NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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O NATURAL E O CULTURAL
ENTRE OS SABERES E OS FAZERES (3)

 

Maria Joana Christina Krom
Ana Luísa Janeira
Alexandra Soveral Dias
Mª Helena Novais
Mariana Valente

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'Fazer especial' - A construção da realidade

Seja ele 'primitivo', 'inculto', 'não instruído' ou seja ele 'civilizado', 'culto' e 'intelectual', o homem sente uma necessidade compulsiva de classificar o mundo em seu redor . De notar que nomear e classificar são formas de apropriação conceptual e portanto instrumentos de domínio sobre o que é nomeado, classificado e ordenado. A classificação expressa-se na ordenação e nomeação de objectos circundantes dum lado, e através da categorização de elementos pertencentes a àreas divergentes doutro lado, assim estabelecendo entre eles correlações analógicas, simbólicas e metafóricas.

No princípio do século XX os sociólogos franceses Georges Durkheim e Marcel Mauss levaram a cabo estudos sobre os índios norte-americanos e os aborígenes australianos, notando que ambos organizam o mundo em categorias muito variadas de clãs, animais, plantas, fenómenos naturais e artefactos.

Cerca de sessenta anos depois, o antropólogo Claude Lévi-Strauss analizou o mecanismo 'estruturalista' subjacente a estas correlações defendendo que as mesmas eram só aparentemente aleatórias e que se baseavam num conhecimento profundo e muito pormenorizado das características físicas das plantas e dos animais. Este saber, a que deu o nome 'ciência do concreto' (4), vem acompanhado por um repertório imponente de palavras e conceitos para a classificação de fenómenos naturais.

No seu livro A Oleira Ciumenta discute as correlações simbólicas nas culturas dos índios norte- e sul-americanos. Nos seus mitos de origem, os mesmos estabelecem uma ligação entre a descoberta do barro (no princípio um material 'informe' utilizado na olaria - uma das artes do fogo), os cipós (também matéria informe de natureza vegetal), os corpos celestes da Lua e do Sol, duas espécies de aves: (o Noitibó e o Forneiro) e ainda outros fenómenos naturais como por exemplo os trovões.

Mas, ainda: '"não é só em comunidades não-ocidentais e longínquas que encontramos este tipo de classificações, também na sociedade ocidental existia (e possivelmente ainda existe) a tendência de tratar categorias sociais como espécies naturais e de estabelecer homologias entre dois sistemas diferentes" (5).

A obra clássica da etnologia portuguesa, compilada em 1885 por Teófilo Braga, O Povo Português, fornece-nos inúmeros exemplos do pensamento 'mágico', que se traduz, utilizando as palavras do autor, em 'superstições populares' relacionadas com o culto lunar, as festas cíclicas, à volta do fenómeno solar (Festa de S. João) ou da Primavera (As Maias) e a utilização de objectos 'mágicos' em forma de amuletos trazidos à volta do pescoço para contrariar o mau olhado, tais como os signos-saimões, as figas, as bolsas com objectos ou relíquias de pedra de ara, entre outros (5).

E quem pensa que estas são coisas do passado pode desenganar-se, pois ainda hoje se encontram muito facilmente, no Alentejo, os ervanários, os benzedores (ambos muitas vezes mais solicitados do que o médico da família), e as práticas agrícolas ligadas ao ciclo lunar, indicadas num conhecido boletim chamado 'Borda d'Água' cujo repertório se reclama de 'útil para toda a gente (.) contendo todos os dados astronómicos e religiosos e muitas indicações úteis de interesse geral' (7).

Também os artefactos da cultura 'popular', tais como os da arte pastoril, espelham no seu imaginário esse pensamento mágico, misturando um saber profundo do meio natural, uma interpretação de fénomenos naturais e uma reflexão sobre a condição humana.

A esta prática de destacar certos objectos ou acções e projectá-los para fora do quotidiano, chama a autora americana Ellen Dissanayake, 'fazer especial' (8). Um conceito muito útil que permite englobar todas aquelas práticas da cultura popular que se situam algures entre 'magia' e 'ciência', entre o 'natural' e o 'cultural'.

Voltando à dicotomia entre o natural e o cultural, vale a pena reparar que, na filosofia da ilustração, a noção do indivíduo não instruído ainda não tinha a conotação negativa e perjorativa que se lhe foi associando no contexto da visão evolucionista no século dezanove e princípio do século vinte. Essa conotação - que associa o indivíduo não instruído, inculto, a um estado mental inferior, em oposição ao indivíduo formado e culto, - persiste de certa forma até aos nossos dias, no contraste de estatuto entre a cultura popular e a cultura erudita.

Cite-se de novo Lévi-Strauss, que defende não ser o pensamento mágico um princípio, um rudimento, um esboço, uma parte dum todo que ainda não se materializou. [...] Em vez de pôr magia e ciência em oposição, seria melhor entendê-los como dois modos paralelos de aqcuisição de conhecimento (9).

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