NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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A doxa naturalista
a literatura e o suicídio

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (UNL-DCC)
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Naturalismo vs Culturalismo
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Nos sistemas explicativos mais grandiosos encontra-se apesar de tudo a finitude e a contingência do nosso olhar sobre o mundo marcado pela obrigação de pensar a plurivalência da novidade em termos de oposições bi-polares. É-nos de certo modo imposto pensar uma redução, uma simplificação, sem o que correríamos o risco de confundir os níveis de abstracção e as ordens de realidade. Será justo dizer que "Em breve a 'natureza' não será mais do que uma reserva, um 'parque nacional' no interior da civilização"? (1).

O binómio naturalismo vs "culturalismo" resume, em boa parte, duas concepções antagónicas: uma concepção naturalista da vida que opõe essências e leis naturais à livre e livremente estipulada decisão da sociedade; uma visão que se entrega aos dados naturais assumidos como norma, à liberdade dos indivíduos em diálogo com as suas respectivas comunidades. Se a natureza é a norma, não é difícil que antes ou depois se considerem naturalmente válidos, no fundo providenciais, os limites próprios de cada um: o sexo, a raça, a capacidade de vencer na luta pela existência.

Numa época em que as máquinas estão a ceder ao simbólico, quais são as hipóteses do artista para produzir simbólico? Se há algo que não deveria nunca automatizar-se é a arte. Para o romance canónico, a natureza é um neutro, escreve Maria Gabriela Llansol (2). Assim parece: a literatura e a natureza não contam a mesma história. Se o passo é esse, por efeito da técnica, será o suicídio da arte. Numa entrevista a H. Bersini, diz este a dado passo: "Creio que estamos perante um perigo enorme para o artista, porque estamos em vias de o suicidar". A ética weiningeriana é tão radical que só admite dois extremos: ou o individuo vence as suas limitações e se torna génio, atingindo a felicidade da contemplação mística, ou ele se deixa dominar por estas limitações e permanece medíocre, caindo numa infelicidade que o leva ao suicídio (3). Tornar-se génio ou matar-se, eis o dilema imposto por Weininger, que, vencido pela lógica desta ética, a si mesmo se mata com 23 anos de idade.

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O suicidio
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O homem do século XIX enfrenta a vida e compõe-se com ela como força de carbono. O suicídio faz parte dos modos de existência ou estilos de vida. Há um modelo do suicídio que nos vem do campo da medicina e que é dominante no século XX - o suicídio como doença. Involuntário, resulta de factores sobre os quais não temos controlo. Estratégia de comunicação (Edwin Shneidman e Norman Farberow): chamada de socorro. Modelo sociogénico: Durkheim (1897): produto de forças sociais. Inclinação colectiva. Como a prática indú do suttee, a imolação voluntária das viúvas: altruísta, anómico, egoísta. Há um outro modelo que nos vem da literatura, que é o discurso de amor dirigido ao leitor. É a literatura que nos ensina passo a passo, não sem sofrimento, que o amor é ilusão, mas que é também verdade, hora crucial para que cada um de nós é convocado sem poder escapar (Proust, Genet, Duras). O que salva o poeta é que ele não se deixa cair na recusa da palavra como um abismo sem fundo. Que ele não negue que nasceu e que não se aproprie da sua origem. Aquilo que alimenta o fantasma de não ter sido acolhido na vida é também aquilo que alimenta a ideia de abandono e da exclusão da vida. O poeta não se vinga da vida retirando-se dela. O que chamamos ideal situa-se algures entre estes dois pólos. Duras: não ceder e sobretudo sobre o amor que faz morrer. Melhor vale morrer desse amor sem o qual a vida não passaria da "maladie de la mort".

A crítica da linguagem de Mauthner merece que nos detenhamos. O autor, que influenciara Wittgenstein, e em particular o Tractatus, enfatiza a necessidade de uma avaliação radical das nossas possibilidades de expressão. A sua principal descoberta é esta: a realidade esta sempre a um passo a frente da linguagem que tenta expressa-la. E por isso que a experiência mística é indescritível e a ciência da natureza impossível. Esta posição dentro da linguagem explica, na opinião de Paulo Roberto Pinto " a sua proposta de avançar de maneira suicida na critica da linguagem, aniquilando a própria linguagem passo a passo, até elimina-la completamente, refugiando-se no silencio, de maneira a uma pessoa que sobe através duma escada cujos degraus destrói depois de utiliza-los, abandonando-a totalmente no final" (4). O problema de Wittgenstein vai ser o de estabelecer, de maneira rigorosa, e do interior da própria linguagem, aquilo que ela pode de facto dizer. O suicídio e definido por ele como pecado elementar (5). O dilema: imitar Cristo ou Weininger.

Não é evidente para a nossa tradição de pensamento fazer uma história da subjectividade, como tentou Foucault (6). Este autor fala de "praticas de si", de "tecnologias de si", de "trabalho sobre si". Quer dizer: pode escrever-se a história do modo como um sujeito se refere a si próprio para se construir, se constituir. Trata-se de exercícios, esquemas de aprendizagem, técnicas de existência: como não ser afectado pelas contrariedades que nos assolam? Como lidar com a morte? Como libertar-se de si próprio? Como suportar-se a si mesmo? Ao estudar as técnicas de si na Antiguidade, em particular no estoicismo e no epicurismo, Foucault não encontra nunca a questão que: "quem sou eu?" A questão que se coloca o sujeito, ético da Antiguidade e outra: "que devo fazer de mim mesmo?" A questão não e o conhecer-se a si mesmo, mas o de construir uma existência: uma obra de vida . Tomar a sua própria vida como material duma obra. Sujeito tem de inventar, não de encontrar. A questão: "quem sou?" inscreve-se ainda no dispositivo geral da obediência.

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A moralização do suicídio
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Os impasses do desejo e do amor em relação à dissolução dos laços simbólicos que organizam o conjunto social, são impasses que se traduzem no quotidiano por essas novas "doenças da alma" (Kristeva). Platão relata as restrições aos enterros dos suicidas em Atenas (ao lado e com a mão cortada); Phédon: origem órfica ou pitagórica: o suicídio é mau. Mas aceita-o em certas situações (Sócrates). Quem sofre de doença crónica (República, III) ou impulsões criminais incontroláveis (Leis, IX) deve deixar a sua vida ou pôr-lhe fim. Aristóteles dirá que é um mal - cobardia que trata o Estado injustamente. Os estóicos e epicuristas recomendam-no. (Catão o Jovem, Lucrécio e Séneca). O judaísmo proíbe o suicídio mas venera os suicidas de Masada e aceita a autodestruição kiddush hashem para escapar à profanação espiritual. O martírio destinado a evitar a apostasia, aceite e venerado pelo cristianismo, pode parecer muito próximo desta prática, mas desde Agostinho os cristãos recusam a morte auto-infligida que distinguem do deixar-se matar. Japoneses têm o hara-kiri. O jinismo aprova o morrer de fome como etapa última do ascetismo, os Maias adoravam uma deusa do suicídio, Ixtab.

"Ninguém odeia a sua própria carne" (Ef 5, 29). Pode alguém odiar-se a si mesmo? (Questão 29, art. 4). Sl 10: "Quem ama a iniquidade odeia a sua alma!. O suicida que faz o mal a si mesmo odeia-se a si mesmo. O mal é contrário à vontade (Dionísio). Ou só quando apreende esse mal sob a razão de bem. A lógica da vingança é literalmente suicidária, mesmo quando não conduz necessariamente ao suicídio O suicida é uma figura exemplar do "mal ultimo", expressão exacerbada por um cogito que se define a si própria no enunciado: "Eu odeio (me), logo eu sou, mas não mereço sê-lo". J.- L. Marion convida a ver aqui não um desejo irracional, mas a expressão hiperbólica do desejo perfeitamente racional e "lógico de domínio próprio ao espírito de vingança. Em ultimo caso, poder-se-ia dizer que o suicida visa conquistar ou reconquistar o estatuto de causa sui (7). A moralização do suicídio varia consoante os pontos de vista que o encaram. Tomás Moro prevê na Utopia o suicídio como forma de eutanásia. John Donne julga-o moralmente honorável quando cometido pela glória de Deus, como diz no seu Biathanatos, que foi o caso de Jesus. E. Durkheim fornece-nos o mapa dessa moralização no seu estudo sociológico, já clássico, sobre O suicídio (8). A tese de Lacassagne liga o suicídio a outros actos imorais, os crimes e os delitos. Sem provas. A escola italiana cria uma outra tese que liga agora o suicídio e o homicídio como manifestações de um mesmo estado. A temperatura e a idade, a constituição psicológica predisporiam para ligar o suicídio e o homicídio. Depois de Lombroso, Ferri e Morselli tentaram definir este temperamento: o assassino e o suicida seriam ambos degenerados e impotentes.

O Antigo Testamento descreve casos de suicídio (Abimelech, Sanção). Não Job. Gen, 9, 5: "Pedirei o sangue das vossas almas".Vejamos a passagem do livro de Job em que se fala do suicídio (Job 3, 11-19). Os capítulos 56 e 7 desenvolvem o lamento nas modalidades do solilóquio atraído pelo fascínio do nada, pelo requerimento da morte. Todos os valores ficam reduzidos a nada. O nada é o único destino. Job está exaltado. Recusa sistematicamente o suicídio. Nos capítulos 16 e 17 a imprecação transforma-se em desafio, invocação dum testemunho celestial do sofrimento e blasfémia contra um Deus que fez do homem a sua presa. A força do sujeito estriba na espera da morte e só nela (17, 11-16). Aqui não há dialéctica. Processo ético do livro não eleva o escravo à altura do senhor mas faz descer o senhor ao nível do escravo. Nisto estriba o reconhecimento. O conhecimento é a chave da libertação. Os protestos, as invectivas de Job são o lugar privilegiado de um ataque contra a dialéctica que não deixa espaço para nenhuma solução lógica do drama da existência e que instaura a realidade do sujeito na oposição e na luta. Job não é um estóico. Não há nele nenhuma resignação. O sentimento de fracasso é nele um sinal de identificação. Não há possibilidade de separar a ética e é por isso que Job não se suicida, porque o sofrimento se repetiria no inferno. Sofrer é resistir, é insistir na ontologia (3, 20-26) (9).

Eusébio, Ambrósio e Jerónimo sustentam que uma virgem para evitar ser violada se mate ( Comm. In Jonam ). Para Agostinho o suicídio viola o mandamento: "não matarás". Para Tomás de Aquino o suicídio é contrário a lei natural da preservação de si, é nocivo para a comunidade e usurpa o julgamento de Deus ( Suma 2 a - 2 ae, q. 64 ª 5). Na Idade Média a lei eclesiástica e a lei civil impunham várias sanções para o suicídio, desde a interdição do enterro em terra sagrada e a confiscação da propriedade. A Alemanha despenaliza o suicídio em 1751, a França em 1791, na Inglaterra o suicídio continuou a ser crime até 1961. O debate deslocou-se para a assistência ao suicida: haverá um direito de morrer? Mais perto de nos, Cl. Guillon e Y. Bonniec escreveram um livro, Suicide: mode d'emploi que foi recebido como uma incitação ao suicídio. Um outro autor, Derek Humphrey, escreve Final Exit (1991), um livro para doentes com afecções fatais, com instruções precisas para cometer o suicídio. Pode falar-se de eutanásia activa voluntária ou de suicídio medicamente assistido.

G. Minois liga o fascínio pelo suicídio no século das Luzes a invasão do macabro que povoa a literatura. "Morre-se as centenas na literatura e nunca há uma palavra de reprovação" (10). Voltaire (Alzira, V, 3) parece resumir bem o sentimento geral que percorre as tragédias deste século:

"Então, este Deus que eu sirvo deixa-me sem apoio!

Proíbe as minas mãos de atentarem contra os meus dias!...

Eh! Que crime se pratica perante esse Deus ciumento

Se apressarmos o momento que a todos nos espera?

Goethe é tido por mestre do suicídio romântico ( Werther ) e do suicídio filosófico Fausto) . O Werther provocou mais suicídios do que a mais bela mulher do mundo, escreve Madame de Staël. A moda do suicídio chamou-se "Werthermania". O tratado de David Hume, Essais sur le suicide et sur l'immortalité de l'âme (1770 em França e em 1777 em Inglaterra) é uma minuciosa desconstrução da doutrina contra o suicídio que se pode resumir nos seguintes argumentos. O suicídio não é ofensa a Deus, e por uma razão simples: os seres criados receberam o poder para mudar o curso natural das coisas em função do seu bem-estar. Outro argumento: a vacinação seria ímpia porque iria agir contra a Providência. Terceiro argumento: o suicídio não é um prejuízo à sociedade. Se é um fardo, não é uma ofensa em relação a si mesmo, mas o nosso remédio supremo. Leiam-se as duas cartas de Rousseau sobre a matéria em A Nova Heloísa (1761): Saint-Preux e Edouard. A espiritualidade do aniquilamento. Para Holbach quem decide é o Sistema da natureza (1770). Arthur Schopenhauer (11), Henri Roorda e outros, defendem a naturalidade" do suicidio (12). Schopenhauer socorre-se de Plínio e da sua Historia naturalis, lib. XXVIII, c. I; vol. IV, p. 351, ed. Bip: "Vitam quidem non adeo expetendam censemus, ut quoque modo trahenda sit" (13). "Tudo é fisiologia", escrevia Roorda (14). Para Roorda é também a maquinaria interior que avaria, partindo-se a correia de transmissão da engrenagem vontade e sentimento nenhum pensamento de vida, nenhum "instinto vital" tem força para reagir. Meslier deixou-se morrer de fome em 1729.

O conflito está claramente delineado: entre a moral e a fisiologia. Os professores de moral são funcionários pagos pelo Estado, dizia Roorda, que seguia de muito perto Schopenhauer neste ponto. O diagnóstico de Ferraz de Macedo parece combinar-se a perfeição com aquilo a que Peter Sloterdijk chama a vontade de não ser", uma das tendências da subjectividade histórica que menciona (15). Talvez a questão seja a mesma que a que se coloca a imagem: já não sabemos o que e uma imagem. O caso da morte talvez seja o medo quem mais nos impede de olhar para ela de frente. Talvez Junger tenha razão: "Aquele que não conhece o temor da morte é o igual dos deuses". Mas em tudo, e sempre, de Séneca a Voltaire, a ultima palavra cabe a doxa naturalista. E a conformidade ou não com a Natureza que pauta os comportamentos e os avalia.

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(1) H. U. von Balthasar, Dieu et l'homme d'aujourd'hui, p. 119.

(2) Onde vais, drama-poesia? Relogio d'Agua, 2000.

(3) Ver Weininger, O. Sex and Character , London : W. Heinemann; N. York : G. P. Putnam's Sons, 1906.

(4) Paulo Roberto M. Pinto, "Linguagem e Misticismo no Tractatus", in RPF nº 58, Fasc. 3, 2002, p. 500.

(5) Cfr. Wittgenstein, Notebooks (1914-16). Ed. By von Wright, G. E. & Anscombe, G. E. M. Oxford Blacwell, 1961, p. 91.

(6) L'Hermeneutique du sujet. Cours du College de France, 1981-1982 , Paris, Gallimard/Seuil, 2001.

(7) Jean-Luc Marion, Prolegomenes a la charite , Paris, La Diference, 2 ed. 1991, p. 30.

(8) Emile Durkheim, O suicídio . Estudo sociológico . 2ª edição, Editorial Presença, Livraria Martins Fontes, 1977.

(9) Antonio Negri, Job: la fuerza del escravo , Paidos 2003.

(10) Georges Minois, Historia do suicidio, Teorema, 1998, p. 278.

(11) Arthur Schopenhauer, Sobre ele dolor del mundo, el suicídio y la voluntad de vivir (Parerga e Paralipómena, 1851), tecnos, 1999.

(12) Henri Roorda, Mi suicidio, Trama editorial, 2003.

(13) "Em nossa opinião não temos de amar a vida até ao extremo de continuar a arrastá-la a qualquer preço".

(14) Op. cit., p. 49.

(15) Peter Sloterdijk, Extranamiento del mundo, Pre-Textos, 1998.