NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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ANTÓNIO DE MACEDO

PORTUGAL TRANSNATURAL
Na Periferia do V Império
 
7 - A transmutação dos actos
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Na outra narrativa a que aludi acima, do mesmo livro, Fernando Pessoa é consultado electronicamente, em «vida virtual» estereoscópica e estereofónica, por estudiosos de literatura, psicossociologia, política, humanidades e outras velharias. Logo de início gera-se uma «discussão filosófica» entre um dos estudiosos-consulentes e o poeta (ou melhor: o simulacro electrónico do poeta.) sobre o que é «ser real». O espantoso diálogo entre ambos ilustra para além das expectativas o quarto mitologema da portugalidade, a «transmutação dos actos» (Durand 1986, 7-21), de que o protótipo, de acentuado odor hermético-espagírico é a transubstanciação de pão (ou ouro) em rosas, e de rosas em ouro, transubstanciação levada a efeito pela discípula de Arnaldo de Vilanova, Isabel de Aragão, rainha de Portugal. No conto de Luís Filipe Silva o consulente por fim irrita-se com as respostas provocatórias e demasiado «vivas» do simulacro de Pessoa, perde a compostura e diz-lhe brutalmente:

«O senhor tem consciência de que é um simulacro informático, mantido numa Rede de computadores na Universidade de Letras? Que o senhor, bem como o café, e estas pessoas do cenário, que se fartam de falar entre elas, mas nunca se tornam realmente vivas, existem apenas como programas de computador?»

Num bonito rasgo transmutatório, e exercitando a força daquela sólida realidade que é o poder alquímico da imaginação, Pessoa desmonta a falácia do «mundo real» em que o outro julgar estar:

«. Ponha-se no meu ponto de vista. Todos os dias eu venho do meu quarto, para este café [ é a «Brasileira», no Chiado ]. Todos os dias me sento e peço um café. E todos os dias aparece um jovem como o senhor, ou um grupo de jovens, entusiasmados, de olhos faiscantes, a quererem saber factos sobre a minha vida, ou a vida dos meus poemas. Por vezes, um ou outro fazem as perguntas que o senhor acabou de colocar. [.] São tão pontuais que me habituei a encará-los como aqueles fantasmas de Natal do conto do senhor Dickens, não sei se o leu. É difícil acreditar que não sejam mais que meros produtos da minha imaginação, por vezes bastarda. E o senhor Silva espera que eu aceite as suas palavras? Meu caro jovem, de todos, sou eu o único elemento real. Os simulacros sois vós» (Silva 1991, 78-79).

Sim!, de que «lado» está a realidade, afinal? É a mesma questão-interrogação com que nos confronta, vários anos depois (em 1999), o filme The Matrix , escrito e realizado pelo irmãos Wachowski (Andy e Larry).

Desta vez, porém, e em antecipação aos três produtos da Warner ( The Matrix , The Matrix Reloaded e The Matrix Revolutions , os últimos de 2003), o problema-ambiguidade de o único critério de ser/não-ser se encontrar em meras descodificações operadas numa mente computacional (humana? não-humana?) é proposto para o «Portugal transnatural » pela cibergnose do Poeta da Mensagem . O mito ultrapassa o tempo , porque o contém e o transfigura. E o Poeta é mais que mito, porque é português e sabe que o mito é o abrir da janela, o rito é o caminho, e o fito a quinta idade. E a orquestra é a verdade e o sonho. E a quimera é o transnatural e a vida.

Mas. que transnatural?

 
8 - O Transnatural & o Hermético
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Em 1966 o filósofo católico Jacques Maritain (1882-1973) expôs e desenvolveu, num seminário, um conceito de evolução que descobriu numa passagem da Summa Contra Gentiles (III, 22), de Tomás de Aquino (1224-1274). Maritain julgou vislumbrar, nessa passagem, a formulação da ideia de transnaturalidade , ou seja, o anseio geral das formas materiais para se transformarem em formas superiores, até atingirem o estágio humano (Maritain 1973, passim ). Segundo esta concepção um ser vivo não só diligencia e peleja por se aperfeiçoar e por se perpetuar de acordo com a sua própria espécie, como se torna mais do que ele mesmo , a partir de determinado momento, sob a influência elevatória e transformatória duma Vontade Superior ( Intelligent Universe  ? Cosmic Design  ? Deus.?.). Trata-se duma «aspiração ontológica transnatural », que todas as criaturas materiais posuem - e até sobremateriais, como as nações! - para se tornarem diferentes e mais do que são.

Transmutação de chumbo em ouro. eis-nos em plena aventura Hermética da transnaturalidade. E quanto ao transnatural português ?

Outros autores portugueses de FC e navegadores-aventureiros do mundus imaginalis , para além dos dois Silvas de que falei há pouco, sucumbiram ao fascínio dos mitolusismos que dão realidade ao nosso imaginário. A FC escrita em Portugal tem uma história provecta de quase um século e meio - o primeiro livro catalogado de FC de proveniência portuguesa é um respeitável volume de 308 páginas editado em Lisboa em 1859, intitulado O que ha de ser o Mundo no Anno Tres Mil . É uma adaptação «ao gosto portuguez» feita por Sebastião José Ribeiro de Sá (1822-1865), em que a «sociedade futura» visionada pelo autor se rege pelos inevitáveis mecanicismos a vapor do século xix com os delírios duma «estética futurista» própria da época.

Como a minha intenção não é historiar a FC portuguesa, mas apenas dar algumas pistas que nos entreabram, através desse género ficcional, a frincha do profetismo que mantém ateada a chama oculta-acesa do V Império - o «Portugal transnatural» -, passarei por cima do que existe (bastante rarefeito, aliás) até ao último quartel do século passado, e concentrar-me-ei em alguns exemplos dos últimos 20 anos. Aliás esta escolha impõe-se de certo modo por si mesma, porque foi precisamente nas décadas de 80 e 90 do século xx que a FC e o Fantástico em Portugal se desenvolveram duma forma quase explosiva, desde a influência da excelente revista Omnia que revelou novos autores, até ao surgimento de novas iniciativas, novas colecções, associações, livros, estudos, clubes, convenções, concursos, tertúlias, prémios, etc. etc. A chamada Golden Age da FC anglo-americana ocorreu sensivelmente entre 1938 e 1950, com nomes tão emblemáticos como Asimov, Heinlein, Van Vogt, Bradbury. Em Portugal, pode-se dizer que a Golden Age da nossa FC se balizou nas décadas de 80 e 90 do século xx - com cerca de meio século de atraso!, atraso aliás característico de quase tudo quanto é português desde que a Inquisição nos cilindrou e desvitalizou durante 285 anos (de 1536 a 1821), e até hoje.

O surto de speculative fiction entre nós a partir de 1980 tem sido explicado de diversas maneiras, como por exemplo a reacção contra o excesso de materialidade, competitividade predatória e stress do mundo contemporâneo e correlato esvaziamento de valores, mundo este paradoxalmente sensível aos incentivos gerados num meio circunstancial favorável à produção de subtis anticorpos abertos ao influxo da supra-realidade. É a clássica resposta do(s) Romantismo(s) às securas do(s) Racionalismo(s).

A irrupção de tal fenómeno não é alheia à crescente onda de interesse pelo «místico», pelo «esoterismo» e pelo «ocultismo» em curioso conúbio com a supremacia da ciência e o apelo das novas tecnologias (que quanto mais avançadas mais «mágicas» parecem!), bem como a respectiva expansão tentacular dos computadores, da Internet, da realidade virtual, dos cybergames e de toda a tecnofantasia que inevitavelmente lhes está associada, já para não falar na influência do cinema e da televisão. A adesão das audiências ao cinema fantástico e de FC tem sido tão relevante nos últimos anos que um crítico da especialidade afirmou que na segunda metade da década de 90 do século xx era difícil encontrar, em cada dia, pelo menos uma sala de cinema em Portugal onde não estivesse a ser exibido um filme fantástico ou de FC! (Estou em crer que esta «estatística» ainda hoje é válida.)

Por entre as espirais e as constelações do infindo mapa estelar que é o «prazer da ficção especulativa», sobressai a motivação provavelmente mais cintilante da criatividade humana: o prazer de inventar histórias aliado ao de as ouvir contar. Inventadas? Verdadeiras? Falsas? Ou uma coisa ou outra? Ou nem uma coisa nem outra? Se calhar, tanto faz. O escritor Isaac Bashevis Singer (1904-1991), autor de obras marcantes como A Família Moskat (1950), O Mágico de Lublin (1961), Uma Coroa de Penas (1973), etc., Prémio Nobel de Literatura de 1978, teve a coragem de confessar em público: «Quando eu era um rapazinho, chamavam-me mentiroso; agora que sou crescido, chamam-me escritor».

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