PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO
Armando Nascimento Rosa*


Proémio

A atitude gnóstica face ao mundo e à significação da existência humana mostra-se em maior amplitude, no exercício reflexivo, se a tomarmos como uma forma de visão do intelecto - na qual se conjugam o pensar, o crer e o imaginar - resultante do confronto entre a consciência e um universo exterior a esta que apresenta ao sujeito as características do estranhamento, da hostilidade e da ilusão ontológicos.

«Estrangeiro absoluto» 1, divisa gnóstica por excelência, foi o cognome conferido por Eduardo Lourenço a Fernando Pessoa, em cuja obra - magno labirinto alquímico - podemos surpreender em actividade a visão gnóstica na motivação profunda de uma criação literária, também simultaneamente filosófica pelo seu móbil expressivo se exprimir numa poética demanda do conhecimento. Segundo as palavras de Yvette K. Centeno, «uma raíz antiga, maniqueísta, e outras formas de gnosticismo e catarismo mais recentes, explicam talvez parte da dificilmente explicável filosofia de Pessoa, hermética, sem dúvida, mas numa multiplicidade de sentidos, só comparáveis aos múltiplos da heteronimia». 2

A nossa abordagem tentará identificar os olhares penetrantes nos quais uma perspectiva gnóstica se metamorfoseia, proteiforme, em textos vários do poeta-filósofo, sinalizando entendimentos do tempo e da história que só parecem permeáveis a uma mais clara exegese por meio das especulações da Gnose a este respeito.


«A Gnose permite-te que saibas de um Deus desconhecido e remoto em relação a este mundo, um Deus em exílio face a uma criação falsa que, em si mesma, constituiu uma queda. Tu, em ti próprio, ao conheceres e seres conhecido por este Deus alienado, chegarás a compreender que originalmente o teu eu mais profundo não fazia parte da Criação-Decaída, mas que remonta até a um tempo arcaico antes do tempo, quando esse eu mais profundo integrava uma plenitude que era Deus, um Deus mais humano do que qualquer outro venerado desde então.»

HAROLD BLOOM, Augúrios do Milénio
- A Gnose dos Anjos, dos Sonhos e da Ressurreição

«A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e, como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.»

BERNARDO SOARES / FERNANDO PESSOA
, Livro do Desassossego



Em tábua biográfica datada de Março de 1935, escassos meses precedendo a sua morte física, Pessoa confessa-nos ser um cristão gnóstico «inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma (...)». 3 Não espanta esta assunção quanto ao seu posicionamento religioso e, consequentemente, filosófico, já que a confirmá-lo se rastreiam inúmeros indícios, disseminados não apenas nos textos de carácter hermético e esotérico nos quais tais assuntos teriam morada inevitável, mas também na generalidade da sua obra literária em poesia e prosa, mais directamente destinada pelo autor a conhecer a publicação maioritariamente póstuma.

A segunda epígrafe escolhida é disso testemunha, de entre o magma aurífero que compõe a descontinuidade intérmina do Livro do Desassossego: neste parágrafo, dominado por um dualismo platonizante, é explícita a identificação de um grau qualitativamente superior de vida associado ao pensamento, entendido como função do espírito; para Pessoa, é no espírito que se vive, porque aí reside a possibilidade de uma mais intensa percepção do mundo, onde o sentir interage e confunde-se, nessa pessoana dialéctica, com o devir do pensamento que sobre as sensações se exerce («O que se sentiu foi o que se viveu. »)

Ao acentuar a importância em aprofundar a chamada vida interna das almas contemplativas, por oposição àquela que se dirige às solicitações externas - mundanais e estranhas à estimulação do intelecto cognoscente -, Pessoa professa a concepção gnóstica inerente à etimologia do termo grego gnosis: o acto do conhecimento, acto este dirigido ao conhecimento de si mesmo, como na máxima adoptada por Sócrates, identificando-se este si mesmo com a centelha divina de que cada ser humano é portador, ainda que alienada no exílio corpóreo, mistificador, de um cosmos que é estrangeiro à sua natureza transcendente.

Para o gnóstico, a atitude religiosa começa fundamentalmente por uma consciencialização espontânea da transcendência interior; a descoberta, na mais ignota espiral do sujeito, de que algo nele pulsa e pensa em estranhamento e descontinuidade face ao mundo fenoménico da nossa experiência psicossocial e fisiológica. É neste sentido que o gnóstico desejará atingir o desenvolvimento das faculdades de conhecer-se que o ponham num mais pleno contacto com o que de divino existe em si, desvalorizando a mera e irreflectida fé ou crença em dogmas prévia e exteriormente dispostos. Esta descredibilização do dogma e, com ele, das instituições eclesiais que o impõem, encarniçou, em termos históricos, a ira dos cultos oficiais estabelecidos, especialmente do catolicismo romano que, dada a sua ambição imperial hegemonizante, sempre viu nas diversas manifestações de gnose um Abel a abater.

Avessa a qualquer organização que a represente, a religiosidade gnóstica irrompe de um individualismo radical, na senda desse fragmento de luz que é o deus interior cativo em cada um de nós; só depois disso se configura a hipótese de uma divindade oculta que lhe deu origem e à qual ele pertence co-essencialmente. Para os gnósticos, a condição actual do Deus autêntico é o arquétipo do que aconteceu ao espírito humano pois, tal como este, sofrera esse Deus um degredo inexplicável, extra-cósmico, desde a queda primordial; o Big Bang da Criação que as diversas correntes do gnosticismo sempre se esforçaram por dilucidar nas suas imaginosas e extravagantes cosmogonias - já que a parúsia gnóstica tem sempre lugar no fluxo da existência, desde que o sujeito se mostre receptivo às mensagens extramundanas, traduzidas em linguagem simbolicamente apreensível às limitações gnoseológicas do ego.

O Deus veraz do gnosticismo, para todas as variantes desta religião multiconfessional, não é de modo algum o criador do cosmos (o Cosmocrator), uma vez que a imperfeição essencial deste e o predomínio nele do mal e do sofrimento faz com que o gnóstico atribua a fabricação do universo que habitamos a um demiurgo ignaro e prepotente, semelhante ao Deus enganador cartesiano, que usa toda a sua indústria em evitar que o humano aceda ao verdadeiro conhecimento de si e da situação de encarcerado em que se encontra. As metáforas da ilusão, do entorpecimento, do engano, do sono e da inquieta suspeição face a tais estratagemas (estudadas por Hans Jonas em The Gnostic Religion - The Message of the Alien God and the Beginnings of Christianity) são tópicos característicos da natureza humana retratada pela literatura gnóstica antiga, sobrevivente às ferozes perseguições de que foi vítima - enriquecida no século XX pela descoberta, em Nag Hammadi, no Egipto, em 1945, de tratados manuscritos de uma comunidade dos primórdios da nossa era que, sentindo-se ameaçada, os escondera numa ânfora sob as areias de uma gruta do deserto, decerto esperando por um tempo histórico futuro mais promissor.

Tais tópicos proliferam ramificados em toda a escrita de Pessoa, preocupada que está em transmutar conhecimento a partir da forma do verbo literariamente trabalhado, e um estudo deles daria lugar para longa e redobrada exegese que não se acomoda à modesta brevidade prevista para este texto. Optámos por seguir um pólo temático que nos encaminhasse o sinóptico trajecto; e foi a ideia do tempo que nos despertou para, através dela, apreciar motivos gnósticos da visão pessoana. O tempo, emblema e corredor que empareda o fenómeno de existir, de existirmos como indivíduos, é na interpretação gnóstica do Génesis o avatar nuclear da queda ancestral, condicionadora do humano tal como ele hoje se encontra. O tempo é um simulacro inferior e degradado da eternidade, que o transcende e o anula, de acordo com o que Platão já no Timeu descreve; se bem que o demiurgo platónico, a quem se deve a harmónica arquitectura de um universo dotado de perfeição volumétrica, não seja coincidente com a imagem do demiurgo desastrado e nefasto do pessimismo objectivo dos gnósticos. O Timeu terá inspirado as reflexões sobre o tempo desses profetas sem credo, embora não satisfizesse a sua exasperação diante da existência concreta. Mesmo assim, a herança platónica, com o seu dualismo cosmológico e a sua fundamentação filosófica da transmigração pitagórica, é sem dúvida a contribuição mais decisiva que a cultura ática fornece para o sincretismo gnóstico que floresceu na Alexandria helenística; essa cidade-símbolo onde, no dizer de Jung, se reuniram o Ocidente e o Oriente, isto é, uma síntese em que o legado grego pitagórico-platónico se congrega no hermetismo egípcio e se combina com a mística judaica em torno das origens, a mensagem cristã, e os dualismos iranianos filiados em Zoroastro. Não nos esqueçamos porém que a rasura do mal no idealismo de Platão e a insistência deste numa parcial positividade ontognoseológica não será perfilhada pela permanente inquietação do gnóstico perante a possibilidade de se atingir um conhecimento pleno das verdades mais autênticas, imersos que estamos no engano universal deste mundo, separados do pleroma, isto é, a divina plenitude. Num poema sem título de 1934, composto por nove quintilhas, Pessoa comunica-nos a angústia do sujeito em face de um conhecimento cósmico perdido, numa excepcional síntese mitopoética da condição gnóstica (vazada em moldes fortemente maniqueus) a que voltaremos ainda, mas que da qual citamos agora quatro estrofes. Nelas se dá conta de um Deus oculto, liberador e ético, que se distinguirá do frio geómetra demiurgo responsável pela clausura virtual do tempo e do espaço, capaz de provocar a alienação vivente dos humanos (alienação essa a que o cinema fantástico viria recentemente a dar imagem, em filmes que problematizam a natureza do real, como sejam Dark City/A Cidade Misteriosa, de 1998, direcção e argumento inicial de Alex Proyas, e Matrix, de 1999, realizado e escrito por Andy e Larry Wachowski, duas fábulas messiânicas oriundas de um flagrante imaginário gnóstico).

«Que Deus duplo nos pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a vida, o natural possível,
E de querer o bem, inútil nível,
Que nunca assenta regular no ser?

Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisível Geómetra regrou
As marés deste mar de mau sargaço -
O mundo fluído, com seu tempo e 'spaço,
Que ninguém sabe como se criou?

Mas, seja como for, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituída
Por bens obscuros, fórmulas do acaso.

Que plano extinto, antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, porque foi erguido?
Como acabá-lo, templo inconcluído,
Se nos falta o segredo com que erguê-lo?» 4

Na metodologia conspiratória da(s) visão(ões) gnóstica(s) - na qual a consciência é uma emissária espoliada dos meios com que realizar uma missão já por ela esquecida -, a ansiedade varia consoante as vozes que a professam, apresentando uma sinusóide oscilante entre cepticismo e revelação íntima que vemos genialmente manifestada no percurso daquele que mistificou o seu eu mundano e socialmente reconhecível, procurando nas máscaras heteronímicas a resposta aos enigmas da esfinge. Mesmo nas derradeiras palavras que Pessoa parece ter escrito antes de morrer, perdura a dubitável certeza aos humanos reservada:

«I know not what tomorrow will bring.» 5

Em tradução literal, contra-gramatical: Eu sei não o que o amanhã trará. Uma frase em inglês classicizante que fez o infatigável Jorge de Sena espiolhar as obras de Shakespeare, com resultado infrutífero, pois convencera-se que o verso de adeus de Pessoa seria uma citação do autor que o poeta mais admirara. Interessa-nos aqui ler nessa frase o modo como o tempo e a busca do conhecimento se unem em gnóstica máxima: o amanhã da morte e a metamorfose que ela produzirá no sujeito que no ocaso da vida se interroga.

Mas neste «poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas» 6, como o Pessoa jovem a si próprio se identificou, não esperemos ver uma teoria articulada acerca da concepção do tempo. Por mais filosófica que seja a palavra pessoana, ela não se despoja dessa convicção poética ou, se preferirmos, estética, que sabe ser, em última análise, deveras fútil sustentar a unicidade de um sistema de pensamento, quando a realidade não se conforma e furta-se à rede desse mesmo sistema, de acordo com o que é dito na célebre frase que Hamlet dirige a Horácio e que consta, aliás, na epígrafe de um dos poucos ensaios filosóficos que Pessoa deu por terminado: Da Impossibilidade de uma Ciência do Léxicon. 7 Num aforismo seu, o poeta define, com a ironia que lhe conhecemos, a caução irracional inscrita no discurso filosófico:

«É inútil argumentar com qualquer filósofo pois a sua filosofia não depende do seu intelecto mas sim do seu carácter.» 8

Convicção esta agravada no seu caso em que o autor textual se auto-multiplica em caracteres, prolongando em si mesmo o estatuto da ficção. O processo da heteronímia pode ele mesmo ser perspectivado na modalidade de gnóstica paródia, que mimetiza em produção literária a demiurgia do cosmos que habitamos, cercados pela perpétua cortina do erro e da ilusão. Imaginemos o Pessoa ortónimo a representar o papel do demiurgo platónico, surgido no proto-gnóstico Timeu, e, à semelhança dele, delegando em criaturas por si geradas a concepção do mundo, neste caso, então, a escrita de textos que o poeta-pai, na sua olímpica e abstracta solidão, não seria capaz de moldar; visto que tais criaturas construirão ludicamente olhares específicos, provavelmente mais próximos dos seres profundamente incarnados, com eles partilhando o sentimento de inquietude e intentando por vezes ardis para o superar - como nos rostos distintos do naturalismo artificial de Caeiro e do epicurismo estóico de Reis (não suicidário como o é o racionalismo aporético do Barão de Teive, segundo Richard Zenith o mostrou), ou da sublime auto-comiseração ontológica de Campos. E na compreensão que Pessoa sabe demonstrar pelas agonias face à opaca promessa de mortalidade, especialmente por intermédio das máscaras de Campos e de Bernardo Soares, divisamos a sua missão de vate da miséria, ampliada por ser lúcida, da humana existência.

Existir, como o étimo latino o indica, implica o ser-se através do tempo, com um fim e um início, esse mesmo tempo que se esgota nas ampulhetas individuais que constituem a clepsidra arbitrária da História. Não é de surpreender, portanto, que as teses das filosofias do existencialismo, imanentistas/ateístas, do nosso século, de Heidegger a Camus e a Sartre - relativamente às quais se pode argumentar ser Pessoa um precursor e/ou um contemporâneo que poeticamente as ultrapassa, graças ao seu génio noético-literário e à sua hierologia provocatoriamente conscientizada - apresentem fortes analogias genéricas com o cósmico pessimismo gnóstico (por isso um Stuart Holroyd, na linha de Hans Jonas, chama gnosticismo secularizado ao existencialismo materialista do séc. XX). Tais teses são, contudo, pseudo-gnósticas porque carecem da dimensão de transcendência espiritual, inscrita no sujeito e no Deus longínquo; isto é, uma realidade metafísica que encoraja positivamente a deriva vivente do gnóstico - metafísica esta que se aloja no Pessoa ortónimo, polvilha-se em outros heterónimos, e está presente apenas por demonização nas máscaras de Campos.

No poema Natal, por exemplo, a gnose pessoana discorre em claridade e mistério, antecipando cronologicamente o conselho de um certo sábio Akkad, personagem do romance Monsieur or The Prince of Darkness, de Lawrence Durrell; Akkad representa na trama o adepto de uma seita gnóstica novecentista que transmite a sua mundividência aos protagonistas da narrativa, dizendo-lhes que, quando as palavras por ele proferidas começarem a fazer sentido nas suas mentes, eles deverão então «ou parar de falar ou tornarem-se poetas». 9

Pessoa seguira a segunda destas vias, para nosso gáudio de aprendizes seus neófitos. Mas nem as palavras camuflam o abismo da condição onde fomos despejados, como o sentido dos versos de Natal no-lo deixam perceber:

«Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.» 10

A primeira quadra ressuma uma amargura pelo politeísmo que sucumbe diante da emergência do éon histórico do cristianismo. Se há uma outra nova eternidade, mas era melhor a que passou, isso significa que o fluir temporal não augura progressos substanciais, projectado no futuro que anuncia. Aqui, a visão gnóstica do tempo consiste em afirmar o inelutável declínio gravado no próprio tempo em si: a Eternidade que temos, ainda que maiusculada, não releva senão do Erro, também maíusculo, e portanto é uma fraude ontológica. A ilusão deceptiva permanece na História a despeito da mutabilidade do zeitgeist. O niilismo pessimista de Pessoa - que Eduardo Lourenço situou algures entre Nietzsche e Beckett, dois autores quasi-gnósticos 11 - atinge neste poema uma altitude extrema, a começar no anti-hegelianismo da primeira estrofe, que abala toda a confiança em esperar que o tempo histórico esteja dotado de sentido evolutivo. Já a segunda quadra faz ruir alegoricamente os pilares comuns do saber experimental metódico e da crença cultual: a ciência é a cega a lavrar um campo inútil; a fé é a louca que habita um sonho. Ambas são súbditas de uma outra entidade movediça que é a linguagem simbólico-verbal; linguagem da qual o poeta extrai as palavras que usa, embora nelas observe o disfarce sofístico que as falseia numa aparência errónea e errante. Os deuses reduzem-se então a palavras e estas tudo ocultam quando julgamos descobrir-lhes as chaves semânticas.

Pessoa mostra, ao modo de oxímoro, como as pretensões de Platão se derrotam e se cumprem em simultâneo: o ser que as palavras dizem é uma longa cadeia de ficções, mas é só por intermédio das ficções, que as palavras configuram, que enfim podemos conhecer e comunicar a verdade dos embustes que pensamos. Daí que, em Pessoa, a poesia demonstre ser mais fiel à natureza da linguagem do que a filosofia, pois a palavra poética amplia na linguagem aquilo que a constitui, isto é, a sua capacidade de fingir, de metaforizar e edificar simulacros. E resta ajuizar se a eufórica saúde humana não preferirá sempre a expressiva aparência deleitosa ou terrível da poesia à crua descoberta perceptiva de um vazio nirvânico sob a máscara abstracta da pulsão filosófica - não é em vão que esse divórcio é consumado por um Platão pitagórico: quando à vitalidade sensível e de-mencial da inspiração poética, ele opõe a pesquisa filosófica como uma ascética aprendizagem para a morte.

Consciente dessa cisão, a criação literária pessoana alimenta-se de uma ansiedade que reune poesia dramática e filosofia numa estratégia de intensificação interrogativa, trágica porque, ao contrário de Édipo, a Esfinge devorará o questionador, por mais brilhantes que sejam as respostas que este enunciar - por isso ele as não termina, deixando as obras inconclusas para o formato livro, numa espécie de compulsivo complexo de Xeraazade: escrever sempre, interminamente, para adiar ou distrair a morte. Ansiedade que pode entender-se pelo prisma da teoria bloomiana da influência, na apropriação simbólica que o poeta faz dos poderes míticos de Proteu, numa disputa edipiana com Shakespeare, jamais querendo cristalizar-se definitivamente numa perspectiva fixa, mau grado os fios latentes que fazem da legião heteronímica uma irmandade hídrica de cabeças com corpo único. Essa instabilidade essencial das perspectivas, que o autor desejou fazer sua, regulada pelas inescrutáveis leis do caos, é válida igualmente para decompor o veneno sublime que o leitor ingere com as palavras do ortónimo poema Natal: bem podem ser os nossos deuses só palavras, mas as palavras do poema dizem-nos quão devastador pode tornar-se o efeito dos conteúdos que elas transportam consigo; pois algo do verbo pré-babélico do princípio do tempo nelas é resíduo ainda, Pessoa assim o crê, ou não teria ele escrito tanto no tempo intenso do seu existir. No valor ontológico do verbo esconde-se para ele o segredo maior ao alcance humano, um ouro alquímico anterior à Queda, por isso apto a exercer uma acção efectiva, psicotransformante. Leiam-se as três estrofes com que se encerra o poema em quintilhas («Sangra-me o coração. Tudo que penso»), já atrás citado. Aí, entre um espelhismo mortuário operado entre Deus e este mundo como cadáver d'Ele (num processo de putrefactio alquímica), revela-nos o poeta que, pelo Verbo, o humano resgata (e ressuscita) a identidade originária de Deus, anterior ao declínio cósmico que corresponde ao império do tempo, da morte e do mal.

«O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele
Que, esse Deus exumado, reflectiu
A morte e a exumação que houveram dele.
Mas ‘stá perdido o selo com que sele
Seu pacto com o vivo que caiu.

Por isso, em sombra e natural desgraça,
Tem que buscar aquilo que perdeu -
Não ela, mas a morte que a repassa,
E vem achar no Verbo a fé e a graça -
A nova vida do que já morreu.

Porque o Verbo é quem Deus era primeiro,
Antes que a morte, que o tornou o mundo,
Corrompesse de mal o mundo inteiro:
E assim no Verbo, que é o Deus terceiro,
A alma volve ao Bem que é o seu fundo.» 12

Sob a mesma luz com que se invoca, a escrita descobre-se como tarefa salvífica que permite à consciência percepcionar o espírito interno que nela lateja, cativo, de outra forma indiscernível. Ao distinguir as diferentes temporalidades helénica, cristã e gnóstica, Henri-Charles Puech projecta em alegoria geométrica o carácter descontínuo da vivência gnóstica do tempo, sujeito à ruptura liberadora, que coincide com esta auto-descoberta da flâmula subjectiva iluminante.

«Pela exigência de uma salvação imediata, [o gnosticismo] rompe com a servidão e a repetição do tempo cíclico do helenismo, bem como com a continuidade orgânica do tempo unilinear do cristianismo; ela fará voar em estilhaços (a palavra não é demasiado forte) um e outro. Em termos mais breves e mais figurados, a partida joga-se entre três concepções opostas, onde o tempo pode ser representado respectivamente, na primeira por um círculo, na segunda por uma linha recta, na terceira, enfim, por uma linha quebrada.» 13

A linha quebrada do tempo gnóstico, tal como este é experienciado pelo sujeito, manifesta não só a conquista solar volitiva de um saber e o desejo imperioso do auto-reconhecimento que é redenção vivida, mas também a atormentada dúvida lunar; a suspensão do eu no tempo reflexivo que busca: ou uma clarabóia nos túneis enganosos do mundo demiúrgico material ou, por outro lado, fugir à crença acrítica em falsos ídolos anestesiantes do intelecto. Seja qual for a modalidade prevalecente, a experiência religiosa gnóstica do tempo jamais será um caminho simples e previsível, pois nela tudo se perde quando se julga ter sido tudo ganho - numa analogia que podemos encontrar mimetizada estética, ritual e psicoterapeuticamente nas tibetanas mandalas de areia, que, por mais maravilhosas e complexas, se desfazem com um sopro. A travessia desse caminho virtual não termina na morte física, já que os condicionalismos de cada vida - sujeitos que estão à temporalidade externa - dificilmente terão meios amplos e aptos a esgotar os requisitos transumanos do périplo transmigrante; esse cosmodrama no qual vamos sucessivamente vestindo novos figurinos psicofísicos. Numa das suas mais recentes leituras da poética pessoana (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, 1997), Eduardo Lourenço analisa esta imortalidade atemporal, neoplatónica e gnóstica, tendo em mente os poemas iniciáticos ortónimos.

«Por ser naturalmente "divina", a alma é naturalmente imortal, isto é, fora do tempo.

Tempo e espaço são as formas originais da queda da alma no corpo. São o próprio corpo, incapaz de se pensar como alma, como manifestação primordial da unidade, única realidade, mesmo que não possamos pensá-la senão na ordem da pura ausência.» 14

O suposto estádio kármico excepcional atingido pela pessoana centelha demonstraria prometeicamente a insuficiência gnoseológica da vida que é a nossa, condicionada pelo espaço e pelo tempo, paredes celulares de um calabouço no qual o nosso eu profundo se debate, enviando sinais transformativos, como sintomatologias cuja angústia a ampliação gnóstica da consciência deverá procurar descodificar, tanto por uma cognição introspectiva individuada como pela imaginação intuitiva transpessoal (e daí ter Jung registado a revitalização de um olhar civilizacional com contornos gnósticos que a psicologia do inconsciente a partir de Freud teria desencadeado na cultura contemporânea). E o exercício da cognição imaginante é um vector de liberação gnóstica que arranca o sujeito à submissão absoluta diante da literalidade fenoménica 'hiper-realista' do vivido, denunciando-lhe o quanto esse jugo é uma ilusão intensificada pelo tempo; essa falácia a que nesta existência não nos podemos livrar a não ser pelo escape a esse despotismo arcôntico inscrito na literalidade do mundo físico. Pioneira na investigação e interpretação do esoterismo pessoano, Yvette Centeno anota essa ânsia de fuga do poeta gnóstico, acossado pelo aguilhão hierológico que o leva a perseguir um saber-outro que ultrapasse as miragens gnoseológicas que a nossa comum condição vivente, pensante e sentiente nos outorga:

«A par da escrita heteronímica desenvolve-se em segredo uma escrita ortónima, fragmentária (...). Por ela podemos ver como ao longo da vida se foi operando a busca obsessiva, contínua, se bem que não sucedida. O universo fecha-se-lhe, como se fechou a Fausto, e a Deus não se chegará nunca.» 15

Mas se na discursividade de um Campos o vislumbre de Deus é negativo, ou, como nos casos de Mora e Caeiro a imanência panteísta seja soberana na imagem desses deuses pluriformes que são todos os seres empíricos; já poesia há, ortónima, a testemunhar uma positividade, mesmo que paradoxal, na intuição de uma divina transcendência, longínqua, que incumbe o poeta de uma missão extraordinária. Missão da qual Pessoa se afirma constante e obsessivamente consciente, sobrevalorizando o tempo da sua vida ao tomá-lo como um precioso bem que não pode desbaratar - nem na prossecução de uma actividade profissional que o ocupe em excesso, nem, menos ainda, na hipótese, logo posta de parte, de um casamento com Ofélia.

«Há um poeta em mim que Deus me disse...» 16

Dir-se-ia que este Deus funciona na vida e obra pessoanas como o fantasma do pai de Hamlet, introduzindo um dilacerado dramatismo no tempo vital que percorre. Enquanto Hamlet hesita febrilmente até cumprir o pedido do pai, e ao matar por fim o tio morrerá junto com ele, assim também Pessoa se vê compelido por um rei desconhecido a aniquilar a vida em si, para num serviço sacrificial se oferecer na obra alquímica do verbo à humanidade vindoura (num processo que nos permitiu identificar um psicomítico complexo de Inês; isto é, a pulsão de reinar depois de morrer, tão comum entre criadores, incompreendidos ou silenciados no seu tempo de vida 17). Mas esse oculto rei de que falam os versos de Pessoa não tem ascendência familiar ou dinástica sobre a esfera dos mortais, pois nele vemos a personificação do Deus gnóstico, que remete o sujeito para o que nele perdura para além das fronteiras do tempo existencial do indivíduo. A criação artística ou a acção virtuosa desenrolam-se sob o regime de uma outra lei que não a da natureza biológica, um tempo outro que não o da vida orgânica; um conselho profundo que Pessoa dirige a todos nós diz isto de forma inigualável, e avistamos nessa sentença o farol de sentido que alumiou o caminho do poeta.

«Tu és tudo o que a vida não é; o que de bom e de belo se souber deixar e não existe.» 18

Mas como aceitar que o bom e o belo não existem se podem ser marcas que permanecem, deixadas pela nossa passagem através da vida? Afigura-se-nos uma resposta: porque este não existir deve compreender-se como concernente àquele tipo de realidades que se evadem à tirania do tempo, colocando o sujeito humano em contacto com experiências evanescentes que não pertencem intrinsecamente à «Cruz Morta do Mundo». 19 A qualificação ontológica deste não existir em concretude surge frequentemente em textos pessoanos; e já que falávamos do rei metafórico de que ele se diz enviado, é oportuno ora referir um dos mais famosos, e citados, sonetos seus - musicado por Milton Nascimento -, o XIII do ciclo Passos da Cruz, que assim principia:

«Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
(...)»

Os dois tercetos finais explicitam exemplarmente o confronto mítico entre a atemporalidade originária antes da Criação e o tempo, que é apanágio do mundo após a queda.

«Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas ah, eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...» 20

Repare-se na tensão antitética resultante do não saber se existe o rei e o facto de um saber outro derivar de o sujeito poético ter visto esse Deus - com o saber visual das sensações, que parecem dotadas de olhos inacessíveis à inteligibilidade objectiva. Das sensações fez Pessoa uma metafísica - como o analisou José Gil -, tornando-as paradoxalmente numa fonte gnoseológica trans-sensorial; linguagem reveladora das emoções que, para o poeta, ultrapassam a limitada aridez do raciocínio dedutivo. Mas interessa-nos agora reter a forma como o autor fala da anterioridade do eu mais profundo face ao tempo, ao espaço, à vida e ao ser. Trata-se aqui do pressuposto gnóstico que sustenta ser cada uma das centelhas espirituais que nos animam tão antiga como o próprio Deus estrangeiro; são elas congeniais d'Ele, seus pares menores, não criadas com as coisas materiais do cosmos que habitamos - e de entre essas coisas, a mais abstracta delas: o tempo, que as ordena e regula e nos aprisiona.

As altas tradições da letra do poema integram a gnose pois incluem as crenças órfico-pitagóricas na metempsicose, reformulada por Platão e tornada lugar-comum por teósofos lidos e traduzidos por Pessoa. Na simbólica viagem do espírito entre os mundos, momentos há de lembrança emotiva, de saudade gnosticamente percebida, que aproximam esse eu primevo de um tempo ancestral que é em si a negação do tempo, ou a suspensão dele. Podemos lê-lo num fragmento incluído no Livro do Desassossego.

«Dizem os ocultistas, ou alguns deles, que há momentos supremos da alma em que ela recorda, com a emoção ou com parte da memória, um momento, ou um aspecto, ou uma sombra, de uma encarnação anterior. E então, como regressa a um tempo que está mais próximo que o seu presente da origem e do começo das coisas, sente, em certo modo, uma infância e uma libertação.» 21

A promessa vivida da libertação espiritual é especificamente gnóstica pois releva de um saber e não de um acreditar, de acordo com as palavras que subsistiram até nós, fragmentárias, de um Basilides ou de um Valentino; a este último heresiarca se atribuem as seguintes máximas, colhidas em Hans Jonas (já Elaine Pagels, dá-as como sendo da autoria do «professor gnóstico» 22 Teódoto, redigidas na Ásia Menor ca. 140-160), que condensam a promessa gnóstica da iluminação interior do pneuma espiritual.

«O que nos faz livres é o conhecimento de quem fomos, [e] no que nos tornámos; onde estávamos, [e] naquilo em que fomos atirados; para onde velozmente vamos, [e] de onde nós somos redimidos; o que é o nascimento e o renascimento.» 23

Mas esse saber revolutivo, dada a sua eclosão no sujeito ser de ordem não empírica, isto é, não fenoménica, presta-se à dúvida mais inquietante; convicção que flutua ao sabor dos estados de alma e da disposição da psique individual. Tratando-se de um peculiar caso de poeta-filósofo como Pessoa o é, o tempo existencial e psicológico introduzirá as tensões e os antagonismos no modo de aceitar a possibilidade em descortinar algo do mistério do mundo - mesmo se o sujeito poético heteronímico insista no embuste de não haver mistério do mundo nenhum.

Num texto redigido em inglês, teria Pessoa os seus vinte e dois anos, cujas palavras iniciais já aqui inserimos no tocante à auto-interpretação feita da aliança dialéctica entre poesia e filosofia, podemos ler uma magnífica declaração do sentido gnóstico da sua poesia; prosa autopsicográfica na qual se articulam, em harmonia inesperada neste indisciplinador de almas, vários nexos teóricos que vivamente corroboram o nosso discurso, como sejam: a captação da beleza do mundo no tempo momentâneo que deflagra a criação poética; a explicação da poesia como o testemunho atónito de alguém que experimentou uma queda abrupta na realidade terrena; e o desejo de conservar a recordação de um outro mundo, pela reminiscência platónica, que é saudade de um tempo anterior à temporalidade vivente, através da escrita poética. Eis no original o pórtico e o explicit deste texto sublime.

«I was a poet animated by philosophy, not a philosopher with poetic faculties. I loved to admire the beauty of things, to trace in the imperceptible through the minute the poetic soul of the universe.

The poetry of the earth is never dead. ( ...)

For poetry is astonishment, admiration, as of a being fallen from the skies taking full consciousness of his fall, astonished about things. As of one who knew things in their souls, striving to remember this knowledge, remembering that it was not thus he knew them, not under these forms and these conditions, but remembering nothing more.» 24

De nada mais se recorda o poeta, embora saiba que, desse lugar exterior ao nosso cósmico tempo, é a poesia o receptáculo de um conhecimento quase oracular - tal nos diz ele, no soneto parcialmente citado, acerca das «bruscas frases» que a seus «lábios vêm» e lhe soam a «um outro e anómalo sentido». 25 Como o comentávamos antes, de modo algum o optimismo gnoseológico de Pessoa se confessa assim invariavelmente confiante nos conteúdos achados pelo espírito ou despertados por epifanias sensoriais. O gnosticismo pessoano é dilacerante e atormentado, mas iluminante até à cegueira, amplificador até ao silêncio; predicados afinal de toda a genuína gnose - do dualismo mais radical ao gradativo -, interpretada como consciencialização aguda da nossa fissão ontológica, do exílio em que estamos face ao lugar abissal de onde outrora proveio a essência de nós mesmos. Pessoa enuncia-o com a sua habitual lucidez de um redactor de epitáfios.

«Filhos da treva e da dúvida, somos o não encontrar-se, o sono e o silêncio de nós próprios.» 26

O sono é topos omnipresente da palavra pessoana, que com ele se debate e é também no sono, dissémo-lo, que incide uma das caracterizações que os textos gnósticos apontam para a imperfeição do nosso estado; o espírito subsiste alienado numa duração vital soporífera de forma a não conseguir alcançar a verdade de si próprio. O narrador da desassossegada prosa expressa-o em frase desgarrada e frustre:

«Há muito tempo que não sou eu.» 27

No Pimandro, tratado proeminente do Corpus Hermeticum, uma das leituras de Pessoa, destacam-se o sono e o amor - hypnos e eros -, como marcas da descida passional do espírito humano envolvido no abraço da matéria. Neste romancear mitológico de uma antropogonia dual, o sono intervala e diminui o tempo activo da consciência, enquanto a divisão sexuada dos corpos físicos institui uma carência em cada indivíduo, signo de inacabamento e cilada da natureza para perpetuar infinitamente, por meio dos organismos finitos, a sua paixão pelas entidades metafísicas que narcisicamente se enredaram na miragem idílica da matéria.

Não obstante ser esta uma versão da queda do Antropos primordial que originou o actual género humano, o hermetismo é a corrente menos pessimista da gnose, a mais helenizante e, por isso, a que com menor intensidade bélica se serve da radicalização maniqueia entre a Luz e as Trevas, ao pintar o seu quadro do universo. Stuart Holroyd sintetiza as razões de haver no hermetismo uma gradação na escala do ser e não um abismo inultrapassável entre o que está em cima e o que está em baixo, ao sublinhar uma importante diferença, nas imagens de Deus e do Demiurgo, que separa a gnose hermética das outras formas de gnosticismo judaizante ou cristológico.

«Outra diferença notável [entre o Gnosticismo Cristão e o Hermético] é que, neste último, o Deus mais elevado e o criador, ou Demiurgo, não são designados como poderes opostos ou antitéticos, e consequentemente o cosmos e o mundo material são entendidos como ordens do ser deficientes mas não degeneradas, não havendo nele nenhuma expressão da característica repugnância gnóstica face ao físico e ao material.» 28

Antes de regressarmos a Pessoa, vejamos ainda como Harold Bloom analisa esta questão no seu Omens of Millennium - The Gnosis of Angels, Dreams and Resurrection, ao sopesar a ambivalência com que a visão hermética do humano no tempo se desdobra; se bem que a experiência da encarnação terrena esteja subordinada à premonição da morte que o sono simboliza e à incompletude exposta no dimorfismo sexual, para a gnose hermética a nossa essência persiste inalterada para além do tempo, vigilante, andrógina e inquilina da eternidade.

«Acostumados que estamos às considerações Judaicas e Cristãs acerca deste acontecimento, ou às iradas inversões Gnósticas dessas mesmas considerações, somos promissoramente de início aquietados pelo tom equalizante desta versão Hermetista. A sua forma é subtil e nostálgica, e também sobrenaturalmente calma, ainda que descreva catástrofe e não uma Queda afortunada. Sermos drogados pelo abraço da natureza naquilo que designamos como mais natural em nós, o nosso sono e os nossos desejos sexuais, é ao mesmo tempo um fado agradável e infeliz, uma vez que o que permanece imortal em nós é tanto andrógino como insone. O Gnosticismo Pagão dos Hermetistas é bastante mais gentil e resignado no que concerne a este paradoxo do que tudo o que possamos encontrar no Gnosticismo Judaico ou Cristão.» 29

A perspectiva hermética convida à harmonizante serenidade e apaziguamento sapienciais, convocando igualmente uma espécie de compaixão interrogativa que visa reabilitar ontologicamente os estratos mais elementares de tudo o que existe; tripartindo-se então nas vias heterodoxas propugnadas pelo humanismo hermetista: a magia (animada por intuitos positivos, como no Próspero d'A Tempestade, obra dramatúrgica cujo enigma sempre obsidiou Pessoa), a alquimia e a astrologia; temáticas que se estendem por páginas soltas de meditações ortónimas.

Fascinado pela cosmovisão pagã, não raro afirmando que Cristo é simplesmente o deus que faltava no panteão, Pessoa reflecte na sua obra os propósitos e a tenacidade do filósofo hermético, embora tal máscara não se ajuste inteiramente ao seu rosto aturdido pela percepção do nada absoluto e da mentira universal como verdade do mundo sem mistério dentro. Mesmo assim, a alquimia operada na criação poética - tal como o veria Artaud em relação à criação teatral -, que casa o animus e a anima do sujeito numa internalização transformativa do tempo existencial, é prefigurada por Pessoa dentro do mais moderado dos gnosticismos, que tem em Hermes Trimegisto o seu lendário patrono. Medite-se nesta cabalística anotação que, por estar em francês - idioma com o qual Pessoa mantinha uma ligação cultural distanciada -, põe a hipótese de ser uma apropriação transcrita ou uma reflexão desencadeada por um dos muitos fólios do género que o autor consultou - este, presumivelmente, nessa língua. É o magistério de um Hermes hebraizado que aqui lemos, confiante em devolver ao humano a superior condição que era sua antes da Queda. Magia essa possível se se reencontrar a Palavra hermafrodita, religante e perdida, anterior ao tempo da História; visão que é singular mitopeia da criação literária, dado que sagra o poeta-alquimista com a missão de prover a reintegração - hermetista e hermenêutica - do humano na sua antiga, nobre e esquecida ontogenése.

«L'homme n'était pas destiné à être ce qu'il est: il n'est devenu tel que par la Chute. Retrouver la Parole c'est retrouver la vraie Loi Humaine, l'Adam primitif et androgyne, fait ainsi à l'image de Elohim. Faire en soi même le mariage des deux principes - c'est là la Loi Humaine retrouvée, la vraie création de la pierre philosophale.» 30

Apóstolo do frenesi da diversidade imanente, Álvaro de Campos, na sua totalizante ambição de cantar em um só tempo tudo o que habita no espaço, bem pode ser lido como uma tradução literária da sentença hermética do Pimandro que afirma que o que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima. A Passagem das Horas, um dos mais longos investimentos poéticos de Pessoa neste heterónimo, tem na sua estrofe inaugural o propósito programático de ser e viver a simultaneidade absoluta - e repare-se como o próprio título A Passagem das Horas manifesta um antagonismo de contornos perenes: o desejo do humano afrontar o domínio que o tempo exerce sobre aquilo que ele é, ao fabricar maquinismos que possibilitam a sua medição, ou seja, pretendendo atenuar a sua estranheza ao dividi-lo matematicamente, atribuindo-lhe unidades mensuráveis; pois só a partir da construção do relógio pendular, proporcionada pela física galilaica, passámos a poder avaliar com apreciável precisão a inexorável passagem das horas.

«Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.» 31

A euforia epidérmica e neurótica de Campos mascara a natureza ultra-depressiva do seu júbilo face a uma hipotética unidade do ser, no qual o mundo físico, natural e artificial comungariam em apoteose cosmopolita num só tempo. Cerebral e afectivo, Campos sente-se garrotado em clausura na esfera material regida pelo demiurgo. A metafísica, que o libertaria, como um cósmico buraco de verme, da passagem metronómica das horas, não chega a ser escape para Campos avistar as paragens do Deus estrangeiro ao mundo; essa metafísica desconjunta-se e não possui mais ser do que os célebres chocolates da não menos célebre pequena suja que os devora em Tabacaria. Apenas o tempo estático e paradisíaco da infância é obsessão transfigurada que redime e purifica, como se nele a intacta febre animal dos instintos se cruzasse com uma hierofania assexuada. Em Caeiro, por exemplo, o fechamento na natureza emoldurada não é disfórico, mas ironicamente prazeroso - pois pensar é estar doente dos olhos - não se quebrando essa concórdia ilusória com a entrada em cena de um travesso Jesus-menino, patrono herético no altar íntimo do poeta-pastor.

Também Yvette Centeno nos persuadiu para a recorrente significância do tempo infantil na obra daquele que afirmou, sem subentender lugar-comum, serem as crianças o melhor do mundo. Escreve a autora, no ensaio seu A Água e a Morte na Obra de Fernando Pessoa, que

«a ideia de ser criança é muito cara ao poeta. Por um lado liga-se ao único tempo em que terá sido feliz, por outro lado liga-se à ideia que ele tem de que na criança não se põe o problema de uma sexualidade definida e assumida, de que na criança não existe o desejo. Nos poemas juvenis de Alexander Search podemos já encontrar o seu horror do sexo e a conotação do sexo com o mal. Em Regret, imagina-se criança junto doutras crianças, sem ter sexo, sem sentir amor.» 32

Retomemos então as duas limitações da humana condição retratadas no hermético Pimandro, e observemos o modo de Pessoa lidar com elas. Quanto ao sono - que para ele é, muito gnosticamente, a essência mesma desta vida -, deseja o escritor neutralizar a sua acção por intermédio de uma actividade reflexiva ciclópica, que o devir do verbo transmuta, mesmo que o temporário abraço de hypnos seja a metonímia existencial de um nada fatal que seduz e apavora o poeta. No que respeita a eros, esse ático deus que chama a si o incêndio do amor e da sexualidade, ele surge, como é sabido, violentamente recalcado, nostalgicamente morto, ou absurdamente não sentido pelo sujeito poético; irrompendo, ora em abstracto e improvável devanear fugaz, ora em fúria catártica sob as formas da negatividade auto e hetero-destrutivas, ou seja, entre o masoquismo histérico e a misoginia sádica.

Como vários estudiosos já o ajuizaram, Pessoa irrealizou o devir erótico em qualquer das máscaras que segrega, incluindo a biográfica, e é numa androginia neutra e procurada que ele se revê como criança triste em quem a vida bateu. O tempo da infância não constitui somente o lugar fétiche, sempre reinventado, no qual o sujeito poético saudosamente se extasia; ele é metáfora de um paraíso perdido, paragem no tempo que resgata a hora absurda, infeliz porque consciente, da adultez do poeta. A infância é o simulacro possível da androginia, melhor dizendo, da negação dela, no universo biológico sexuado a que o humano pertence. Também para Nietzsche era a criança a figura forte da potencialidade criadora, do tempo por realizar; Pessoa elege-a como o andrógino hermético por defeito, no período de vida orgânica anterior à diferenciação dos princípios que a natureza determina para a reprodução. A infância seria também um tempo ainda embrionário da futura personalidade vivente (e padecente) na qual se pressentiriam auxílios - que cessarão depois - de esferas mais perfeitas do ser; representadas por esses espíritos-guias que Bernardo Soares vê, magoadamente, afastarem-se da criança que fomos à medida que se aprofunda a incarnação individual da centelha na caminhada, então solitariamente terrena, em direcção à adultez - e a referência ao cevado como escatológico destino do animal humano é a mesma que Beckett fará numa das respostas lacónicas e aceradas dadas por Willie a Winnie, em Dias Felizes.

«Sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.» 33

E em alguns outros parágrafos de Bernardo Soares, datados de 1931, a perda da infância mistura o luto freudiano com a angústia gnóstica que entende o massacre do tempo como o sentido profundo e trágico do mundo imanente. Mas, numa outra dimensão, figurada no texto pelo andar lá de cima, os pitagóricos sons simbólicos de um piano tocado por uma menina de outrora alegorizam a reminiscência de uma outra realidade, anónima e longínqua, que se não confunde na memória individual com o caos da mutabilidade.

«Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.

(...)

Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a ( minha ) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me dói no cérebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.» 34

Esta saudade dirigida para um pretérito infantil subjectivo povoa densamente a obra pessoana - paralelamente a essa outra (meta)saudade gnóstica pelo Cais Absoluto e arquetípico, expresso na Ode Marítima, de onde o ser partiu antes desta irreal navegação pela temporalidade. A insistência com que o sujeito poético evoca o som do sino antigo da sua aldeia urbana ou o tempo em que festejavam o dia dos seus anos, transfigura esta saudade impossível de confortar, a não ser pelo testemunho artístico que finge a verdade que a motiva. Há nela uma intensidade e dor inapeláveis diante do vazio do seu presente que é um fruto letal da sua consciente lucidez. Há nela uma intensidade e dor inapeláveis diante do vazio do seu presente que é um fruto letal da sua consciente lucidez. Como o analisou com argúcia antes de muitos Natália Correia (em ensaio de 1957: Poesia de Arte e Realismo Poético), o horizonte da poesia pessoana é o da liberadora chama gnóstica, em que «o lume subversivo que o poeta trazia na ponta da espada» quebra as categorias ilusórias do real convencionado (real este que se compraz em ver-se traduzido esteticamente na modalidade menor que a autora designa por poesia de arte), para se dirigir ao domínio arquetípico do imaginário activo/alquímico (ou seja, a esfera de onde brotará um genuíno realismo poético, segundo Natália).

«O que há de mais profundo e oculto na poesia de Fernando Pessoa é esta chama alimentada pela esperança da liberdade cósmica. O negativismo com que o estigmatiza a higiene dos prosélitos da poesia de arte não é uma derrota psicológica. É uma conquista que lhe permite sair das categorias do imediato para lançar uma ponte entre o real e o imaginário.» 35

E se a gnose é conhecimento, o fáustico Pessoa vê nesse conhecer uma dádiva pandoriana que a alma trouxe para a vida penhorando irremediavelmente, por tê-la obtido, a experiência, agora desfeita, da sua felicidade; porque a felicidade para ocorrer em vida tem de estar invariavelmente acompanhada de uma ignorância instintiva que frui o mundo sem o questionar. Acossado pelo negrume absoluto e pela percepção de que o inferno se situa aqui, neste mundo onde vivemos, como em vários lugares o afirma, Pessoa participa das mais sombrias perspectivas que a multiforme tradição do gnosticismo ousou engendrar. O archote do hermetismo segui-lo-á então de longe apenas, nessas áleas desoladas e mortíferas, mais afins de uma (quasi)gnose de radical desventurança terrena, professada menos por Mani que por Marcião. Nesses píncaros intoleráveis de onde só o nada a vista alcança, Pessoa vê o tempo representado como uma alienígena presença opressiva que tudo impregna, mas que o pensamento não conseguirá jamais digerir, por não lhe pertencer inteiramente, mesmo que intente captar-lhe o seu propósito - seja no domínio conceitual e amplo, seja no tempo particular e subjectivo que daquele descende. É à persona translúcida de Bernardo Soares que Pessoa reserva as palavras de um desesperançado diagnóstico sobre o sentido do tempo nos seus modos de ser, todos estes se acabando por entrosar numa figura personificada e nadificante que aos poucos simplesmente nos mata - numa linha de expressão análoga do verso de Campos que é, para Eduardo Lourenço, «a mais profunda e a mais dolorosa metáfora do tempo: "o nada vivo em que estamos".» 36

«Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.

Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. (...)

Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir.» 37

Num outro apontamento solto, vindo a público mais recentemente, o poeta cogitador pergunta-se acerca do que é o tempo, depois de lhe identificar três dimensões: a duração, a direcção e a mudança. Esta última parece ser a dimensão que mais lhe interessa, quando aplica o princípio da identidade para afirmar que as coisas existentes diferem de si mesmas em virtude do regime imposto pelo tempo - anotação bilingue anglo-lusa de que citamos um excerto originalmente escrito em inglês:

«Será o tempo coexistência? Então, enquanto uma coisa dura coexiste consigo própria? Mas porque não há dois coexistentes iguais, um coexistente não é igual a si próprio se coexistir consigo próprio; daí a mudança.» 38

Este problema da coexistência da diferença díspar num só sujeito é assunto pessoano que se materializa no seu estatuto de artista do pensamento e da palavra. Guiado pela pulsão literária, a sua inata vocação mimética combina-se com a imposição autoral da diferenciação; pois tudo o que coexiste no tempo faz com que as coisas tenham de diferir entre si e em si mesmas também porque mudam. Na ânsia da mudança que é diferença, Pessoa ensaia instalar-se nas perspectivas daqueles que o obcecam, tanto pelo reconhecimento e admiração como pelo sentimento competitivo provocado por tais rivais eleitos de uma escassa plêiade. Essa mimésis denegadora pretende ser também uma dialéctica superação, como nos casos em que Pessoa responde à genialidade do drama shakespeareano - como atrás o mencionáramos -, transformando-se ele próprio, sacrificialmente, no palco para o metadrama heteronímico, ou, depois de anunciar a vinda de um super-Camões, o facto de empreender um duelo simbólico com o Camões épico, através da composição de Mensagem. Literária e filosoficamente, muitos outros exemplos se podem encontrar de confronto diversamente titânico: com Goethe, através da tragédia subjectiva do seu Fausto inconcluído; com Whitman, por meio das grandes odes de Campos; com Nietzsche, por via não só do neo-paganismo teorizado pelo heterónimo filosófico António Mora (que a investigação de Luís Filipe B. Teixeira tem privilegiado), mas também por meio desta mesma gnose luciferina em cujo encalço aqui seguimos; com Maeterlinck e António Patrício, pelo drama O Marinheiro, publicado em 1915 (tão estático quanto gnóstico; senão, compare-se o conto do marinheiro naufragado numa ilha estranha, que nomeia a peça, narrado pela Segunda Veladora, com o alegórico Hino da Pérola da tradição gnóstica, atribuído a Bardesanes); com Pascoaes - esse gnóstico sui generis da razão romântica na literatura e no pensamento portugueses -, mercê de um visionarismo transcendental da poesia ortónima e do seu reverso no panteísmo disfarçado de Caeiro. Mas nenhum desafio parece mais temerário do que aquele em que Pessoa ultrapassa o ágon poético e o território humano do Job sofredor - citado por Bernardo Soares na frase: minha alma está cansada de minha vida - para se colocar, em cenografia esotérica, mimando a acção de Deus. Em poema ortónimo de dois versos, com data de 1930, o poeta sentencia e interroga-se em seguida:

«Deus não tem unidade,
Como a terei eu?» 39

À imagem de uma divindade pluralizante, Pessoa opera a taumaturgia heteronímica numa dissociação mistérica do eu, que é melhor compreendida se lermos uma passagem versando a possibilidade de o espírito humano experimentar aquilo que o autor chama a União com Deus - do seu fragmentário Ensaio sobre a Iniciação, composto em inglês. Embora em outros locais, o poeta realce o carácter intelectivo e, portanto, não propriamente místico da gnose, este é um aspecto em que Pessoa vacila e, como é seu hábito programático, objectivamente se contradiz, já que do termo união se infere uma experiência de tipo místico. Mas de resto, esta antinomia entre a cognição intelectiva e a experiência mística é um dos aspectos de maior indecidibilidade se tentarmos integrar a visão gnóstica em uma ou outra destas polaridades, em exclusivo; ela não se submete à aplicação estrita do princípio da não contradição numa análise dicotómica. Pois se é certo que a gnose chega mesmo a participar de um registo raciocinante lógico e discursivo, em objectividade sobre o mundo empírico (veja-se a sua abordagem ao problema do mal e da imperfeição cósmicos), não é despiciendo sublinhar a dimensão mística (e não apenas psicomítica) que ela mobiliza; se bem que seja um misticismo desencarnado, nostálgico ou depressivo, perseverante na captação intuitiva dos laços unitivos entre a centelha nossa obnibulada e esse Deus autêntico mas remoto.

De salientar, no extracto que escolhemos, a vontade pessoana em evitar uma forma verbal que pressuporia logo o conceito de tempo no acto da criação divina. Trata-se, todavia, de uma vontade não correspondida pela exposição laboriosa e escarpada por ele feita, já que a linguagem o trai porque se dá como duração ao nosso entendimento; e aqui está ela empenhada na procura em recuar ritual e demiurgicamente ao tempo das origens, ou seja, o momento de criação da multiplicidade das chamas espirituais, responsáveis pelo surgimento do género humano, uma vez pulverizadas no mundo da matéria física.

«É difícil, evidentemente, compreender o que significa União com Deus, mas é possível dar alguma ideia do sentido que tal é suposto ter. Mas assumamos (pondo de lado a falsidade de usar um termo verbal, isto é, algo que implica tempo), assumamos que, qualquer que tenha sido a maneira como Deus criou o mundo, a substância dessa criação foi a conversão por Deus da sua própria consciência nas consciências plurais dos seres separados. O grande grito da Divindade Indiana 'Oh, que eu seja muitos!' dá a ideia sem a ideia de realidade. (...)

O Adepto, se conseguir unir a sua consciência à consciência de todas as coisas, se conseguir torná-la numa inconsciência (ou numa inconsciência de si próprio) que é consciente, repete dentro de si o Acto Divino, que é a conversão da consciência individual na consciência plural de Deus em indivíduos. Mas, ao mesmo tempo, ele consegue assim regressar à pluralidade obtida por Deus ao fazer o todo de que ele próprio participe, e, ao repetir o Acto de Deus, está na realidade a invertê-lo, e, ao invertê-lo, a voltar atrás no caminho para Deus, assim atingindo a União com Deus.» 40

Mas estas convicções arrebatadoras de mago orgulhoso, porventura contagiadas por leituras alheias feitas pelo poeta-ocultista 41, são fogos-fátuos que se extinguem, após a embriaguez psíquica da consciência ter julgado aproximar-se de uma qualquer ficção de Deus por si gerada. Até porque, anota-o Pessoa, os caminhos místico e mágico estão sujeitos a uma infinidade de erros e ilusões (o perigo do místico seria o mundo, a sua absorção desindividuada na imanência dele; enquanto o perigo para a via mágica seria a carne, ser-se tiranizado pela obsessão em saciar as suas pulsões) que só a gnose pode ultrapassar visto que a sua acção se situa na busca em transcender o intelecto comum por uma espiritualidade superior mais penetrante; se bem que haja um perigo também a espreitar a armadilhada via gnóstica, segundo o adverte Pessoa mais do que uma vez, e é ele a faustiana ameaça do adversário tentador, o Diabo (e recorde-se que o Diabo é uma figura caracterizada como o príncipe deste mundo, no Novo Testamento, razão para que Satanás apareça identificado com o demiurgo controlador do cosmos físico, na exegese feita pelas manifestações medievais de gnosticismo neomaniqueu: desde a sua primeira irrupção com o priscilianismo, no séc. IV D.C., num espaço que viria a ser geograficamente português; até à «Renascença gnóstica» 42, como lhe chamou Jung, ocorrida nos primeiros séculos do segundo milénio, que viu florescer e dizimar os movimentos heréticos albigense e bogomilo).

São, assim, bem mais comuns, na escrita pessoana, os sinais das cinzas resultantes desses fogos alucinatórios. Reconhecemos os traços de um pensamento de desespero vivido em estóica soberania, quando Pessoa identifica a vida com o fogo e não com a luz, e por isso a temporalidade da existência aparecer como uma eternidade de incerteza enquanto dura, um tempo presidido pelo nada e pela desrazão. São três frases únicas, redigidas em inglês, incluídas na compilação dos seus Textos Filosóficos:

«Life is not of the nature of light but of the nature of fire.
Life, the eternal agony of suspense, a horrible nothing.
A feeling that is madness of thought.» 43

O sentimento da vida como loucura do pensamento alia-se ao sentido de um abismo essencial, de uma espécie de fractura gnóstica do ser que faz imergir o humano no tempo que o aliena; abismo ontológico que é, por implicação, uma impossibilidade gnoseológica pela qual a vida narcotiza a entidade pensante do sujeito interior. Na nómada sageza de uma das suas exegeses pessoanas, Eduardo Lourenço apontara-nos precisamente o ponto de conexão que articula a concepção negativa da temporalidade humana com a visão gnóstica de Deus segundo Pessoa.

«É na poesia mais explicitamente religiosa de Pessoa - em particular na de signo ocultista - que se revela com mais força o seu sentimento de absurdidade original e da insubsistência do tempo humano. O espelhismo conatural à consciência perpetua-se igualmente nessa sua visão da transcendência. O Deus invocado é não só uma forma de ausência, mas abissal ausência de ser, novo avatar do Abismo dos Gnósticos:

"Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adão Supremo também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador

Foi criado e a Verdade Lhe morreu..."» 44

O ensaísta retirou estes versos do primeiro de um ciclo de três sonetos cujo título e epígrafe nos transporta para átrios esotéricos: No Túmulo de Christian Rosencreutz (1935). Em poesia Pessoa aí evoca a condição de um Deus enfraquecido que nos terá criado, mas a quem o Abismo metafísico veda a obtenção da verdade; e embora seja o mundo o corpo de tal Deus menorizado, como corpo que é, não possui conhecimento de si. Esse Deus, chamado por Pessoa Adão Supremo, é por sua vez Homem para outro Deus superior a Ele, instaurando um jogo de mise-en-abîme genesíaco, que nos distancia irreparavelmente da fonte original do Ser. A consciência gnóstico consiste antes de mais no reconhecimento de uma ausência e de uma distância, que dinamiza o viajante espírito humano a sondar avidamente, num labirinto de Morfeu, a sua autêntica origem. Essa distância é agravada pelo decurso do tempo existencial e cósmico. Pela simbologia mitológica, Cronos, personificação do tempo, figura a dilatação desse exílio, na medida em que é aquele que devora sem cessar os seus próprios filhos; num dos seus escritos hierológicos, Pessoa identifica mesmo Cronos/Saturno com o Diabo e a limitação, isto é, com o mal, e portanto com o que nos priva de ser o que plenamente somos.

A fábula de Cronos tem, no entanto, peripécias posteriores como todos o sabemos, pois ele acabará por ter de vomitar inteiros e incólumes todos os filhos divinos que ingeriu. A esperança gnóstica também perfilha essa vitória prometida aos que, engolidos hoje pelo túnel da temporalidade, serão a ele subtraídos quando atingirem o estado de existência espiritual em que o tempo é anulado, desmascarando-se então o estatuto ilusório do tempo, que outorgava consistência ao universo físico.

Mas a salvação gnóstica, por não depender da adopção de dogmas rígidos, nem convencionais nem tranquilizantes, é uma doutrina elitista que faz recair o porvir do sujeito sobre o caminho que este mesmo abrir na fracção cronológica de cada vida, de acordo com o que o seu olhar interior nela descobre de irrisório e deficitário. Herança do pugilato agónico dos gregos, que a igualitarização cristã adoça e atenua, é a feição aristocrática da gnóstica heresia que vinca estas palavras heróicas de Pessoa.

«Para ser imortal a alma tem que fazer degrau do corpo, (cada qual tem de fazer de si próprio, degrau para uma maior altura em si mesmo). (...)

Não são imortais todos os homens. A imortalidade tem a sua aristocracia. Ser homem não traz ser imortal: Torna possível sê-lo. Mas para ser imortal é preciso viver entregue ao que tenha em si a imortalidade. (...)

Ser mortal é pertencer à vida, que é das coisas que mudam; ao espaço que é de seres que se transformam; ao tempo, que é de momentos que passam. Para ser imortal pertencer a onde não haja vidas, nem tempo, nem espaços. Para ser imortal é preciso pertencer a mais do que a vida.

A vida é a morte vivida, vida vivida só a imortalidade.» 45

Forçoso é reconhecer, que a despeito das máscaras atrás das quais se fingiu ocultar - melhor será dizer graças a elas -, Fernando Pessoa foi inteiramente coerente com estas normas de orientação existencial, endereçadas tanto a si como a outros que as compreenderem, ao fazer da sua vida degrau para um além da sua individualidade mortal, constituindo a sua obra a marca legível de uma infinitude ambicionada.

Na estrutura dispersa mas vertebrada dessa mesma obra, cuja complexa riqueza não cessa de espantar-nos, Pessoa exibe um importante carácter gnóstico que designaremos por condição teatral ou dramatúrgica do humano. Já aqui sublinhámos que a hierologia gnóstica, isto é, a filosofia que se prende com esta rebelde e individualista religiosidade, baseia-se na crença em uma entidade espiritual que reside no mais íntimo reduto de nós próprios; no entanto, esse deus interior, submetido à punição do ciclo das encarnações, é peregrino sob diferentes trajes físicos, conforme a individuação humana que lhe couber por sorte na cósmica lotaria. A nossa condição pessoal é mesmo a de sermos máscaras, e, de acordo com os versos de Campos, a de termos a máscara colada à cara do espírito. Aquilo que nos faz reconhecer conscientes de nós mesmos em cada uma das jornadas do existir é essa máscara corporal, psicofísica, enganosa mas auto-identificadora do tempo de uma vida. Soaria portanto bem profunda para Pessoa a concepção shakespeareana da vida como palco, ocupado por humanos actores que, por sua vez segundo a gnose, são as personagens efémeras das divinas centelhas em trânsito pela cena terrestre. O drama-em-gente desenrolar-se-á por isso sobre uma visão gnóstica do tempo da acção. Esse tempo é o da sua própria vida divisível, já que Pessoa, ao invés de inventar personagens exteriores e neutralizadas em relação a si - como é típico do dramaturgo -, transforma-se nelas, numa espécie de possessão com algo de xamânico; tentando, no jogo supremo dos paradoxos, desmascarar o eu oculto mascarando-se metodicamente. Encenador da sua multidão privada, é como se Pessoa justificasse, a partir dela, a espantosa doutrina que diz ter cada ser humano uma pluralidade heterogénea de almas, de faúlhas várias do fogo de Deus derramado no início dos tempos; tese defendida por Isaac Luria, judeu gnóstico do Renascimento, nomeado no título de um dos poemas iniciáticos de Pessoa. 46

Em Pessoa, muitas são as caracterizações do tempo humano avaliado ao modo de um teatro metafísico, em que actores não somos, senão na ilusão de sê-lo, mas sim marionetas tentando entrever, como Hamlet, os invisíveis fios que as movem.

«Todo este mundo quotidiano e visível, toda esta gente que boia à superfície da vida, todas estas coisas que constituem os nomes e os feitos da história não são mais que erro e ilusão. Somos todos, não agentes, senão agidos-títeres de maiores que nós. Todo o nosso orgulho de conscientes e a nossa soberba de racionais são o títere que se orgulha de seus gestos. Na verdade o combate é aqui, mas não é nosso; não é connosco, somos nós. Não somos actores de um drama: somos o próprio drama - a antestreia, os gestos, os cenários. Nada se passa connosco: nós é que somos o que se passa.» 46

Pessoa recorre em vários textos seus à alegoria cenológica, por vezes colorida em tons sinistros, para exprimir esta convicção de uma efectiva ausência de liberdade no arbítrio humano; convicção que, ao incluí-la, vai muito para além da metáfora teatral hegeliana que entende a acção de cada ser humano como expressão inconsciente dos ditames do espírito absoluto, ou seja, Deus, que no indivíduo se realiza e manifesta objectivamente.

Personagens míticas do cosmodrama gnóstico comparecem no estrado dos escritos pluriformes de Pessoa, acentuando o distanciamento, a separação que existe entre a alma humana, hóspede da matéria, e o Deus degredado, mas genuíno congénere do espírito. Isto porque o gnosticismo não sendo estritamente monoteísta não se conforma ainda assim a um simples diteísmo; no seu discorrer, tudo está cheio de deuses - como diria o pré-socrático Tales -, ainda que menores ou pervertidos. Encontra-se ele eivado de politeísmo ao personificar não apenas o dáimon radicado em cada um de nós, mas também o demiurgo adverso, de traços emuláveis aos do anjo caído das demonologias (identificação esta, como atrás o dissémos, sustentada pelos cátaros), bem como toda uma série de figuras suas mandatárias como sejam: os arcontes despóticos que regem o mundo físico nas suas leis e nos seus acasos - identificados com as forças simbólicas que presidem ao determinismo astrológico do tempo -; ou ainda, oponentes destes últimos, como são os anjos guardiães que velam por nós se a eles acedermos; e, principalmente, esse dramático mensageiro sacrificial, a partir do qual passámos a contar o tempo histórico. Cristo é, com efeito, para Pessoa o mais decisivo elo da longa e divergente rede de intermediários que se posicionam entre o tempo humano da imanência e a eternidade transcendente.

No esboço para um poema lacunar, em moldes de oração, datado de 1934, Pessoa referencia Cristo como um dos mestres da sua alma - decerto um dos assinalados na carta da primeira ruptura com Ofélia Queiroz: «Mestres que não permitem nem perdoam», e a cuja «outra Lei» o seu «destino pertence» 47; supostamente o compelem eles a adoptar um rigorismo monacal próprio de um albigense que tomasse os votos do consolamentum, símbolo ritual de renúncia ascética.

«Foi o segundo [mestre] um Taumaturgo
Que na Judeia
Foi filho irreal do Demiurgo
Que é o Arquitecto do Universo;
Ao Deus judeu se substitui
E a Nova Lei instituiu. » 48

A nova Lei traduz-se na revelação trazida por Cristo; já que segundo a interpretação gnóstica em geral, Cristo é emissário do Deus verdadeiro e não do Javé veterotestamentário, que é tão-só um disfarce do demiurgo. Sendo Cristo um espírito liberador enviado aos humanos pelo rival superior ao demiurgo, este tratará de vingar-se nele, fazendo com que crucifiquem o seu invólucro físico, pois não possui poder de aniquilá-lo para além das vestes carnais; vestes estas que são, aliás, ilusórias para as correntes de interpretação gnóstica defensoras do docetismo, ou seja, que separam e independentizam a individualidade humana e corpórea de Jesus, relativamente à entidade espiritual que «é Cristo, e não pertence a este mundo senão como Deus, que o criou, e é substância dele, lhe pertence.» Pessoa, ao comentar este espiritualismo dualista, refere-se-lhe a partir de um entendimento esotérico do tempo da história humana - movida por determinismos ocultos de implacavéis condutores-arcontes -, pois se bem que «sendo justa a interpretação dos hierólogos radicais» gnósticos, seria ela um dos motivos exteriores para que a sua mensagem revolucionária fosse violentamente expulsa do palco histórico em que surge.

«Os Gnósticos, que eram ocultistas, ou pelo menos místicos superiores, assim viram, mas separaram as duas naturezas, adorando só a divina, que lhe era necessariamente superior, e não a humana, que, quando muito, só em grau, que não em género, o poderia ser. Mas os Gnósticos foram condenados por hereges, e como hereges repulsos, e extintos, pelo menos aparentemente. Não foi porém a Igreja que os extinguiu assim, senão o Destino que fez a Igreja poder assim extingui-los. A ideia que apresentavam vinha fora do seu tempo, nem poderia servir aos fins dos Condutores do mundo, embora estes soubessem bem que era mais verdadeira que a que iria ser espalhada e desenvolvida entre as nações pela Igreja Católica.» 49

A epifania cristã, mesmo se compreendida como havendo sobrevivido exotericamente deturpada na versão dogmática dos vencedores eclesiais, abrirá o caminho para Pessoa sustentar visões menos desesperantes sobre o tempo histórico e o futuro da humanidade. São muitos os textos seus, em poesia e prosa, nos quais Pessoa renuncia ao niilismo feroz exposto no poema Natal que aqui analisámos. O seu ocultismo cristológico rosacruciano aceitará mesmo embarcar em frágeis naus de utopias teleológicas, comprometidas com o porvir de uma pátria idealizada, mítica e cavaleiresca; coração marítimo que para si adoptou na maioridade, quando se viu compelido a decidir-se por uma cidadania identitária: ou a anglófona da formação sócio-escolar, ou a lusófona do berço parental; devotando-se a tais profecias com bem maior fervor místico e afectivo - próprio de um marinheiro apátrida que subitamente se enamorasse por um porto que o abriga em transitoriedade - do que desprendimento gnóstico. E quanto a este contraditório misticismo pessoano, Teresa Rita Lopes - no posfácio à edição que fixou do gnóstico conto A Hora do Diabo - considera mesmo plausível captá-lo por uma lógica binária constituída pela vontade de crer e pela acção dissolvente do cogitar:

«Pessoa é um místico que quer crer, mas descrê por tentação e por princípio. "Crer é morrer; pensar é duvidar" afirma. O espírito religioso que é leva-o a crer mas o pensador põe tudo em dúvida.» 50

Por isto, igualmente, o facto de Pessoa se reencontrar no gnosticismo, pela fusão que este labora entre crer e inteligir, com o fito de se guindar a uma via espiritual outra situada para além de ambas essas funções da psique.

Em linha teleológica de universalista alcance, são de salientar as leituras de Pessoa - às quais já aludimos - acerca de uma diacronia histórica dotada de sentido latente e não de todo minada pelo absurdo, antes resultado de um combate invisível entre os poderes que se digladiam nos bastidores do teatro astral, no qual os humanos se assemelham às peças manipuláveis de um planetário tabuleiro de xadrez. Aí se situam as suas apreciações acerca do fenómeno da repressão e sobrevivência marginal e subterrânea da heresia gnóstica, ao longo do tempo, desde a sua aparição no drama da história; nomeadamente os aspectos de nunca as ortodoxias do cristismo - designação pessoana - haverem mostrado capacidade em sancionar as concepções psicomíticas da reencarnação, do ontológico simbolismo - cabalístico e hermético - veiculado pela androginia adâmica, ou da evidência da criação imperfeita.

Quanto à imagem do tempo, ela somente ganha uma positividade se for tomada como a simulação que pressupõe graus analógicos, apontando para a afirmação gnóstica de um Deus ausente, denominado por Pessoa, nesta significativa passagem, de Deus imanifesto.

«Espaço e tempo são dois atributos ou manifestações do Infinito, que o simulam sem o ser. Parecem-nos infinitos (...) - são, porém, somente indefinidos. (...)

No tempo e no espaço decorre a matéria; só no tempo a Alma; no Infinito Puro, Deus.

Este Infinito é, porém, só Deus Imanifesto - não manifesto como Mundos senão manifesto como Deus. Para além, supremo deveras, está o Deus Imanifesto - a ausência até de Infinito. » 51

Cristo é para Pessoa o laço entre o mundo e esse Deus longínquo, despertando o seu contacto, nos humanos receptores da sua mensagem, o desejo de as suas centelhas de luz a Ele regressarem, «o desejo de Liberdade» 52 e de fuga ao império do tempo, do fado, do destino.

É desarmante a simplicidade com que nos fala disto o poema, chamado com concisão, Liberdade, que tantos de nós conhecem de cor. No seu último ano de vida, o Pessoa ortónimo concilia nele o despojamento iniciático com uma gnose cristã límpida, surpreendente na sua luminosidade ingénua, rebelde e compassiva.

Nem necessário se torna enfatizar o quanto a visão pessoana assimila e mobiliza de um manancial especulativo e de um imaginário de tradição heterodoxa, que excedem e desconstroem a discursividade filosófica de contornos comummente académicos. Aliás, o pensamento filosófico com a sua família dissensual de sistemas é por ele visto como uma etapa no acesso à iniciação gnóstica, mas, como etapa que é, deverá ser a certa altura superada, equiparando-se o valor de verdade dos seus conteúdos com o de ficções possíveis e argumentáveis, elucubradas pelo raciocínio. A vida, esotericamente entendida como tempo de evolução interior, determina esta digressão do sujeito pelos patamares, nublados pelos véus de Maya, que integram o universo da nossa experiência.

Para o candidato ao grau de neófito, Pessoa enumera «quatro estádios da tentação do mundo» que ele tem de atravessar para alcançar a via da gnose:

«o Dogma, a Inteligência Concreta ou Ciência, a Inteligência Abstracta ou Filosofia, e a Inteligência Crítica.

O Dogma, pelo qual ele está preso aos outros; a Ciência, pela qual ele está preso à Natureza; a Filosofia, pela qual ele está preso aos intelectos dos outros; a sua própria filosofia, pela qual está preso a si próprio. Porque o Mundo é tudo isto.» 53

No entanto, em outro apontamento esparso, o Pessoa consciente do seu génio poético e da aventura reflexiva que empreendeu, adverte a respeito dos dotes requeridos aos prováveis aprendizes de saberes secretos que exigem conquista.

«Não se pode porém ser um iniciado, nas formas e maneiras deste mundo sem ser um grande artista, nem ter o comando da inspiração [ou intuição], sem que primeiro se o obtenha da palavra e do raciocínio.

Tal é a lei, tal é a escala, tal é a regra [ou via].

Mais pesa na balança da Alma [ou da Gnose] o verdadeiro poeta que pensa o que não sabe, que aquele falso iniciado que sabe o que não pensou.» 54

Na imensa herança que nos legou do tempo de vida sublimado em obra, Pessoa reitera-nos sempre que a mais alta forma de música não reside na exclusividade da filosofia, ao contrário do que supusera o Sócrates platónico antes do último dia da sua vida narrado no Fédon. A música do pensamento está sim no cântico do verbo, mas só quando a demanda do belo artístico se reune com a busca gnóstica da sabedoria; pelas palavras de Álvaro de Campos, diríamos que um tal fruto se obtém das núpcias entre o binómio de Newton e a Vénus de Milo. De qualquer modo, para o Pessoa pitagórico, a música do verbo consistirá no meio mais eficaz de aplacar o tempo, emancipando-nos, por momentos breves inspirados, do seu jugo tirânico sobre o ser que agora somos.

Évora-Lisboa, Novembro de 1997 / Setembro de 2002


NOTAS

1 LOURENÇO, Eduardo, Poesia e Metafísica - Camões, Antero, Pessoa, Lisboa, Sá da Costa, 1983, p. 157.

2 CENTENO, Yvette K., O Pensamento Esotérico de Fernando Pessoa, Lisboa, & etc, 1990, p. 13.

3 PESSOA, Fernando, Obra em Prosa - Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, prefácio, edição de António Quadros, Mem Martins, Europa-América, 1986, p. 253.

4 PESSOA, Fernando, Poemas de, vol. I, 1934-35, edição crítica de Luís Prista, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2000, p. 63.

5 in SENA, Jorge de, Fernando Pessoa & Cª Heterónima, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 161.

6 PESSOA, Fernando, Obra em Prosa, op. cit., 22.

7 PESSOA, Fernando, Obras em Prosa, vol. IV - Textos Filosóficos, edição de João Gaspar Simões, Lisboa, Círculo de Leitores, 1977, pp. 97-104; recordamos os referidos versos antológicos de Hamlet (cit. idem p. 99):

«There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are known of in your philosophy.»

8 PESSOA, Fernando, (SOARES, Bernardo), Livro do Desassossego, vol. II, edição de Teresa Sobral da Cunha, Lisboa, Lisboa, 1991, p. 104.

9 DURRELL, Lawrence, Monsieur ou o Príncipe das Trevas, trad. de Daniel Gonçalves, Lisboa, 2ª edição, Difel, 1984, p. 109.

10 PESSOA, Fernando, Obra Poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1981, p. 73.

11 A caracterização de Nietzsche como um autor «quasi-gnóstico» é de lavra bloomiana, na sequência da interpretação que este faz das aproximações que Hans Jonas elabora entre Nietzsche e as filosofias da existência: BLOOM, Harold, Omens of Millennium - The Gnosis of Angels, Dreams, and Resurrection, Nova Iorque, Riverhead Books, 1996, p. 245; quanto a Beckett, afigura-se-nos adequado adoptar também para ele o epíteto de quasi-gnóstico, em conformidade com o percurso gizado em ensaio nosso onde procedemos a uma leitura de obras da dramaturgia beckettiana, tendo a mundividência gnóstica por cenário hermenêutico: ROSA, Armando Nascimento, Falar no Deserto - Estética e Psicologia em Samuel Beckett (Teatro, 1958-61), Lisboa, Cosmos, 2000.

12 PESSOA, Fernando, Poemas de, vol. I, 1934-35, op. cit., p. 64.

13 «Par besoin de salut immédiat, [le gnosticisme] brisera la servitude et la répétition du temps cyclique de l'hellénisme aussi bien que la continuité organique du temps unilinéaire du christianisme; il fera voler en éclats ( le mot n'est pas trop fort ) l'un et l'autre. En termes plus brefs encore et plus imagés, la partie se joue entre trois conceptions opposées, òu le temps peut être respectivement figuré, dans la première par un cercle, dans la deuxième par une ligne droite, dans la troisième, enfin, par une ligne brisée.» PUECH, Henri.Charles, En Quête de la Gnose, I - La Gnose et le Temps, Paris, Gallimard, 1978, [reimp. 1996], p. 217.

14 LOURENÇO, Eduardo, Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 156.

15 CENTENO, Yvette, K., O Pensamento Esotérico de Fernando Pessoa, op. cit., p. 29.

16 PESSOA, Fernando, Obra Poética, op. cit., p. 58.

17 ROSA, Armando Nascimento, O Complexo de Inês: Identificação Literária de um Arquétipo, in revista Aprendizagem / Desenvolvimento, Lisboa, edição do Instituto Piaget, nº 27/28, 1º e 2º trimestres de 1999, [pp. 137-142].

18 PESSOA, Fernando, Obras em Prosa, vol. IV, Textos Filosóficos, op. cit., p. 115.

19 PESSOA, Fernando, Obra Poética, op. cit., p. 19.

20 PESSOA, Fernando, idem, p. 62.

21 PESSOA, Fernando, (SOARES, Bernardo), op. cit, p. 176.

22 PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnósticos, trad. de Luís Torres Fontes, Porto, Via Optima, 1999, p. 18.

23 «What makes us free is the knowledge who we were, what we have become; where we were, wherein we have been thrown; whereto we speed, wherefrom we are redeemed; what is birth and what rebirth.» VALENTINO, cit por, JONAS, Hans, The Gnostic Religion - The Message of the Alien God and the Beginnings of Christianity, Londres, 2ª edição, Routledge, 1992, p. 334.

24 «Eu era um poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas. Eu gostava de admirar a beleza das coisas, rastrear no imperceptível do minuto que passa a alma poética do universo.

A poesia da terra nunca morre (...).

Porque a poesia é espanto, admiração, como de um ser caído dos céus, tomando plena consciência da sua queda, atónito com as coisas. Como alguém que conhecesse as coisas nas suas almas, debatendo-se para recordar este conhecimento, lembrando-se de que não fora assim que as conhecera, nem sob estas formas nem nestas condições, mas de nada mais se lembrando.» [tradução nossa] PESSOA, Fernando, Obra em Prosa - Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, op. cit., p. 23.

Repare-se como este texto, com a data presumível de 1910 conforme atribuição de António Quadros, faz perceber que os estádios nos quais este comentador pessoano dividiu o percurso intelectual do autor só ganham sentido efectivo enquanto focos de aproximação metodológica à obra labiríntica do poeta, mas não parecem deter definição periodológica estritamente sequencial, pois rapidamente esta seria contrariada pela evidência despistante das datações textuais. Com efeito, o assim chamado estádio gnóstico pessoano não se acomoda a um culminar cronobiográfico de síntese dialéctica, depois de um estádio filosófico tético e de um estádio neo-pagão antitético, visto que Pessoa escreve desde cedo - como é o exemplo desta precoce introspecção - de uma perspectiva manifestamente gnóstica; por muitos lugares teóricos que percorra entretanto, ele próprio disse não se reconhecer no evoluir, mas sim no viajar. Melhor que ninguém, Pessoa mostrou-nos que a gnose brota de um olhar inato interior que se aprofunda, e não é um mero produto dos circunstancialismos de assimilação cognitiva; o sujeito busca no tempo de vida as fontes que o saciem, e não são as fontes que despertam, por si só, a sede subjectiva dessa procura.

25 PESSOA, Fernando, Obra Poética, op. cit., p. 62.

26 PESSOA, Fernando, Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação, edição de Pedro Teixeira da Mota, Lisboa, Edições Manuel Lencastre, 1988, p. 96.

27 PESSOA, Fernando (SOARES, Bernardo), op. cit., p. 145.

28 «Another notable difference [between Christian and Hermetic Gnosticism] is that the highest God and the creator, or Demiurge, are not designated as opposed or antithetical powers, and consequently the cosmos and the material world are regarded as deficient but not degenerate orders of being and there is no expression of the characteristic gnostic repugnance toward the physical and material.» HOLROYD, Stuart, The Elements of Gnosticism, Shaftesbury/Dorset, Element, 1994, p. 77.

29 « Schooled as we are by Jewish and Christian accounts of this event, or by the angry Gnostic inversions of those accounts, we are likely at first to be lulled by the equable tone of this Hermetist version. Its affect is subtle and nostalgic, and also preternaturally quiet, even though it describes catastrophe rather than a fortunate Fall. To be drugged by the embrace of nature into what we call most natural in us, our sleepiness and our sexual desires, is at once a pleasant and an unhappy fate, since what remains immmortal in us is both androgynous and sleepless. The Pagan Gnosticism of the Hermetists is far gentler and more resigned concerning this paradox than anything to be encountered in Jewish or Christian Gnosticism.» BLOOM, Harold, Omens of Millennium - The Gnosis of Angels, Dreams, and Resurrection, op. cit., pp. 180-181.

30 «O homem não estava destinado a ser aquilo que é: ele só veio a tornar-se assim pela Queda. Reencontrar a Palavra é reencontrar a verdadeira Lei Humana, o Adão primitivo e andrógino, feito desse modo à imagem de Elohim. Fazer em si mesmo o casamento dos dois princípios - eis aí a Lei Humana reencontrada, a verdadeira criação da pedra filosofal.» [tradução nossa] PESSOA, Fernando, in LOPES, Teresa Rita, Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, vol. II, Lisboa, Estampa, 1990, p. 96.

31 CAMPOS, Álvaro de, Livro de Versos, edição crítica de Teresa Rita Lopes, 2ª edição, Lisboa, Estampa, 1994, p. 165.

32 CENTENO, Y. K., Fernando Pessoa: o Amor, a Morte, a Iniciação, Lisboa, A Regra do Jogo, 1985, p. 47.

33 PESSOA, Fernando, (SOARES, Bernardo), op. cit., p. 132.

34 PESSOA, Fernando, (SOARES, Bernardo), op. cit., p. 209.

35 CORREIA, Natália, Poesia de Arte e Realismo Poético, Lisboa, edição A Antologia, 1958, pp. 18-19.

36 LOURENÇO, Eduardo, Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade, op. cit., p. 164.

37 PESSOA, Fernando, idem, pp. 227-228.

38 «Is time coexistence? Then a thing while lasts coexists with itself? But since no two coexistents are equal, a coexistent is not equal to itself if it coexists with itself; hence change.» PESSOA, Fernando, Pessoa Inédito, edição coordenada por Teresa Rita Lopes, Lisboa, Horizonte, 1993, (trecho nº 262 traduzido por A. M. Nunes dos Santos), p. 415.

39 PESSOA, Fernando, Obra Poética, op. cit., p. 406.

40 PESSOA, Fernando, Obra em Prosa: A Procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e Esotéricos, edição de António Quadros, Mem Martins, Europa-América, 2ª edição, 1989, p. 187; a edição de onde optámos extrair a citação não inclui porém o original inglês, que fora já publicado anteriormente in CENTENO, Yvette, Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética - Fragmentos do Espólio, Lisboa, Presença, 1985, pp. 65-66 [trad. de Maria Helena Rodrigues de Carvalho], 77.

41 A temática da união mística com Deus, avançada neste trecho, bem como as referências à mitologia hindu e a uma orientalizante inconsciência universal são ecos prováveis do convívio textual de Pessoa com Helena Blavatsky, teósofa de quem o poeta traduziria: Luz sobre o Caminho, Karma e A Voz do Silêncio (cfr. ANES, José Manuel, Fernando Pessoa e a Teosofia, prefácio a BLAVATSKY, Helena, A Voz do Silêncio, tradução e notas de Fernando Pessoa, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 9).

42 JUNG, Carl Gustav, Aion. Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo, trad. de Dom Mateus Ramalho Rocha, Petrópolis, Vozes, 5ª edição, 1998, p. 141.

43 «A vida não é da natureza da luz mas da natureza do fogo.
Vida, a eterna agonia da incerteza, um horrível nada.
Um sentimento que é loucura do pensamento.» PESSOA, Fernando, Textos Filosóficos, op. cit., p. 115.

44 LOURENÇO, Eduardo, Fernando Rei da Nossa Baviera, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1986, p. 108.

45 PESSOA, Fernando, Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação, op. cit., p. 103.

46 Muito recentemente, Eugénia Vasques chamou-nos a atenção, para a presença de teses semelhantes às de Luria em textos de Joséphin 'Sâr' Péladan (1859-1918), figura que de si projectou uma persona de excêntrica teatralidade comportamental. Péladan foi esteta, esoterista, prosador e dramaturgo integrado no movimento simbolista, de cujas obras Pessoa, apesar de francófonas, deverá seguramente ter tido notícia - não obstante a difícil legibilidade delas, culpa do estilo rebarbativo do autor; conforme se queixaram Sampaio Bruno (o primeiro autor português a apreciar e divulgar Péladan) e Mircea Eliade, que sobre elas se debruçou, ao analisar o arquétipo do andrógino que é obsessão e utopia central dos textos de Péladan.

47 PESSOA, Fernando, in CENTENO, Y. K., Fernando Pessoa: Os Trezentos e outros Ensaios, Lisboa, Presença, 1988, p. 143.

48 PESSOA, Fernando, Cartas de Amor Lisboa, Ática, 1978, p. 131.

49 PESSOA, Fernando, Rosea Cruz, edição de Pedro Teixeira da Mota, Lisboa, Edições Manuel Lencastre, 1989, p. 238.

50 PESSOA, Fernando, Obra em Prosa: A Procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e Esotéricos, op. cit., pp. 198-199.

51 LOPES, Teresa Rita, História e Alcance de A Hora do Diabo, posfácio a: PESSOA, Fernando, A Hora do Diabo, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio e Alvim, p. 62.

52 PESSOA, Fernando, Rosea Cruz, op. cit., p. 153.

53 ibidem.

54 PESSOA, Fernando, in CENTENO, Yvette, Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética - Fragmentos do Espólio, trad. de Maria Helena Rodrigues de Carvalho, op. cit., pp. 67, 79.

55 PESSOA, Fernando, Rosea Cruz, op. cit., p. 226.


Lisboa, 20 de Setembro de 2002

* Professor adjunto da Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa; doutorado em Literatura Portuguesa Dramática - séc. XX, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)