MESSIANISMOS: DE VIRGÍLIO A ATAHUALLPPA: BREVE SÍNTESE
Helena S. C. Langrouva


O objectivo do presente texto é fazer uma breve síntese de pontes messiânicas, sem dissecar conceitos, teorias nem hermeneûticas . Trata-se de estabelecer pontes:

1. Na cultura ocidental e judaico-cristã: da poesia pastoral de Virgílio, ao Messias judaico, cristão, à escatologia, à Divina Comédia de Dante

2. Na cultura ameríndia: no passado e no quotidiano de hoje: esperança de vida, de libertação, de regresso, de futuro, de permanência na liberdade

1. Na cultura ocidental

Na cultura ocidental, a poesia bucólica ou pastoral assumiu a ideia de utopia como nostalgia decorrente da agudização da consciência da violência e da mudança dos acontecimentos para pior, a consciência da inevitável necessidade de metamorfose, de mudança interior ou conversão. Essa expressão de utopia desenvolve-se através de diálogos entre figuras disfarçadas de pastores, num quotidiano onde converge a confissão de problemas pessoais de desânimo, de relacionamneto com os outros, a queixa, a denúncia de doenças sociais como a inveja e a cobiça. Está presente o poder mágico da música, através do canto e da dança; está presente a epifania de deuses a mortais.

No universo peculiar das églogas de Virgílio (1) que se reporta a acontecimentos menos positivos da época do imperador Augusto (século I A-C.), à memória de acontecimentos e práticas igualmente menos positivas da humanidade em geral, é compreensível que a esperança de Virgílio se exprima, na égloga IV, na metáfora do messianismo utópico, instaurado por uma criança que há-de trazer uma nova ordem política e cósmica, contribuirá para a idade do ouro, não como mito de nostalgia do passado da humanidade, mas como esperança utópica para o futuro, para a salvação da humanidade. A égloga IV de Virgílio foi interpetada ao longo dos séculos, entre outras versões, como uma intuição pre-cristã da vinda do Messias, o Ungido, Jesus Cristo (2). A égloga messiânica de Virgílio envolveria o messianismo na sua tónica de esperança, salvação e mudança sócio-política.

Na tradição judaica, o Messias que se esperava, antes da vinda de Jesus Cristo era alguém que trouxesse renovação sócio-política. Jesus Cristo não correspondeu, na visão dos judeus, a essa esperança messiânica e não foi reconhecido como o Messias, pelos judeus. No quotidiano de hoje, entre os judeus de religião, não há lugar para a espera do Messias, pois tudo está assegurado na Torah (3).

Jesus Cristo não é o Messias que os judeus esperavam, é o Messias que anuncia que é preciso renascer para nos ocuparmos com grande zelo com aqueles que já nada prometem para a sociedade (4). Jesus Cristo anuncia o amor salvífico, no plano de cada pessoa, sem preocupação de questionar a sociedade nem a política. A esperança que vem trazer é a charis, não a promessa de caridade, mas a caridade, o acto gratuito que passa pelo corpo e faz ressurgir a vida, na sua travessia ou proximidade de fim da sua passagem na caducidade do corpo.

Ao longo da tradição cristã, a apocalíptica foi testemunha de esperança da vida para além da morte ou da vinda de uma nova era; preocupou-se com o destino das almas, a escatologia. Daí a longa tradição iconográfica medieval da representação de Jerusalém Celeste, a pátria a um tempo de origem e de futuro para a alma, liberta da caducidade do corpo. Daí a perspectiva de novos espaços habitados por novos corpos no futuro, na Nova Jerusalém, no livro do Apocalipse (5).

No século XIV, Dante concebeu a Divina Comédia como uma obra perfeita e de síntese do pensamento cristão medieval sobre as hierarquias e a escatologia das almas. Trata-se de uma viagem perfeita, imaginária, realizada pelo próprio Dante, com o seu próprio corpo, até ao Inferno, até ao centro do centro da terra, ao encontro de Lucifer; do Inferno para o Purgatório e o Paraíso, até à Rosa Branca de Luz, Deus, Luz e música (6). A viagem imaginária de Dante, poeta exilado da sua própria cidade, é perfeita, esgota a viagem como viagem e suscita questões novas como a visão de almas sem corpo pelos olhos corporais de um poeta visionário (7).

2. Na cultura ameríndia

Transitando do contexto romano e judaico-cristão para a América Latina, na cultura dos índios de vários ramos, os messianismos assumem contornos que poderemos sintetizar em três grandes linhas.

1. O messianismo identificado ou identificável com uma utopia realizada: na república dos Guaranis, uma republica- sociedade livre enraizada na vida comunitária, na partilha de bens, no canto, na dança e nas festas, no trabalho comunitário e na auto-gestão. Esta república foi alvo de destruição progressiva, na sequência do tratado de Tordesilhas que obrigava à repartição de espaços entre Portugal e Espanha, na América Latina. A república dos Guaranis ficou definitivamente dizimada em 1755.

2. O messianismo como esperança de libertação dos índios da opressão dos colonizadores europeus, expressa no quotidiano de índios jívaros, na Amazónia, no Equador e de outras etnias, na América Latina.

3. O messianismo como esperança de regresso do último imperador inca- Atahuallpa, assasinado pelos colonizadores,. Atahuallpa era mestre da intrepidez e da liberdade. Os incas eram livres como o vento. Atahuallpa é o símbolo da esperança do reencontro com um corpo social comunitário, dizimado por um genocídio que atingiu setenta milhões de índios - incas, maias e astecas. Uma canção da tradição equatoriana evoca, na língua quetchua, Atahualpa, runa -soberano rebelde, convidando-o a acordar do sono da morte e a ver o seu povo acorrentado : “Acorda, Atahuallpa, Runa rebelde, acorda; o povo que tu amavas vê-lo-ás vencido, acorrentado”.

No quotidiano de hoje, os descendentes de ameríndios, em particular entre os descendentes de índios incas, a vida comunitária está preservada, no planalto andino, apesar de algumas dificuldades económicas. O trabalho é ritmado pelas festas. A esperança para o futuro como salvação é a incorporação da intrepidez, da alegria, do trabalho como festa, da festa, da aceitação da vida, das pausas de meditação e silêncio, do respeito, da união com a natureza, e sobretudo da liberdade. Uma expressão corrente entre os próprios incas de hoje é “somos livres como o vento: se deixasse de ser índio, deixaria de ser livre como o vento”. É uma forma de viver o messianismo incorporado , na passagem desta vida, numa permanente renovação e verdadeira promessa de futuro. Um povo “acorrentado” que nunca deixou de ter liberdade interior e que preserva a liberdade como o vento.

CONCLUINDO

Se o convite fulcral do Messias cristão é que se renasça, que se marque uma presença de amor , nas horas de limite, com todos os que esperam pela cura da palavra, da alegria, mesmo em estados que parecem inultrapassáveis; a maneira de viver o quotidiano, entre descendentes de índios, em particular entre descendentes de incas é um permanente desafio para que todos repensemos como ressurgir , como nos renovar enquanto estamos nesta passagem da vida, como viver a esperança de uma vida que sempre se renova, como não deixarmos de ser livres como o vento.


NOTAS

(1) Vide Virgil, Eclogues, Penguin Classics.

(2) Simone Weil reuniu no livro Intuitions pre-chrétiennes um conjunto de ensaios sobre o que designou como “intuições pre-cristãs", em autores latinos.

(3) Fr. Francolino Gonçalves, OP, O Messias no Antigo Testamento. Messianismos de ontem e de hoje, semana de Teologia organizada pelo I.S.T.A., Agosto de 2002.

(4) Frei Bento Domingues, OP., Jesus Cristo, o Messias?.Messianismos de ontem e de hoje, semana de Teologia organizada pelo I.S.T.A., Agosto de 2002.

(5) De João.

(6) Vide Dante, La Divine Comédie, édition bilingue, Paris, Flammarion, 3 vols., 1992.

(7) Helena S.C. Langrouva, A Ideia de Viagem, ensaio a publicar em breve.