NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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O NATURAL E O CULTURAL
ENTRE OS SABERES E OS FAZERES (2)

 

Maria Joana Christina Krom
Ana Luísa Janeira
Alexandra Soveral Dias
Mª Helena Novais
Mariana Valente

 
O 'cultural' e o 'natural' como categorias mentais

A evolução do Homem, como nós o entendemos, ter-se-á iniciado há aproximadamente 4 milhões de anos, quando surgiram os Australopithecines, - os primeiros primatas bípedes. O facto destes primatas se apoiarem unicamente nos membros inferiores, constituiu um marco evolutivo muito significativo libertando as mãos para a execução de várias actividades, tais como o transporte das crias e a aplicação de objectos naturais (pedras e ramos) na procura de alimentos, tais como nozes e insectos. Provavelmente estas actividades demonstram que os Australopithecines já conheciam uma forma de cooperação social.

Só há cerca de 40 000 anos atrás apareceu o nosso verdadeiro antepassado: o Homo sapiens sapiens. Quando o gelo começou a recuar, estes primeiros homens dispersaram-se, potenciando, pela primeira vez na história, o confronto com uma vasta gama de ambientes naturais aos quais começaram a adaptar-se conformemente. Esta separação geográfica e a adaptação a circunstâncias locais particulares está na base da variação física, ainda hoje visível nas pessoas de todos os cantos do mundo, no Homem actual. Podemos dizer que no momento em que nos transformámos, algures durante o Paleolítico, de caçadores-colectores em agricultores, a nossa relação com a natureza em geral e com o meio ambiente em particular se alterou. Actualmente todo o nosso ambiente 'natural' envolvente é ditado (ordenado/informado) pelo contexto cultural que integramos. Desde o tipo de produtos alimentares à sua preparação, do vestuário à habitação e à forma como lidamos e comunicamos com os outros e nos relacionamos com as plantas, os animais e a paisagem. Esta preponderância da cultura na nossa vida, leva Denys Cuche a dizer que "o homem é na sua essência um ser cultural". Ou ainda: "Até as funções humanas que correspondem a necessidades fisiológicas, tais como fome, sono, sexualidade, etc. são condicionadas pela nossa cultura. Diferenciamo-nos nas respostas culturais que encontrámos para elas" (3).

Mas poderemos realmente afirmar que o nosso comportamento, nas áreas em que não existe uma imposição biológica óbvia, como por exemplo na arte, na ciência ou na literatura, é dirigido unicamente pelos códigos culturais, como pretende Cuche? Com efeito, as nossas ideias e noções acerca do 'natural' são de tal maneira influenciadas e coloridas pelo meio, moldado cultural e tecnologicamente, que consideramos como 'não-natural' tudo o que não corresponde ao nosso repertório cultural. O 'natural' tornou-se um estado (ser estando) mental, desconexado de qualquer condição biológica. Um exemplo é a criança que vive na cidade, rodeada de natureza totalmente domesticada: árvores plantadas, não na relva mas em buracos no alcatrão, cães e gatos que nunca saem à rua e animais 'selvagens' no zoo que passam a sua vida atrás de grades. Aquela criança já não é capaz de estabelecer uma ligação entre o animal real e vivo, e a carne disfarçada pela embalagem que a mãe compra no supermercado. A vaca, enquanto categoria natural alimentar, não figura no seu repertório mental.  

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O natural está nos olhos de quem vê
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Os nossos óculos culturais predispõem-nos igualmente para a interpretação da 'naturalidade' nos outros, como se pode ilustrar com o exemplo da tribo dos Kwaio das ilhas Solomon em Melanesia.

As aldeias dos Kwaio, que se situam em clareiras numa paisagem florestal, à primeira vista parecem ser um conjunto de estruturas primitivas, organizadas aleatoriamente, e feitas de materiais naturais, sem recurso à tecnologia moderna. Para nós, pessoas de fora, os Kwaio aparentemente são seres humanos 'primitivos' que vivem num meio completamente 'natural'.

Na realidade, o enquadramento espacial das suas povoações reflecte o complexo sistema cosmológico e social dos Kwaio, que consideram os corpos das mulheres e as suas funções corporais como altamente poluidoras, sendo a menstruação e o parto as mais poluidoras de todas. Por essa razão, todos os rituais dos Kwaio prendem-se com a separação do sagrado e do poluído. É por essa razão que a povoação está dividida numa área masculina e sagrada, proibida às mulheres, e uma área feminina e poluída, proibida aos homens. As mulheres passam o tempo da sua menstruação numa cabana especial que fica na sua zona.

O espaço que divide a área feminina e a área masculina é a área doméstica acessível a ambos os sexos onde as actividades quotidianas como comer, falar e dormir têm lugar.

Mais perto de nós, na nossa própria cultura ocidental, encontramos exemplos semelhantes, e igualmente improváveis, relativos à conceptualização do natural, neste caso o fenómeno menstrual. Muitas são efectivamente as crenças que proíbem às mulheres menstruadas a execução de certas tarefas domésticas, como sejam, por exemplo a preparação de carnes ou queijos, a cozedura de bolos, etc.

A interpretação de fenómenos naturais e o consequente medo do sobrenatural, tanto nas pessoas do campo como nos citadinos, traduz-se frequentemente por uma ordenação de ordem cosmológica na qual o sagrado e o profano se misturam. As forças míticas têm de ser apaziguadas através de rituais sacrificiais que podem incluir objectos, pessoas, animais ou plantas. Neste sentido, a missa católica com a distribuição da hóstia e do vinho, símbolo do corpo e do sangue do Cristo, aos crentes, por um padre, é tanto um ritual como o sacrifício do taro e do coco pelos Kwaio numa tentativa de assegurar a vontade do seu deus ou deuses.

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