MESSIANISMO GNÓSTICO:
ENTRE O REINO E A REDENÇÃO
(3)

José Manuel Fernandes


ESCATOLOGIA
 
A escatologia está intimamente ligada à soteriologia, facto que nos dispensa de repetir aqui alguns conceitos. Já referimos como se salvam as distintas categorias de homens e o que acontece com as diferentes partes do homem gnóstico quando morre. Interessa-nos a questão do fim do universo e a ascensão ao mundo celeste do espírito do gnóstico após o seu afastamento desta vida, quando por fim se vê livre deste mundo.
 
1. A ascensão ao mundo superior
 

Comecemos pelo segundo aspecto, mais imediato. A ascensão da alma superior do gnóstico ao Pleroma, ou céu, concebe-se como uma viagem do «Espírito» (por vezes denominado simplesmente «alma») através das esferas planetárias. Como os seus arcontes, ou chefes, são acérrimos inimigos do gnóstico e não desejam ver-se privados da sua presa, procurarão colocar as maiores dificuldades ao espírito que ascende ao Pleroma. Para defender-se, o espiritual/pneumático pode utilizar certos ritos e fórmulas mágicas que são como a chave para livrar-se desses inimigos. Normalmente, tratam-se de avocações, orações ou conjuros que contêm o nome secreto do arconte em questão ou o dos seus delegados, ou frases mais longas que ao pronunciarem-se desarmam toda a resistência dos adversários. Outras vezes são sinais simbólicos que se devem executar para alcançar o mesmo propósito.

Segundo o tratado As três estelas de Set, «o caminho para ascender é o caminho para descer» (1), isto é, do mesmo modo que o Redentor tem de abandonar o Pleroma e descer à matéria atravessando cautelosamente as esferas controladas pelos arcontes do Demiurgo, de igual forma o espírito deve ascender às perigosas esferas.

Alguns sistemas gnósticos acreditam na existência de estações ou etapas supramundanas, controladas pelos arcontes, nas quais o espírito tem necessariamente de parar e ser purificado antes de subir ao céu de forma progressiva.

O castigo do ímpio, normalmente pagão, é total; significa a aniquilação (o esquecimento total), segundo o Evangelho da Verdade (2). Na parte final do Livro secreto de João (Apócrifo de João), num diálogo entre este Apóstolo e o Revelador aborda-se o problema da salvação das «almas»: o gnóstico salva-se de certeza depois de ter sofrido algumas purificações, mas só se se mantiver firme numa vida conforme à gnose. Se cede às insinuações dos espíritos adversários, que também podem tentar entrar na (ou apoderar-se da) sua alma, pode ser condenado. O gnóstico apóstata irá para o inferno, juntamente com os anjos perversos, onde será castigado com penas eternas (3).

O tema das purificações da alma aparece também tratado no Pensamento trimorfo e em Zostriano . Embora não fique totalmente claro, parece que estas purificações consistem numas abluções, ou baptismos, que têm lugar depois do espírito alcançar o reino da luz (4). Igualmente, Zoroastro entra no âmbito dos éones da luz apenas depois de alguns baptismos purificadores (5).

 
2. A ressurreição
 

Estritamente falando, não pode haver ressurreição na gnose. A ressurreição dos corpos é impensável num verdadeiro sistema gnóstico. Não pode existir na realidade porque só o espírito é imortal (em certo grau também a alma), enquanto que o corpóreo é pura matéria e por isso inapto para ressuscitar. No entanto, o conceito da ressurreição é aceite e recebe algumas precisões nos textos de Nag Hammadi. Alguns escritos, como a Exposição sobre a alma (6), defendem uma teoria semelhante à que encontramos em alguns gnósticos que refere o Novo Testamento (7): a ressurreição fica antecipada já nesta vida. Ao receber a «iluminação», o pneumático já ressuscitou. O resgate (ressurreição) é perceber que se possui a natureza divina. A Epístola a Regino (8) é um tratado que aborda especificamente o tema da ressurreição. Das três ressurreições possíveis (a do corpo, a da alma e a do espírito), apenas a última é realmente verdadeira e na qual é preciso acreditar. A ressurreição fica «antecipada» neste mundo com a aquisição da gnose. Na hora da morte, o gnóstico experimenta a separação da sua parte espiritual (mente, pensamento) do corpo externo, que perece. Mas (e este ensinamento é original entre os gnósticos, possivelmente para adaptar-se à doutrina Paulina do corpo espiritual de 1 Co 15,50-53) o espírito, na sua ascensão para o repouso, é acompanhado de um «corpo pneumático» que é reconhecível porque possui os traços que o assemelham ao corpo que já pereceu na morte. Uma doutrina semelhante defende o Ensinamento autorizado (9) e o Evangelho de Filipe. Por conseguinte, a única «ressurreição» que verdadeiramente importa – a do pneumático – dá-se em duas partes. A primeira quando, neste mundo, recebe e aceita a chamada ou iluminação divina. Nesse momento, ao iniciar o processo consciente de afastamento da matéria – neste sentido, do seu próprio corpo – pode dizer-se que já ressuscitou. A segunda acontece quando, depois da morte, o espírito (que continua vivo, não ressuscita de facto, é um mero jogo de palavras) entra no Pleroma e une-se à sua companheira celeste que o aguarda.

O lugar paradisíaco – o Pleroma – onde se congregam os pneumáticos, aparece descrito como iluminação/luz, descanso, ou como um reclinar-se na câmara nupcial.

O universo, o mundo material, o cosmos, não têm futuro para o gnóstico. Uma vez que o último dos eleitos tiver entrado no Pleroma, completa-se o ciclo de retorno à pátria do elemento divino no homem. Então, a existência da matéria não faz sentido; será definitivamente destruída. Nesse momento o Pleroma regressará à posição inicial antes do lapso do éon celeste que com a sua paixão provocou a geração do universo material.

 
3. O fim do mundo
 

O fim do mundo concebe-se nos textos de Nag Hammadi seguindo as coordenadas da apocalíptica judia. Os gnósticos não participam de uma concepção cíclica da história (como os iranianos, ou das épocas do mundo, segundo os gregos) na qual a destruição final daria origem a um mundo novo. Pelo contrário, a concepção gnóstica representa uma noção da evolução da história em sentido linear (como a judia) que caminha iniludivelmente, por vontade do supremo Transcendente, para um único e definitivo fim. Este aproxima-se pouco a pouco, à medida que as partículas divinas, os espíritos dos gnósticos, se libertam dos grilhões (correntes) da carne e retornam ao Pleroma. Quando o número previamente determinado de espíritos gnósticos chegue à sua plenitude, virá o momento da consumação. O fim do mundo visível, segundo o Tratado tripartido , será uma realidade e iniciar-se-á o processo da «restauração» ( apokatástasis ): quando se tiverem reunido no Pleroma todas as partículas de luz, o universo será entregue pela divindade à aniquilação e se restaurará ao estado do Pleroma imediatamente antes da «deficiência» que deu origem à matéria (10). Descrições do fim do mundo, no mais puro estilo apocalíptico (fogo, cataclismos, etc.), podemos encontrá-las no Pensamento trimorfo (11); Pensamento do Grande Poder (12) e Sobre a origem do mundo (13). A conflagração final tem também como objectivo purificar as últimas partículas divinas ainda presentes no mundo.

«Quando tiver terminado o tempo estabelecido do reino da terra, terá lugar a purificação das almas [...]. Tremerão todos os poderes do mar e se secarão. E o firmamento não jorrará orvalho. As fontes secar-se-ão. Os rios não fluirão das suas fontes, e as águas das fontes da terra se esgotarão. Os abismos se enxugarão [...], os astros aumentarão de tamanho e o sol se extinguirá.

E eu partirei com todos os que me tiverem conhecido. E entrarão na luz incomensurável» (14).

 
Notas
 

(1) As três estelas de Set, 127,20.

(2) «Como poderá ouvir aquele cujo nome não foi convocado? Porque o que é ignorante até ao fim é uma obra do esquecimento e será destruído com ele», Evangelho da Verdade, 21,32ss. Cf. Ensinamento autorizado ou o Discurso soberano, 32,1-33,31.

(3) «E eu disse: “Senhor, aquelas almas que tiveram conhecimento e logo se desviaram, para onde irão?”. Ele disse-me então: “Ao lugar para onde irão os anjos da indigência, aí serão recebidas, um lugar onde não cabe já arrependimento e onde serão custodiadas até o dia em que sejam torturados os que tiverem blasfemado contra o Espírito, os quais serão castigados com uma pena eterna”», Apócrifo de João, 27,21-30. Cf. Livro de Tomé o Atleta 142,27-143,7.

(4) «[...] quando entreis, sereis glorificados pelos que dão glória e os que entronizam vos entronizarão. Recebereis túnicas dos que dão a túnica e vos baptizarão os que baptizam e estareis em glória com as glórias, da forma como estáveis primeiramente quando éreis imagem», Pensamento trimorfo , 45,13-20 e 48,13-35.

(5) «Quando fui baptizado por quinta vez em nome do Autogerado, por cada um destes poderes, tornei-me divino», Zostriano 53,14. Cf. Zostriano 23.

(6) «A alma recebeu do Pai o dom divino do rejuvenescimento a fim de regressar ao lugar onde se encontrava no princípio. Esta é a ressurreição de entre os mortos, este é o resgate do cativeiro, esta é a ascensão, o caminho para o céu, este é o caminho que eleva até o Pai», Exposição sobre a alma, 134,9-15.

(7) Cf. 2 Tm 2,18.

(8) Ou Tratado sobre a Ressurreição, cf. NHC I, 4 (Nag Hammadi Códices).

(9) «Ignoravam que ela possuía um corpo espiritual invisível», Ensinamento autorizado 32,31s.

(10) «Mas a restauração final será depois que o Todo se tenha revelado no que é o Filho, que é a redenção, ou seja, o caminho para o Pai incompreensível, isto é, o retorno para o preexistente, e depois que se tenha revelado às Totalidades na forma mais própria na que é inconcebível e inefável e o invisível e o incompreensível, de forma que ele receba a redenção», Tratado tripartido, 123,28-124,2.

(11) Cf. 43,4-17.

(12) Cf. 45,29-47,26.

(13) Cf. 125,32-127,19

(14) Pensamento do Grande Poder, 45,27-46,9.