NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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ANTÓNIO DE MACEDO

PORTUGAL TRANSNATURAL
Na Periferia do V Império
 
5 - O Infante D. Henrique, D. João II & o ADN
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Aqui chegados, e firmando-se o futuro de Portugal em mais que voo, ou seja, em criação de imaginário e espessura/transparência de profecia cumprida, auscultemos o que tem para nos dizer o segundo autor a que me referi no início, Luís Filipe Silva, cujo livro O Futuro à Janela foi galardoado com o Prémio Caminho de Ficção Científica (FC) de 1991. Este é o primeiro livro realmente importante de speculative fiction portuguesa da década de 90 do século xx . É uma colectânea de onze contos e um poema; limitar-me-ei a falar apenas de dois, não que os restantes o não mereçam, pelo contrário, mas porque nesses dois o autor engenhosamente consegue entretecer numa teia de hard science-fiction os sonhos oceânicos do Infante D. Henrique (que em 1452 recebeu um embaixador do mítico Preste João!), do seu sobrinho-neto D. João II (o tal que levou os Reis Católicos a assinarem de cruz o tratado de Tordesilhas) e de Fernando Pessoa (o grande arauto da Mensagem do V Império .)

Nada menos!

E como? Muito simples, mas artilhado de maneira a dar-nos que pensar: Fernando Pessoa ressurge informaticamente, ou melhor, «hologramicamente», num espaço-tempo futuro onde reina uma estranha ambiguidade de simulacros; D. Henrique (que morreu com 66 anos) encontra-se com D. João II (que morreu com 40) num espaço-tempo futuro em que aparentam ter mais ou menos 30 anos cada um, ainda por cima não se conheceram com essa aparência: quando o Navegador morreu no século xv o seu sobrinho-neto Joãozinho ainda tinha só cinco anitos. e nesse espaço-tempo futuro o encontro só se tornou possível porque foram ambos reconstituídos em laboratório a partir de amostras de ADN.

Não deixa de ser sintomático que Luís Filipe Silva logo no seu primeiro livro de FC se tenha sentido atraído para os mitologemas da portugalidade , não se limitando a ceder à tentação de apenas glosar os modelos anglo-americanos, sempre muito em voga, da space opera , dos alienígenas, da antigravidade, antimatéria, teorias da conspiração, cyberpunk, dimensões e universos paralelos, distopias, impérios galácticos, hiperespaço, mutantes, cyborgs, nanotecnologia, viagem no tempo, steampunk , realidade virtual, ribofunk , etc. etc.

 
6 - A nostalgia do impossível
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D. Henrique é o primeiro a ser «recuperado» pelas altas tecnologias daquele espaço-tempo futuro robotizado e sem Pátria; D. João II chega 14 meses depois, é devidamente «preparado» pelos cibertécnicos e finalmente enviado para o habitáculo onde Henrique permanece em quarentena. Quando Henrique vê chegar o rei, apesar de não o ter conhecido enquanto tal (o Joãozinho tinha só cinco anos quando o velho Henrique morreu, recorde-se), não resistiu à força daquele espírito, daquele olhar, daquela determinação igual à que levaria os futuros humanos a aventurarem-se pelas galáxias:

«Na sua frente, postava-se a encarnação viva da nação que outrora tinha sido Portugal; o que ali estava não era só uma pessoa, um líder, mas a reunião das almas de todos os portugueses, o cheiro da terra lavrada, o ranger da corda na gávea, a língua que unia as mentes de um povo e as tornava numa única entidade, na abstracção da ideia, na palavra viva. [.] A confirmação de uma Pátria que era mais que uma divisão geográfica duma porção do solo, ditada por milhares de acordos políticos, era um povo, uma cultura, entrara pela sua moradia» (Silva 1991, 23). Henrique ajoelha-se instintivamente, mas D. João II, já instruído pelos robôs depois do choque inicial da chegada, fê-lo levantar-se e declara: «Levanta-se, Infante. Não há razão para o teu procedimento. Sou um rei sem reino». Ao que o Infante replica: «Jamais, senhor. É o rei que faz o reino, não o oposto. Onde quer que pisardes, esse solo será português, e vós o soberano».

Não vou contar o resto nem como Luís Filipe Silva desenvolve numa narrativa de FC o luso mitologema da «nostalgia do impossível» - designação que Gilbert Durand adoptou para qualificar o mito português dos Descobrimentos e do sonho do Além-Oceano (Durand 1986, 7-21). Limitar-me-ei a notar que após uma fase de revolta contra a inesperada e insólita situação («Por que é que não me deixaram no meu tempo, onde eu me sentia bem? Tanta coisa que ainda tinha de fazer!»), a sede e a fome - ou a nostalgia - de novos oceanos, ainda que cibernéticos, internéticos ou impossíveis, é mais forte nos dois homens do que o mero pormenor duma tecnologia avançada sete séculos em relação ao tempo deles, e logo decidem, epopeicamente, aproveitar a oportunidade para tirar partido da «burrice» dos servo-mecanismos que os atendem e lhes servem bebidas. Uma vez congeminada a estratégia duma nova Além-Descoberta, o rei ergue o copo e diz ao Infante que faça o mesmo:

«Levantou o copo à máxima extensão do seu braço, sólido como uma rocha:

«- A Portugal! Que o estandarte da sua glória possa voltar a erguer-se sobre as cabeças dos nossos inimigos!

«E num só trago, selou o compromisso com o destino» (Silva 1991, 28).

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