas e artificialistas, segundo a construção destas duas categorias operada no âmbito de seu arcabouço conceitual. A inspiração à desnaturalização dos conceitos de Rosset é declaradamente bebida em Nietzsche, como ele mesmo diz. Em linha semelhante de valorização dos artifícios e do ut pictura poesis vai o historiador italiano Mário Praz, com seu já clássico Literatura e Artes Visuais . Outras vertentes, de grande interesse também, são os estudos da new filology inglesa, as correntes de historiografia renovada e os desdobramentos do perspectivismo lingüístico de Leo Spitzer, na Alemanha, cuja tônica tem servido de maneira muito fértil a intelectuais brasileiros como Maria Augusta da Costa Vieira, notadamente na análise da polifonia semântica do Dom Quixote . Há uma interessantíssima vertente hermenêutica de cunho filosófico, que encontra em nomes como Paul de Man, com sua investigação de base desconstrutivista, e em Paul Ricoeur, entre tantos outros, os seus paladinos, e em intelectuais brasileiros como Benedito Nunes, algumas de suas mais felizes concretizações. Além de críticos de primeira plana, cada qual a seu modo, como Edmund Wilson, Northorp Frye, George Steiner e o altíssimo espírito de Isaiah Berlin. Por seu turno, o caminho amplo aberto por Erich Auerbach nos estudos literários com obras pioneiras como Mimesis e Figura , e, junto com ele, pelos grandes filólogos do século XX, como Ernest Robert Curtius, Werner Jaeger e Walter Otto, parecem não ter recebido a devida atenção e não ter sido devidamente incorporados às letras brasileiras. E, para completar, feitas raras exceções, nunca tivemos uma tradição de poetas-críticos. E isso pode ser verificado no que ocorre também com o atalho, tão instigante quanto muitas vezes heterodoxo, trilhado por alguns nomes como Pound, Eliot, Calvino, Valéry, Baudelaire, Ungaretti, Auden, Bonnefoy, Yeats, Borges e, em primeiro lugar e acima de tudo, Lezama Lima e Octavio Paz, dos quais este trabalho, dentro de suas limitações de natureza vária, pretende seguir as pegadas e os quais, junto com nomes como Martin Heidegger e Henri Bergson, lhe servirão de guia, bússola e exemplo.

Mesmo a semiótica de Charles Sanders Peirce, que tem lampejos muito proveitosos para um estudo da forma, não frutificou, a não ser como subproduto deturpado e deformado pelas mãos e mentes inábeis dos poetas concretos paulistas, servindo-lhes de mecanismo teórico propício à sua autofagia autotélica e à sua sistemática e descarada falsificação da história, lida em função de seus próprios umbigos, exercício no qual eles se mostraram imbatíveis, e que só contribuiu para polarizar o debate, em posições sectárias de todos os espectros e quadrantes possíveis, desde a dimensão poética à política e ideológica. Afinal de contas, o Brasil é um país tão patriarcal e retrógrado que até suas vanguardas são fisiológicas e comadriais, e não deverá surpreender a ninguém encontrar em seu discurso, por baixo da maquiagem da radicalidade, rastros evidentes de neotomismo, o mesmo que outrora endossou tantas fornalhas inquisitoriais. No entanto, eles não têm o privilégio da exceção. Esses descaminhos da história intelectual e política brasileira não são tão pontuais e muito menos recentes. São uma herança secular, de extração ibérica. Portanto, não me estendo em analisá-los aqui. Tentarei fazê-lo no momento oportuno deste trabalho, quando forem tratadas as questões ligadas à teoria política do século XVII. Mas há que se ter em mente que, também devido a isso, todos esses estudos valiosos que arrolei acima ainda são escassos na nossa vida cultural, e os modelos de abordagem do passado, no que concerne à literatura, ainda continuam bastante convencionais, ou seja, em sua grande maioria decalcados em sistemas filosóficos do século XIX, diluídos em forma de manuais didáticos, demonstrando um continuísmo pouco recomendável às obras do pensamento. Frise-se mais uma vez: isso não desmerece o edifício intelectual que muitos homens importantíssimos têm erigido sob esses critérios. O problema é que, por esse caminho, com o passar do tempo, os horizontes mais se afunilam do que se expandem.

No que diz respeito à obra de Luis de Góngora, desde cedo percebi que o maior entrave à sua compreensão satisfatória se dava por causa da intromissão de alguma positividade. Quer referido pejorativamente como obscuro, em oposição a um suposto e universalmente aceito claro, como hermético, em oposição a um suposto compreensivo, como elitista, em oposição a uma suposta flexibilidade social, como excêntrico, em oposição a um suposto centro, e até como revolucionário, em oposição a uma suposta manutenção da ideologia dominante, manutenção esta que encontramos, pelo contrário, em toda sua obra. No fundo, essa gama de paradigmas, de saída pouco convincentes, ainda que se queiram universais dificilmente conseguem camuflar a sua ascendência política e ideológica ou seus comprometimentos estéticos e teóricos. Afinal, não é preciso muita inteligência para perceber que todo universal é um particular universalizado. E a lógica dessas construções não pára aqui. Dessa positividade de origem nascem outras: o maneirismo, como corrente adjacente e marginal dentro da estrutura hegemônica da Coroa e da política imperial, como sugeriu Arnold Hauser, em oposição ao barroco, entendido como força motriz e reguladora do sistema, centrado nas prescrições da Contra-Reforma, e o hermetismo como indício irreprochável dos impasses políticos da estrutura hierárquica da aristocracia e como embrião da sua ruína ulterior, consumada com a Revolução Francesa e a decaptação de Maximilien Robespierre , como quer John Beverley. Dentro dessas noções, é difícil entender como autores tão diversos como Góngora, Cervantes, Bossuet, Vieira, Shakespeare, Milton e Lope, por exemplo, ou, nas artes ditas plásticas, como um Bernini, um Borromini, um Caravaggio, um Velázquez e um Nicolas Poussin podem compartilhar tranqüilamente um mesmo teto. Isso para não entrar no campo da filosofia e da teoria política, onde podemos enquadrar como barrocos tanto partícipes da segunda escolástica, como Francisco Suárez e Roberto Bellarmino, quanto Thomas Hobbes, tanto espíritos complexos de síntese como Atanasius Kircher quanto filósofos que praticamente efetivam a ruptura com o sistema de idéias do Antigo Regime, como Descartes e Pascal. Nesse sentido, as superestruturas podem se auto-explicar no nível macroscópico, mas sempre à custa do prejuízo das partes e das obras empiricamente situadas, o que não me parece um dano pequeno, suscetível de ser simplesmente ignorado.

Nesse mesmo diapasão, mesmo conceitos como conceptismo e cultismo parecem frágeis. Se a dialética dos ornamentos retóricos, entendidos sob o prisma aristotélico, é a tônica de toda a produção letrada e artística do século XVII, e estilo culto supõe sempre o estilo peregrino, com palavras vindas direto do grego e do latim, bem como imitação do que de melhor produziram gregos e latinos, é difícil seccionar essas correntes, já que se trata de modos de produção poética presentes em toda a representação dessa época. Fazem parte de uma série de prescrições poéticas e retóricas cujo eixo é, em última instância, a doutrina da agudeza, operada no nível do conceito engenhoso ou do vocábulo peregrino e discreto. Não correspondem a instâncias psicológicas de indivíduos pontualmente localizados, não são frutos de uma angústia gerada pelo conflito espiritual oriundo da cisão religiosa levada a termo por Lutero e Calvino e, o que é muito pior, não corroboram o advento da dualidade, romântica e depois moderna, do formalismo (funcional) em contraposição a uma arte de conteúdos (subjetivos), que eclodirão muito mais tarde e serão teorizadas nessa chave com base na descrição do signo lingüístico efetuada por Ferdinand Saussure em suas aulas na universidade de Genebra e na teoria produzida pelos formalistas do Círculo Lingüístico de Praga. Entretanto, destes deslizes passa-se a outros, respeitantes à circunscrição dessas tendências ditas barrocas dentro de um plano mais geral da história da arte ou, em último caso, como positivações trans-históricas identificáveis em qualquer período da humanidade, em uma alternância sucessiva e em espiral, como quiseram Gustav René Hocke e Eugenio D'Ors, entre outros. Obviamente, deixamos aqui a dimensão da análise e passamos a incursionar pelo terreno perigoso das apropriações, que são mais usos políticos de determinados resíduos históricos do que iluminações que pretendam aguçar a percepção e a inteligência dos leitores. Olhando para a amplitude e complexidade de questionamentos suscitados pela filosofia no século XX, e para tal radicalização de investidura, é inexplicável por quê a história da arte continua subsumida a arcabouços teóricos historicistas, positivos, evolucionistas, materialistas e idealistas. E no centro desse trabalho historiográfico vai se sedimentando uma questão que se tornará nuclear para a história da arte, e que envolve uma discussão das mais delicadas: o cânone. E cabe aqui tecer uma digressão relativamente longa.

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